Simone Athayde

Especial para o Jornal Opção

O gênero literário conto, embora não tenha o mesmo status do romance, tem particularidades que podem ser vistas como vantagens em relação a este. O grande escritor argentino Julio Cortázar disse certa vez que “um conto é uma verdadeira máquina literária de criar interesse”, ou seja, devido a sua menor extensão, pode ser um meio para o afeiçoamento à leitura, pois consegue fisgar leitores que não têm tempo ou paciência para enfrentar histórias mais longas. Também pode servir como cartão de visitas de um escritor, como amostra de seu talento, já que é preciso habilidade para se dizer muito com poucas palavras, conforme também atestou Cortázar ao comparar a escrita em prosa com a luta de boxe: “O romance vence sempre por pontos, o conto deve vencer por nocaute”.

Dentre as vantagens, há outra utilitarista: as coletâneas de contos são ótimos companheiros de viagem, pois se uma história não nos agrada, ela acaba logo e podemos passar para outra, com mais chance de êxito. Foi durante uma viagem que conheci o lado contista do aclamado escritor Nathaniel Hawthorne, autor do clássico “A Letra Escarlate”, considerado por alguns críticos como o romance mais importante dos Estados Unidos. O livro “Quatro Contos Bizarros” (Editora Literatura Clássica) traz quatro breves histórias que nos apresentam aspectos do gótico, do sobrenatural e até da ficção científica para falar sobre temas mais profundos que Hawthorne, que viveu entre os anos de 1804 e 1864, percebia como problemáticos.

O termo bizarro, quando ligado à arte, remete ao estranhamento causado por elementos que normalmente não podem ser encontrados ou não deveriam estar no mundo real, como, por exemplo, os seres e cenários pintados por Salvador Dalí. Já o gótico na literatura tem muito a ver com a ambientação medieval, com cenários sombrios, (igrejas ou castelos como os do livro Drácula e Frankenstein) e com personagens ou situações que, ao mesmo tempo em que transmitem medo, também atraem o leitor (o sucesso que personagens vampiros fazem até os dias de hoje não nos deixa mentir). 

Poe e Stephen King: admiradores de conto

Entre os quatro contos, destaca-se “O jovem mestre Brown”, que seria considerado por muitos escritores como uma das melhores peças literárias de Nathaniel. Edgar Allan Poe, seu contemporâneo, o descreveu como “o produto de um intelecto realmente imaginativo”, e Stephen King é fã declarado da obra, da qual afirmou que “está entre as dez melhores histórias escritas por um americano”, além de tê-lo inspirado a criar o premiado “O homem de terno preto”.

 “Young Goodman Brown”, no original, publicado em 1835, tem como plano de fundo o mesmo cenário de “A Letra Escarlate”: a região de Salem do século XVII, nos Estados Unidos, famosa por seu fundamentalismo religioso responsável por ter condenado e enforcado mulheres consideradas “bruxas”.  A predileção do autor por esse período e lugar deve-se à sua história familiar, pois ele nasceu em Salem e um de seus antepassados foi juiz do Tribunal das Bruxas daquela cidade. Provavelmente atormentado pela carga ancestral, Hawthorne teria decidido mudar seu nome de nascimento Hawthorne acrescentando-lhe o w.

“O Jovem mestre Brown” conta a história de um jovem presbítero que, recém-casado com uma virtuosa jovem de nome Fé, vai para a floresta no pôr do sol cumprir um compromisso inadiável e misterioso. Brown percorre a trilha na semiescuridão até deparar-se com um estranho que, descobrimos, o convidara a participar de algo que ele hesita em aceitar: “Amigo ‒ disse o outro, parando ‒ combinamos de nos encontrar aqui e é daqui que eu volto. Tenho escrúpulos que me impedem de seguir adiante com a sua proposta”.  Ao longo da leitura, percebemos o motivo da hesitação do jovem religioso: bem-intencionado, vai ser deparado com o Mal, não apenas o sobrenatural, mas aquele próprio da natureza humana.

Um dos pontos fortes do conto está em seu aspecto alegórico de cunho crítico à sociedade puritana, algo que é muito bem trabalhado pelo autor. A luta do bem versus o mal e a forma como eles se entrelaçam e confundem é um marcador da história, a começar pelo simbolismo dos nomes, sendo que Goodman significa homem bom, o que representaria o bem ainda não corrompido, e Fé, nome da esposa, que pode ser lido também no sentido literal, como aquela que, mesmo fraca, quer impedir a ida para o mal caminho, conforme vemos  na parte em que o jovem, ao chegar atrasado ao encontro sinistro, diz: “A Fé me atrasou um pouco”

Mesmo que as intenções do protagonista a princípio não sejam claras, é a partir de suas percepções que a narrativa avança. Com a perda das ilusões, vêm as consequências. A forma como Brown passará a ver o mundo e as pessoas após sua experiência é como uma dolorosa epifania. Aqui cabe novamente a menção à metáfora que Cortázar utilizou ao comparar o poder do conto ao do nocaute: com suas alegorias, Hawthorne desfere um “soco” literário na sociedade religiosa e hipócrita, pura por fora, mas má na sua essência. Apesar de se passar no século XVII, o enredo permanece atual, atestando a universalidade e a atemporalidade própria das obras clássicas, afinal, mais do que nunca vivemos em uma época na qual religiosos utilizam esse rótulo para fazer e legitimar o mal.

Simone Athayde é escritora e crítica literária. É colaboradora do Jornal Opção.