Bariani Ortencio: sem “h” e sem “circunflexo” — eis um homem múltiplo por natureza
19 março 2023 às 00h40
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Luciano Alberto de Castro
Especial para o Jornal Opção
“Pagode em Brasília” é um clássico da música caipira. Consta que foi o primeiro pagode de viola gravado no Brasil, em 1960. Registre-se que não estamos falando da variante do samba, mas do ritmo inventado por Tião Carreiro. Na canção inaugural, a batida da viola é preciosa. O problema é a letra, que ostensivamente apregoa a violência contra a mulher — o que é sempre detestável, ontem, hoje ou amanhã. Por outro lado, estes versos da letra sempre me deixavam curioso: “No Estado de Goiás, meu pagode está mandando. O bazar do Waldomiro, em Brasília, é o soberano”. Quem seria esse tal Waldomiro? Um nome fictício ou um sujeito que possuía um bazar na capital federal?
Eu descobri e vos conto. Era (e é) tudo verdade: os autores se referiam ao Bazar Paulistinha, loja de discos do paulista Waldomiro Bariani Ortencio, uma das figuras mais emblemáticas da cultura de Goiás. É inusitado eu estar escrevendo sobre música caipira. Minhas referências musicais vieram do rock, blues e MPB. Só depois que cruzei o Paranaíba é que passei a conhecer a musicalidade rural — pela qual, confesso, nutri certo desdém. Quando ouvi Almir Sater dizer que o seu grande ídolo era Tião Carreiro, comecei a amansar os ouvidos para os ponteados da viola e hoje percebo a similaridade entre o blues e os rasqueados e vejo Tião Carreiro como o Robert Johnson de Araçatuba.
Mas voltemos ao seu Waldomiro, ou melhor, ao Bariani Ortencio, como é conhecido artisticamente. Ser citado na letra de uma das músicas mais populares do Brasil é fichinha perto dos feitos desse homem múltiplo por natureza. Comerciante, alfaiate, jogador de futebol, estudante de Odontologia, professor de matemática, fazendeiro, industrial, minerador, compositor, folclorista, inventor de receitas e escritor foram algumas das ocupações do paulistinha (deve haver mais). Sabe o famoso peixe na telha, patrimônio gastronômico de Goiás? Foi criado por ele em 1975, em parceria com Aldair da Silveira Aires. Bariani é autor prolífico: escreveu mais de 50 livros, entre eles best-sellers como “Dicionário do Brasil Central”, “Sertão Sem Fim” e “A Cozinha Goiana”.
Eu acho que coincidências não existem. Fatos acasalados não são obra do acaso, e sim de alguma força oculta e inexplicável. Isso eu falo de cadeira, porque sincronicidades acontecem comigo o tempo todo. Eis aqui mais uma: no dia do meu aniversário, 5 de fevereiro de 2023, o Atlético Goianiense prestou uma homenagem a Bariani pelo seu centenário de nascimento e também por ter sido goleiro do time nos anos 40. Mais dois feitos do senhor Ortencio: jogar como goleiro e fazer 100 anos. Quando li a reportagem, pensei “Olha só que coisa incrível: eu, que já vinha pensando em escrever sobre o Bariani, vejo que ele foi homenageado justo no dia do meu aniversário.” A lembrança era meu presente.
Decidi que deveria retribuir. Um dos netos do Bariani (e também sósia do avô) é meu amigo e, por intermédio dele, consegui marcar uma visita à icônica casa do escritor na Praça Cívica. A construção de dois andares é uma joia do traço modernista, marcado pela horizontalidade, volume retangular e escada externa. Eu acho muito bonito. Os espaços internos são amplos e bem iluminados. No quintal, há pitangueiras e coqueiros dos tempos de uma Goiânia moça. O piso inferior abriga o acervo histórico-sentimental da casa, com inúmeras fotos, documentos, objetos e a famosa biblioteca, que abriga 5000 livros e é reconhecida como importante repositório da literatura goiana.
Encontrei Bariani comodamente sentado em frente a um dos janelões da sala. Ele está mais calado — disse-me a filha. Ainda assim, respondeu duas ou três perguntas e ensaiou uma história sobre o campo do Atlético. Fiquei comovido e feliz ao vê-lo tão bem a despeito da idade, vivendo uma velhice digna e tranquila. Enquanto mirava a cidade que ajudou a construir, vi nele a face límpida e serena dos sábios. Aquele foi um dia diferente: foi o dia em que conheci Bariani Ortencio, um nome que se escreve sem H e sem acento circunflexo, mas com muito respeito, carinho e admiração.
Luciano Alberto de Castro, escritor e professor da Universidade Federal de Goiás, é colaborador do Jornal Opção.