Anational Geographic Channel
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Hélverton Baiano

Zuquinha não foi o primeiro e nem seria o último a pôr à prova as pilhérias e sugestas de Chichico Bezerra, quando chegou de supetão para visitá-lo. Entre admirado e contente, Chichico não se fez de rogado, abriu a porta do cômodo que dava para o quintal e desfilou um rosário das providências que tomava diariamente para manter aquela enorme baleia tão bem alimentada e bonita.

— Zuquinha, meu amigo, esse serviço de criar baleia é penoso, mas faço com gosto. Não é qualquer um que tem esse privilégio. Agradeço a Deus.

A visita de Zuquinha foi proveitosa para Chichico Bezerra, pois contou com mais um a passar o causo à rua e agora não apenas Chichico deteria a patente do que por lá consideravam de lereias e alguns até de atordoamento da cachola. Amigo de raimundo e todo mundo não era de bulir com ninguém, nem mesmo com os mais mal-educados e sem tino que gritavam no meio da rua, num tom que mais das vezes misturava brincadeira e fanfarronice.

— Ei Chichico, que ocê deu pra baleia comer hoje?

— Ela só come flores e bebe água –, respondia com a cara mais limpa e convicta que existia, sem disfarçar um risinho escondido.

— E seu elefante que voa, ocê soltou ele da gaiola?

— Hoje não, porque ainda não está bem treinado para voar sozinho e voltar para casa.

— E o que ocê tem feito com ele?

— Ele só voa arreado e comigo na sela. Ainda está aprendendo. A gente tem que dá o desconto.

Mas era a baleia o motivo recorrente das indagações, assunto agora dividido com Zuquinha, que também se encarregava da mídia de rua e entrou, sem querer, para o rol dos bestejados, no bom sentido, é claro. Toda gente levava na brincadeira o assunto da criação desses animais exóticos, que Chichico dizia ter no quintal de sua casa. Outros uns, poucos, é verdade, tinham a mania popularesca e bufonada de mandar ir dormir quem conversasse demais, como doravante Zuquinha passara a fazer. Eram dois senhores já de certa idade que zanzavam pela cidade com a pecha de burlescos e folclóricos. Ninguém os contestava, mas nessas histórias eles muito menos acreditavam, aproveitando o espaço para as chacotas e brincadeiras.

— Que dormir que nada, vou é catar umas flores pra Chichico alimentar a baleia dele — retrucava Zuqinha, quando instigado, com cara de muitos amigos.

Joel de João Inglês, que cuidava dos jardins das praças, vivia intrigado com o constante sumiço das flores que cultivava com tanto esmero. Chegou a pedir ao prefeito para fazer uma lei e botar mais um vigia para trabalhar à noite, na tentativa de por um fim a esse tormento, que não deixava jardim algum florescer e embelezar. De dia, ele dava conta de cuidar sozinho, inclusive tangendo os meninos malinos e arteiros. Saía correndo atrás deles, expulsando-os com uma pinhola de couro cru que era famosa no meio da meninada.

A única exigência de Chichico para tocar pratos na furiosa, a bandinha da cidade, era a de que a rua de sua casa fosse incluída nos roteiros dos festejos da Igreja, santificados e comemorados com entusiasmo e alegria pela comunidade. Quando alguém perguntava o porquê desse trato, ele dizia, com a cara mais lerda deste mundo, que era para a diversão e o entretenimento dos seus bichos, especialmente de sua baleia e do seu elefante voador.

Nas andanças de bater perna na rua, conversava quase que diariamente com Joel de João Inglês, ouvindo dele as reclamações do sumiço das flores e dava palpites concordantes com as providências e punições aventadas pelo jardineiro.

Dissimulava, desconversava ou puxava outro assunto quando Joel começava o rosário de reclamações sobre o sumiço das flores. Agia assim porque realmente não podia ajudar o amigo, pois precisava das flores para alimentar a baleia e das folhas para a comida do elefante. Concordava com Joel sobre as providências para uma maior vigilância nos jardins.

Outro dia, avisou a Zuquinha, que agora precisaria de mais comida vegetariana porque acabava de receber um dinossauro Antetonitrus e outros herbívoros, o que aumentou muito a fauna do seu quintal e a necessidade de alimento. Caçasse berduégua, taioba e qualquer quiçassa de folha comestível do mato para alimentar os bichinhos.

Chichico vivia de uma reles aposentadoria que dava mais ou menos para o de-comer do dia-a-dia. Nas idas e vindas ao mercado, sempre separava um dinheirinho para comprar alface e outras folhas de comer. Para quem perguntasse, não titubeava, dizia que era para alimentar principalmente o elefante voador e o dinossauro Antetronitrus. Assegurava que já ensinara a baleia a comer alface também, apesar da preferência dela por flores.

Da nova safra de bichos do seu quintal, Chichico não escondia, estava encantado com o boto cor-de-rosa, uma beleza de animal, lindo, lindíssimo. A baleia agora fazia parte dos assuntos secundários na rua. Mas não demorava muito a turma da indaga queria mesmo era saber da baleia, como ela estava e como ia de saúde. Volta e meia, Chichico arrumava novidadeiros feitos da baleia, que encantavam as plateias, das mais sérias e atentas às mais avacalhadas e gozadoras. Dentre esses feitos, relacionava incipientes sons inteligíveis, com os quais os animais pediam comida ou água, e a satisfação com o sacolejar da cauda, quando ele aparecia no quintal. Para quem insistia, dizia que estava ensinando muitas coisas mais à baleia. Da fauna do quintal agora também faziam parte uma lagarta gigante do pantanal mato-grossense e uma girafa africana, aquisições recentes.

