Contos da pandemia (17): Irene e seu filho Breno, de Miguel Jorge
19 julho 2021 às 10h46
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“Renasciam para outra vida. Estavam seguros, protegidos da peste que vinha de longe e caminhava pelos ares, pelos mares, pelos ventos e era preciso se prevenir contra ela”
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 542 mil brasileiros. A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)
Irene e seu filho Breno
Miguel Jorge
Tem-se tudo a menos/menos os gritos/ As bocas dilaceradas de praga.
Fala-se menos agora/ Fala-se mais com as sombras/ As sobras do dia/
Reclama-se a vida que antes vivia/ E não mais se vive/ Nem viverá um dia/.
Irene acordou de um salto. Salto brusco para a vida a sua vida que se resumia em uma casa pequena, mas florida. Um único filho, jovem e bonito, que era a sua vitória de ser mãe. O médico a mandará desistir de se engravidar. Bastaria adotar uma criança das muitas que andavam pelas ruas da cidade a rir do próprio umbigo. Não haveria jamais uma recomendação assim, tão desastrosa para seu desejo de ser mãe. Riu. Ria enquanto o médico repetia tudo novamente: a senhora não tem as condições necessárias para gerar uma criança. A senhora ou a criança podem morrer no parto. Breno, seu filho estava junto dela, ao quarto ao lado. Menino delicado, digno do amor que ela lhe devotava. Mas, e o sonho? Sempre lhe causava engulhos sonhar assim com coisas estranhas. Mas, era mais que um sonho. Ela vira tudo, num desenrolar de um falar aguado. Por que, santo Deus, haveria de aceitar essas maldições? Seria verdade? A cidade, pequena e estranha, se tornava menor e mais estranha ainda. Por que se fechavam nas casas? Ninguém se falava? Nem para dar os bons dias? Havia discórdia dos que se inundavam de solidão, comida e cama? Continuou a vagar pela casa. Talvez não tivesse entendido bem o que aquelas figuras, uma espécie de bruxas, com reflexos nervosos diziam para ela. Mentira, Irene gritava. Tudo mentira. Mas elas, as bruxas se diziam rigorosamente exatas em suas palavras. E lhe mostraram, longe, nas distâncias, uma usina com chaminé e paredes rotas, caiadas de branco. É para lá que você deve ir com seu filho. Mas como chegar nesse lugar, se nem estradas se viam? Talvez ela não tivesse calculado direito o caminho a percorrer. Assustou com os olhos de Breno postos nela. Olhos negros. Brilhantes. Entre enormes cílios. Por que Breno sabia que ela estava transtornada veio de mansinho se submeter às ordens da mãe.
— O que foi mãe?
— Vai se lavar e tomar seu café.
— Por que a senhora está murmurando em vez de falar com voz normal?
— Temos que partir?
— Partir? Por que? Para onde?
— A peste.
— Mãe, a senhora está bem?
Irene preferia não ser impulsiva. Mas seus lábios tremiam. Rapidamente arrumou a trouxa de roupas. Pegou Breno pelo braço. Arrastava-o consigo. O menino ainda disse se não poderia ir a escola avisar a professora. Os colegas. Os amigos. A namorada. Não, a Helen, não. E a escola estava fechada. Cada um parecia inimigo do outro. Mal se olhavam. Que medo era aquele que os paralisava? Irene andava depressa, o filho preso aos seus braços, carinhosamente atento. A estrada se apresentava escura e poeirenta. Não havia claridade da lua. O menino queria saber para onde estava indo. Uma nova cidade? Não. Uma usina abandonada onde imperava sons estranhos de morcegos, corujas, ratos a subtrair os nacos de alimentos que restavam. Não se via as muralhas da usina. Nem tão pouco a chaminé. Agora corriam. Irene temia que a peste corresse atrás deles e levasse o único bem precioso de sua vida. Tinha muitas razões para não parar. Vez por outra tomavam um gole de água da caçamba. Tomavam fôlego. Corriam. Tanta apreensão produzia nela estranhas sensações. Mas jamais iria impor seu fraquejar. Imaginava, em meio à meia-noite, que as figuras estranhas a seguiam. Finalmente o menino viu duas torres. É lá, mãe, falou. A mãe parou um pouco para limpar o suor do rosto. Os óculos de míope. Duas torres. Agora andavam devagar porque o vento se tornava forte demais. Assobiava cortante. A mãe arrastava o filho pela mão. Fingiram não ver as estruturas mal-assombradas da usina desamparada. Seu amor pelo filho era simples assim.
