Contos da pandemia (21): Pandemônio pandêmico, de Leonardo Teixeira
23 julho 2021 às 13h04
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Dizem que dá pra crer na glória mesmo diante desse movimento sistêmico chamado pandemônio da pandemia! Quem sabe?
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 547 mil brasileiros. A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)
Pandemônio pandêmico
Leonardo Teixeira
Joanildo viveu tempo suficiente para estufar o peito e golpear na orelha do neófito mundano o palavreado antigo: “Eu passava por aqui e só tinha mato!” Depois mostrava os dentes na tonalidade B3 (conforme última consulta odontológica) e aplicava um olhar de desdém, como se a vivência de maior tempo permitisse duas coisas: a soberania diante da geração Z e a vitória por ter conquistado mais memórias.
Thayllanni estava inclusa num dos variados nichos de jovens do ensino médio, de um desses colégios de ensino forte e humanizado, de nobres três salários cada mensalidade, para depois migrar para uma faculdade uniesquina de um salário. Teve contato com a cultura pop e trocava ideias com os medianos nerds figurados, e sabia lidar até mesmo com o “queer” mais “cringe”. Não tinha poster no quarto, mas o fundo de tela do celular dela era uma montagem de Sheldon e Justin Bieber. Certamente, entre um anime e outro ela curtia as coreografias do K-POP e as dancinhas do Tik Tok. Essa é a geração que, segundo a Forbes, vai salvar o planeta do seu colapso anti sustentável.
Tanto Joanildo quanto Thayllanni estavam na palestra proferida pelo professor Norberto em 2018, que, entre outras virtudes, previu a pandemia de 2020 oriunda da China. Inclusive citou também a Índia e o Oriente como celeiro e pulverizador de vírus, nas anteriores pandemias. Por último explicou o conceito do livro “Antifrágil”, onde todas as empresas saudáveis deveriam ter em caixa 1 ano do seu faturamento, para sobreviveram ao colapso de instabilidade financeira. Mesmo se houvesse mais coisas entre o Ganges e o Yangtze, Thayllani acreditava que o apocalipse seria brotado pelos zumbis, mas os conflitos principais seriam entre os sobreviventes humanos. Talvez baseado em “The Walking Dead” e congêneres. A esperança era de um asteroide colidir com a Terra antes ou a inteligência artificial resolvesse todos os problemas da humanidade, principalmente na geração de um algoritmo mais eficaz para deixar todos os seres ainda mais conectados em seus celulares. Joanildo não esperava que realmente o pocket apocalíptico viesse antes das sete trombetas do fim dos tempos.
Todos do planeta — plano ou esférico — vislumbraram a ruptura incauta entre o branco e o preto, o sim e o não, a esquerda e a direita, e toda dicotomia borrifada em ranhuras por especialistas em redes sociais. Arrasta pra cima! Link patrocinado, geração de lead, conteúdo gratuito para que o pitch de vendas te ofertasse uma compra segura a mais um curso de prosperidade dos lançadores 6em7 ou gurus da properidade. Eis a nova onda, enquanto seu lobo covid não vem. Os demais, em meio a massa de comentários raivosos, pestilentos e intolerantes vociferam achincalhes diante das diferenças opinativas. Um estardalhaço em rebuliço que superou a conquista do paraíso. Milhares de cliques atirados como metralhadoras das antigas guerras. As trincheiras de hoje são o falso anonimato que o digitador e o riscador de telas adquirem como colete. Isto de se pensar que sua tela é alheia e distante do alvo como um escudo imaculado. Todo engano é ledo.
Joanildo viveu para ver o fim dos videocassetes e a crise do Uber. Mas não sabia se o corona lhe permitirá ver a próxima batalha entre Jair e Luiz. Ao longo da sobrevivência perdeu muitos parentes e amigos. Aprendeu a não achar estranho os orientais usando máscaras. Viu o aumento exaustivo de assaltos mirando celulares e os infindáveis golpes diários. Sua vida em clausura lesionou uma ruptura sentimental, cuja angústia somatizou o confinamento em ansiedade e depressão diagnosticada por profissionais da mente humana. Quando jovem queria ser carateca faixa preta, mas hoje é careta tarja preta. E o home office deixou marcas ásperas de uma rotina misturada em cárcere familiar. O mundo online tornou-se o novo hit.
Thayllanni disse que os jovens não aceitaram o parcial lockdown. Ainda pululam festejos sem máscaras regados ao bel-prazer da balada alcoólica aglomerada. Ninguém suporta mais o fique em casa e o use álcool. Dá pra ver nas ruas a quantidade de carros, os shoppings lotados e os afazeres normalizados, mesmo quando o colapso de leitos é demonstrado. Afinal, a vida ainda urge e desde Aristóteles o homem continua sendo um animal social.
A distância entre Joanildo e Thayllanni foi cortada quando deu match no Tinder. Ele queria uma cópula mas marcou relacionamento sério. Ela queria um namoro sério mas marcou amizade casual. Entre papos binários e farrapos de conquista marcaram um enlace ocasional. Foi quando ambos positivaram no PCR. Da internação para “entubação endotraqueal” foi menos de uma semana. Do tubo para o túnel do além: 10 dias. Não deu tempo de se conhecerem, partilharem sonhos, muito menos constituírem família (normalidades cotidianas de padronizada trajetória).
Entre volumosas discussões online: tratamento precoce, gripe, ivermectina, cloroquina, sommelier de vacinas, palpites pulsantes etc, aumentaram dois números na contagem dos mortos. Apagou-se a fagulha vital corpórea quando se esvaiu todo o ar do frasco chamado corpo humano. As cabeças, agora sem pensamentos nem existência, seguiram rumo ao necrotério. Ficou o imposto a ser pago, inventário caro, caixão de 3 salários (com coroa de meio salário), e o luto dolorido de quem ficou lá fora sobrevivendo. Velório solitário sem despedida nem louvores. O que cortou o coração de familiares que passaram para crentes recentemente. Dizem que dá pra crer na glória mesmo diante desse movimento sistêmico chamado pandemônio da pandemia. Quem sabe?
Leonardo Teixeira é escritor.