Ao ressaltar que existe uma separação entre Iris Rezende e irismo, a pesquisadora constata que eles se interagem e se alimentam mutuamente

Clever Luiz Fernandes

Especial para o Jornal Opção

Iris Rezende — De Líder Estudantil a Governador (1958-1983)” é um livro de história política de Goiás escrito pela jornalista e historiadora Cileide Alves e lançado pela Cânone Editorial, em dezembro de 2020. A autora é conhecida por sua atuação como repórter, editora, jornalista e analista política de importantes veículos de comunicação social do Estado tais como TV Brasil Central (1986-1989) e jornal “O Popular” (1989-2016). Atualmente, é apresentadora na Rádio Sagres 730. Sua experiência profissional por si já lhe habilitava nessa aventura histórico-literária como escritora. Porém, além disso, antes de produzir essa investigação que resultou no livro, resolveu fazer mestrado no Programa de Pós-Graduação de História da Universidade Federal de Goiás, onde, em 2008, defendeu sua dissertação intitulada “Aval do Passado: Iris Rezende — Memória e Política (1958-1983), que é o germe deste livro. Nesta obra a pesquisadora apresenta a trajetória do político Iris Rezende e a produção do irismo como acontecimento complexo e gradativo.

Logo na introdução a autora deixa claro que o “livro é uma biografia” e isso é muito importante, pois biografia é um gênero literário e histórico. É um tipo problemático, uma vez que se tem no espaço biográfico vários tipos ou subgrupos, tais como confissões, autobiografias, memórias, diários íntimos, correspondências, história de vida, e biografia clássica. Para não se ter dúvida, ela já define seu lugar no espaço biográfico. Mesmo usando e abusando dos relatos da memória do biografado, não se tem em mãos um livro de memória, pois Cileide assume o papel de narradora ativa e usando fundamentalmente os depoimentos do Iris Rezende nas muitas entrevistas realizadas por ela (mais de 18), fazendo o exercício de cruzamento e confrontação do que o político falou com outras fontes documentais (jornais, revistas da época e outras entrevistas) —o que revela o trabalho gigantesco da pesquisadora. Trabalho sério e dedicado visível ao longo de todo o livro. Somado a este esforço documental, a escritora utiliza a produção do acervo da história política de Goiás, que já tem um conjunto significativo de trabalhos importantes sobre a dinâmica política do Estado. Isso qualifica o seu trabalho, pois mostra a seriedade e o esforço na realização de uma obra acadêmica sem o pedantismo do academicismo e, ao mesmo tempo, fortalece sua construção narrativa.

Pesquisadora faz ciência com precisão

O livro de Cileide Alves não é peça laudatória ao político Iris Rezende e, na mesma medida, não é um libelo da sua vida pública. Ele é uma primeira parte de uma biografia política bem estruturada e balanceada, que tem a coragem de escrever sobre os acertos e sem vacilar em narrar os equívocos do biografado. Nessa biografia, os leitores vão encontrar ou vão se deparar com a construção de uma imagem ou um perfil possível do Iris Rezende Machado a partir das escolhas da Cileide. A estudiosa selecionou, escolheu, elegeu aquilo que para ela é o mais significativo da trajetória do biografado, e não existe outro caminho. Todo trabalho de escrita é fruto de escolhas, porém, não é uma arbitrariedade ou apenas produto da vontade da escritora. A mestre produz um roteiro, respeitando os fatos e a dinâmica da história. É necessário falar isso num tempo no qual a Justiça funciona movida por convicção em detrimento de provas, ou pior, em tempo de pós-verdade, no qual os fatos não são importantes. Na construção biográfica da Cileide existe um respeito aos fatos e sua dinâmica. Ela faz ciência.

Iris Rezende e Cileide Alves: a mestre em história produziu uma biografia que mostra as contradições do personagem analisado; não é uma hagiografia |  Foto: Divulgação

Como trabalha com memória e tendo consciência da complicação de lidar com essa categoria, Cileide faz a seguinte ponderação quanto ao processo de lembrança do passado: “Ao reconstruí-lo, a pessoa cria sua própria história, a sua ficção sobre o fato lembrado”. A memória é trabalho, é sempre atravessada pelo presente. Não existe possibilidade de lembrarmos do passado num estado puro. O passado puro é fantasia, pois, quando buscamos pensar nele, não é a partir dele mesmo que o fazemos, mas o passado é presentificado. Assim, quando selecionamos os retalhos do passado que desejamos reconstruir, movidos pelo que estamos vivendo, criamos nossa ficção de nós mesmos.