Como entrar naquele casarão de três andares? Abrir a enorme porta de metal? Nenhuma chave. Nenhuma abertura. Rodearam toda aquela estrutura de cimento, ferro, madeira. Nada. Gritaram algum nome qualquer só para ver se havia algum vigia. Os ecos respondiam como se respondesse a condenados. Tudo só. Tudo vago e sozinho. Irene e Breno repetiram as palavras ditada pelo eco. De repente, a porta rangeu e deixou-se abrir em pequeno espaço. Entraram expondo seus sentimentos e seus medos. Enormes escadas levavam ao andar superior. O menino sentia medo. A mãe não podia passar sem ele. Quem de certo os julgaria por invadir aquela usina? As aves da noite os rondavam.
A mãe, com seu jeito, pôs a mesa com algumas iguarias que trouxe consigo. Comeram em silêncio. As aves agourentas disputavam a comida com eles. Era preciso afastá-las com um pedaço de madeira. Renasciam agora para outra vida. Estavam seguros, protegidos da peste que vinha de longe e caminhava pelos ares, pelos mares, pelos ventos e era preciso se prevenir contra ela. Mas eles conheciam tão pouco de tudo aquilo. Da doença nada sabiam, a não ser que sufocava o corpo, os pulmões e matava. A mãe não se mostrou decaída. Nem cansaço aparentava. O menino adormeceu ali mesmo, debruçado sobre a mesa. Os olhos da mãe era todo carinho para ele. Mais uma vitória pensou. Cobriu o filho com a manta azul. Assim adormecido parecia anjo. No entanto, ouvia vozes muitas estranhas. Algumas risadas. Seriam as bruxas? Voltou a olhar fixamente seu anjinho adormecido. Os cabelos negros encaracolados. Os olhos brilhantes. Não, jamais a peste chegaria até eles. Sentou ao lado do filho. Abraçou-se com ele. Ela conhecia tão bem o seu Breno que sabia até o que ele sonhava. Via o mexer de seus lábios. Falava alguma coisa para ela? O esgar de sua boca. Agora sua fala era mais forte e mais alta. Breno clamava por quem? Gemia um pouco febril. As dores se esparramavam pelo seu corpo. Renasciam os gemidos. Os delírios. A tosse presa na garganta. Os belos olhos agora avermelhados. Não se sabia do porquê daquelas impropriedades de seu corpo. A mãe não ousava acreditar naquele mal-estar, naquela febre repentina. Sofria muito quando o chamava pelo nome querendo saber se estava melhor. O menino, já com voz fraca, dizia: vamos voltar para casa. Exprimia-se mal com dores no corpo. A mãe olhou a estrada longa. Dura. Temerosa. Entendeu Santo Deus, que a peste viera pousar ali com eles. Orou aos céus por ela. Pelo filho. Os morcegos voavam baixinho como a zombar de seu desespero. Ela mesma ria daquilo tudo. Daquela condenação. Foi, então, que começou a contar histórias para o filho. Histórias de lembranças de quando ele era um bebezinho e o destino vinha brincar com ele. Então, ela o apertava contra os seios. Meticulosa a jurar: ninguém tomará você de mim. E o menino dizia coisas com uma voz que Irene não entendia mais.
As sombras dos mortos postas de lado/ A luz das estrelas agora mais lentas/
Sem o verdadeiro mistério que de longe se anunciava/ Sem as vozes das sombras
Ocultas no vale/ Os sons equivocados da usina que rodava suas engrenagens/
Miguel Jorge, prosador, poeta e dramaturgo, é membro da Academia Goiana de Letras (AGL).