A caridade inútil é gesto sem alma

23 julho 2024 às 12h52

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Eu estava na festa de casamento. Os pais da noiva eram meus amigos. Ele já não mora mais por aqui, mudou-se para o céu. Tinha a alma grande. Teve uma vida longeva. Beirou os noventa. Não tinha um fio de cabelo branco. Era um intelectual, mas diferente do significado usual da palavra, relacionado a quem lê livros e mais livros. Sua intelectualidade vinha de sua sabedoria extraída da vida simples que tinha em contato direto com a terra.
Vi e escutei todos os comentários de compaixão relacionados ao episódio que envolveu Tadinha. Não fui tocado pela piedade que muitas pessoas tiveram para com ela. Não estou me ostentando com insensível. Percebi que a piedade para com Tadinha era a mesma que consta na crônica “Um cão apenas”, de Cecília Meireles, em que ela fala de um cachorrinho doente que encontrou na rua, mas que o amou “com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta”. A cronista não fez como o bom samaritano da parábola bíblica. Ao encontrar na estrada um homem ferido por assaltantes, ele pôs-lhe faixas em suas feridas e nestas colocou vinho e óleo. E fez mais. Conforme a parábola, o sacerdote, homem de Deus, passou longe do homem ferido; essa ca$ta, como bem sabemos, só sabe recolher…
Alguns parentes dos meus amigos vieram de longe para assistir ao casamento. Chegaram na sexta-feira à noite, vieram em quatro carros. Eram parentes em diversos graus, que moravam a uns 500 quilômetros de distância. Fartura não faltou durante os três dias em que ficaram na fazenda. Na verdade, fartura em sua casa era algo comum. E eu com minha namorada de então (coisa de 20 anos atrás) usufruindo da hospitalidade do casal de amigos.
Na manhã do sábado, enquanto tomávamos um saboroso café da manhã repleto de quitandas variadas, isso numa varanda, uma cena assustou algumas pessoas, principalmente as mulheres, entre estas a minha namorada. Do local em que estávamos, presenciamos uma novilha sendo abatida. E isso para ser oferecida como churrasco aos convidados.
A novilha estava amarrada num tronco de aroeira que havia no meio do curral, isso com um laço no pescoço. Ela mal conseguia mexer a cabeça. Um dos dois peões da fazenda que cuidavam do ritual da morte do animal deu-lhe uma marretada na cabeça, que a deixou inerte. Caiu, mas sua cabeça ficou presa no tronco. Retiram o laço para que ela caísse por completo no chão. Um então enfiou-lhe uma faca de lâmina grande debaixo da pata dianteira esquerda. Golpe fatal no coração. Foram muitas golfadas de sangue. Algumas pessoas se aproximaram do curral. Não faltou “compaixão” por parte de muitos para com o animal. “Tadinha” foi a palavra mais falada.

As horas foram passando. Cerveja não faltava, e muitos bebendo, bebendo. No almoço, cinco frangos caipiras foram para a panela. Após a cerimônia do casamento religioso, isso já à tardinha e realizada na fazenda por um padre esfomeado, um churrasco foi servido. E assim Tadinha foi banqueteada, até por aqueles que sentiram pena dela. Antes mesmo de ela ser servida, o seu cheiro de carne assada já estava deixando todos com água na boca.
Deixei minha namorada comer uns dois pedaços de churrasco e tomar alguns goles cerveja e então lhe disse: “Você está comendo a Tadinha”. Ela me olhou com olhar um pouco assustado, mas o sabor da carne falou mais forte. Tadinha (nome vindo de coitadinha) foi devorada.
Sinésio Dioliveira é jornalista, poeta e fotógrafo da natureza
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