Além do mais, não temos acesso aos fatos do passado, apenas as interpretações que forjamos dele, como afirmou o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. Este é o desafio na construção biográfica, pois, por um lado, temos o biografado buscando dar em seus depoimentos uma ordem, selecionando, de suas lembranças, uma ordenação lógica para oferecer um sentido as suas ações na e da vida; e, por outro lado, temos o biógrafo também produzindo uma narrativa de uma vida com uma ordem, ou seja, atribuindo uma forma ao caos da existência humana, dando um sentido, um rumo, não apenas para si mesmo como narrador ou contador de uma história, bem como para seus leitores. Este esforço de dar um sentido na produção biográfica gera um tipo de proximidade ou identificação do leitor com o personagem e seus acontecimentos narrados, e este sentimento é bem maior nas biografias do que nas narrativas de ficção, por mais que tenhamos consciência que toda biografia é inevitavelmente ficcional.

Pedro Ludovico Teixeira (com Joaquim Câmara): Iris Rezende buscou o líder maior como aliado para enfrentar um adversário “estabelecido” | Foto: Reprodução

Não tenho dúvida de que, no fundo, até nas confissões sinceras e honestas temos a criação de um personagem que pinta com as cores da conveniência os fatos e acontecimentos vividos e sofridos. Mesmo as belas confissões de Santo Agostinho e Caio Fabio não escapam a essa dinâmica. Para além do desejo de narrar suas autobiografias, as duas narrativas parecem ou desejam confirmar na própria vida a máxima bíblica que diz: “Onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5,20), por isso, nelas temos o esforço dos autores de mostrarem suas vidas de pecado (vida de devassidão e quase delinquência) antes da conversão ao Cristianismo. Fazendo um corte radical entre a vida do homem do mundo e a vida do homem de Deus.

Neste mesmo sentido, no livro da Cileide temos uma afirmação frequente do Iris que coloca sua vida política como a realização de uma missão, uma vocação quase religiosa. Na verdade, este é o elemento gerador de sentido de sua ficção sobre si. Evidente que ninguém nasce para isso ou aquilo, mas no processo da vida nos tornamos isso ou aquilo a partir de nossas escolhas diante das oportunidades que nos deparamos na vida. Porém, quando vamos contar nossa trajetória criamos essa ficção como se tivéssemos nascidos para isso que fazemos.

Iris Rezende em dois tempos: um dos mais longevos políticos de Goiás — foi prefeito, governador e senador; e foi ministro dos governos de Sarney e FHC | Fotos: Reproduções

Além do mais, a vida humana é muito complexa para podermos sintetizá-las num livro ou num filme. Como salientou o produtor da película sobre Albert Camus: “Todo filme tem sua parte de ficção e ninguém poderia reivindicar, recriar a complexidade da vida de um homem onde cada um tem sua própria opinião”. Isso vale não só para produção cinematográfica. Não é possível recriar a vida de uma pessoa nem numa série com várias temporadas e nem numa coleção de livros. O que temos nesses trabalhos são perfis ou uma imagem possível daquela pessoa, o que já é uma grande coisa, pois, quando lemos uma biografia, podemos afirmar que conhecemos um pouco mais daquele biografado. E isso acontece após a leitura da biografia sobre o Iris Rezende Machado. Essa é a sensação: nós ficamos sabendo de muitas coisas significativas da vida dele contada por Cileide Alves.

Mas, apesar da afirmação inicial da escritora, o livro não é apenas uma biografia tradicional ou clássica do político goiano-brasileiro. É um livro de história política de Goiás. Pois, na reconstrução da trajetória do líder estudantil até ele se tornar um inquilino da Casa Verde (lembrando do livro do jornalista Hélio Rocha — “Os Inquilinos da Casa Verde”), a pesquisadora apresenta a dinâmica dos acontecimentos políticos, culturais, urbanos no período por ela recortado e, ao mesmo tempo, temos os traços da cultura política do Brasil Central. Com riqueza de detalhes, Cileide revela o modo operante do fazer política em suas alianças, conchavos, lutas dos grupos e atores políticos em seus movimentos de proximidade e afastamento muito bem apresentados.