Neto de Cordeiro, parente de Cydoidão, da vizinha Mundocaia, apareceu certa feita contestando Chichico e desafiando-o publicamente, que aquilo já passava da conta, que Chichico Bezerra era uma pessoa boa, mas inventava demais, mentia com essa história de criar baleia no quintal, e aquilo estava dando nos nervos dele lá e coisa e tal. Teve quem achasse exagero da parte de Neto e o repreendeu. Mas ele dizia, no reservado, que estava era testando até onde Chichico podia ir com essa história.

Para despistar a algazarra, Chichico o chamou de lado e fez o convite para que no dia seguinte pela manhã fosse conhecer a baleia. Neto foi e, como Zu­quinha, se encantou também e até passou a fazer feira para ajudar a alimentá-la. Entusiasmou-se tanto que sugeriu a Chichico dar nome ao mamífero e, quem sabe, até mesmo batizá-la.

Cheio de si e de razão, Chichico pediu calma e paciência, preferindo desconsiderar os arroubos de Neto de Cordeiro, marinheiro de primeira viagem. Mas não escondia a satisfação de ter conseguido arrebanhar mais um seguidor para o rol de sua confraria.
Volta e meia se reunia em uma esquina com um monte de curiosos querendo ouvir as novidades sobre a baleia, o elefante, o boto e os outros bichos.

— A novidade — contava — é que o boto engravidou a empregada lá de casa, mas não quero que saiam contando isso por aí, porque não é bom a essa altura da vida eu passar a sofrer a inquisição da delegacia e ter de pagar pensão na justiça. Estou muito velho para isso e, com jeito e tempo, tudo se ajeita, que nesse mundo há conserto pra tudo, menos para a morte.

Um gaiato que passava e via aquela aglomeração indagava de Chichico se algum dia poderia dar uma voltinha no elefante.
— Esteja à vontade, meu filho, é só combinar — respondia.

Com pouco tempo, conhecidos quiseram também ver a fauna de Chichico e a impressão que tiveram foi a mesma revelada por Zuquinha e Neto de Cordeiro. O soldado Galego, Seo Zé de Aurora, Neno de Zé Pedro, Preto de Amazila, Tilixa, Itinho de Iozinho, Toginha, Móca de Queno, Fenelon, Fio de Chiquito, Vando de Cinza, Jaime Peferrô, Pedrão de Seo Miguel Coimbra, Chico Parrachá e outros mais que conheceram os bichos criados no quintal inventaram de fazer uma ONG e sugeriam a Chichico abrir seu zoológico à visitação pública e cobrar ingresso.

De início ele ficou um pouco tentado, pois vogava que dinheiro é coisa que sempre ajuda, e ele precisava para a manutenção dos animais, mas preferiu não adotar a ideia como uma maneira de preservar os bichos do estresse e de outras mazelas oriundas do contato com os visitantes. Confessou, na verdade, que abrira exceção a eles pelo fato de serem amigos e considerados.

Chichico ficou doente, de uma doença esquisita e com o passar do tempo foi murchando, murchando e nada de ninguém descobrir o mal. O médico da cidade, Lauro Araújo, fez inúmeros exames e necas. Médicos bons mandados vir de outros cantos, como Paulo Câmara, Everaldo França, Clausmir Zanetti e José Bastos, deram jeito não. Fizeram novos exames, consultaram outros colegas por telefone e nada descobriram de diferente, que a ciência pudesse explicar. Juntaram mandingueiros e rezadores em trabalhos extensos e cansativos, até que Seo Gôda, o mais experiente nas questões etéreas, foi avisado por uma voz, que só ele ouviu, que a doença era provocada por um tal de “piolho de baleia” e o antídoto recomendado era óleo do próprio animal.

A nova, vinda do além, ao invés de melhorar, piorou a situação. Piorou de um tudo, até mesmo o problema, que fez foi aumentar.

Passou pela imaginação de alguns, sem que se pudesse ao menos sonhar de dar com o pensamento e a língua nos dentes, que a solução estava ali no quintal da casa do doente. Mas Dona Maria Sinhaleia Botofante Bezerra, esposa do moribundo Chichico, antecipou-se em negativas e achaques, dizendo que ninguém faria mal à baleia do quintal, coisa e tal, não havendo doido ali de ao menos fazer menção de tocar um dedo no animal de estimação do marido doente. Ela não tinha mais esperança, só esperava a hora sem volta. Só ela, ninguém mais dos que estavam tentando ajudar, percebeu a hora chegada, quando Chichico bateu o pacau. Como estava, foi, tranquilo e sereno.

Dona Maria Sinhaleia despistou e, depois de toda aquela agitação, aproveitou o clima para mandar embora os que ainda beiravam e inquiriam. Arrumou até a desculpa de que Chichico precisava descansar, mas o que mais a preocupava era o medo de que desconfiassem. De noite, sozinha, preparou a ida do morto como ele pedira.

Nessa mesma noite, sobre o lombo do elefante voador, Chichico viu promovida sua ascensão ao céu.

Hoje seus amigos imaginam e dizem para quem quiser ouvir que ele está sentado à mão esquerda de Deus pai, e, nas horas vagas, toca pratos na filarmônica celestial. Acreditam que de lá ele olha e protege as baleias, os elefantes voadores, os dinossauros, os botos cor-de-rosa e todos os outros animais da terra.

Aos amigos, que gostavam de brincar com Chichico e apreciar suas chacotas, Zuquinha disse, em um bate-papo antes da celebração da missa de sétimo dia, que na noite anterior Chichico veio à terra e levou consigo para o céu todos os seus bichos de estimação.

Hélverton Baiano é jornalista e escritor.