Iris Rezende: no início de sua carreira política | Foto: Reprodução
Distinção entre Iris Rezende e irismo

Com sua narrativa leve, elegante e agradável, Cileide nos mostra a dinâmica da construção do irismo em Goiás, assinalando com clareza que existe uma separação entre Iris e o próprio irismo, sem deixar de ressaltar que eles interagem e se alimentam mutuamente. Entre Iris e o irismo existe uma total interpendência.

É possível afirmar que essa construção tem seu início quando o outsider Iris busca conquistar seu lugar ao sol na política goiana dominada pelos estabelecidos, o ludoviquismo. Essa gradativa conquista tem seu passo inicial com o sucesso estrondoso na sua primeira eleição para o cargo de vereador em 1958, com 1548 votos. Iris estabeleceu um recorde na história eleitoral de Goiânia.

Mas este foi apenas o primeiro passo. Outro foi a adesão ao ludoviquismo, visto que durante sua atuação política no movimento estudantil se posicionava na oposição ao então líder maior do Estado — Pedro Ludovico.

Juscelino Kubitschek, que foi presidente do Brasil e senador por Goiás, com o jovem Iris Rezende Machado| Foto: Reprodução

Sua candidatura seguinte ao cargo de prefeito de Goiânia, em 1965, contra Juca Ludovico, membro dissidente do séquito ludoviquista, foi indubitavelmente o seu grande passo. Entretanto, apesar da vitória maiúscula do outsider versus o estabelecido, ou, como escreveu Cileide, o “velho” contra o “moço”, o abrupto afastamento da vida pública imposta pelo regime militar produziu um hiato de 10 anos (1969 a 1979) na construção do irismo em Goiás.

Porém, a pesquisadora deixa claro que este afastamento da prefeitura não paralisou o processo do Iris ao irismo, pois, neste período longe dos palanques políticos, tem-se a construção mítica do herói injustiçado (a heroificação, conceito do cientista político Pedro Célio Alves Borges, professor da UFG, muito bem utilizado). A anistia em 1979 é a oxigenação do processo. Com ela, o retorno à vida pública fortalece e dá vida nova a Iris e ao irismo.

É possível afirmar ainda que no período de 1958 a 1983 temos o Iris outsider e a partir da conquista do Palácio das Esmeralda, principalmente o período de 1983 a 1998, Iris se torna o establishment da política goiana, e o irismo está consolidado.

Henrique Santillo e Iris Rezende: de aliados a adversários figadais | Fotos: Reproduções

Então, nesta construção do Iris ao irismo, Cileide vai tecendo minuciosamente as tramas complexas dos bastidores da política goiana. E um ponto forte e belo do livro é a radiografia do processo eleitoral de 1982. A pesquisadora nos oferece detalhadamente as manobras no período pré-convencional, quase nos fazendo viver o clima da época. As reconstruções destes bastidores pré-convencionais, convencionais e eleitorais são fundamentais para compreendermos as dinâmicas dos partidos, pois eles são momentos fortes e os mais significativos da vida dos partidos. Neles temos as lutas pelo controle da máquina partidária e as indicações dos candidatos para os pleitos eleitorais, por isso eles dão conta e revelam muito das forças dos grupos dentro da agremiação partidária. E Cileide não é nada econômica, nos dá detalhes de como Iris e o irismo conseguiram construir a sua candidatura em detrimento de outros postulantes — tais como o senador Henrique Santillo e o ex-governador Mauro Borges (filho de Pedro Ludovico), que rapidamente cedeu aos movimentos de articulação que levaram Iris para a Casa Verde.

O livro “Iris Rezende — De Líder Estudantil a Governador (1958-1983)” encontra-se entre as grandes obras da historiografia goiana. Mesmo sendo apenas a primeira parte da produção sobre Iris e o irismo em Goiás, já é uma significativa contribuição para este campo da pesquisa de história política. Cabe agora esperar “as páginas de um novo livro” de Cileide para continuarmos lendo essas aventuras e desventuras do seu Iris e irismo em Goiás. Seu primeiro governo, sua atuação com ministro em Brasília, o retorno ao Paláci, as três derrotas eleitorais para o jovem Marconi Perillo e as três vitórias para prefeito de Goiânia, entre 2004 e 2016.

Clever Luiz Fernandes é professor de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutorando em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: [email protected]