Deonísio Silva se concentra na versão dos personagens para relatar a crueza da guerra travada na América do Sul no século 19, ainda na época do Brasil Império

Mariza Santana

Especial para o Jornal Opção

“Não houve uma guerra; houve muitas guerras, milhares de guerras na Guerra do Paraguai. Milhares de retiradas foram feitas naquela Retirada da Laguna.” É dessa forma que o narrador do livro “Avante, soldados: para trás”, de autoria do escritor catarinense Deonísio da Silva, se refere àquela que foi a mais sangrenta guerra da história da América do Sul, ocorrida no século 19.

Essa guerra, de um lado opôs Brasil, Argentina e Uruguai, e de outro o Paraguai. Nosso país ainda era um império escravocrata sob o comando de D. Pedro II. O Paraguai era governado pelo presidente Francisco Solano López. Muitos estudiosos apontam que a Inglaterra tinha interesse nesse conflito bélico, pois emprestou dinheiro aos países da Tríplice Aliança. Algumas despesas das tropas brasileiras, inclusive, foram pagas com libra esterlina.

O fato é que irmãos sul-americanos se enfrentaram em batalhas de muita carnificina. O resultado foi um Paraguai destroçado, com grande parte da população masculina morta, um verdadeiro genocídio. Esta guerra é o cenário do premiado livro de Deonísio da Silva. O romance recebeu o Prêmio Internacional Casa de las Américas em 1992, por um júri composto por José Saramago, o único escritor da Língua Portuguesa que recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, em 1998.

Na obra desfilam os personagens da coluna do exército comandada pelo coronel Carlos de Morais Camisão, que partiu do Rio de janeiro em 1865. Dois anos depois penetra em território paraguaio, mas é acossado pela tática de guerrilha dos inimigos, e por um adversário ainda mais impiedoso: o cólera. De um efetivo de 3 mil soldados, poucas centenas deles sobreviveram, resultando na Retirada da Laguna.

Ainda hoje me lembro do Monumento aos Heróis Retirantes, que visitei ainda criança, erigido no município de Monte Alegre de Minas, onde estão enterrados cinco soldados que morreram no local em 1867, vítimas de varíola. Uma vez um colega jornalista ironizou, para me chatear: um monumento para desertores de guerra, como isso é possível?. Sim, mas mesmo assim heróis, respondi.

Deonísio da Silva: escritor | Foto: Reprodução

O local em Minas Gerais é conhecido como Bexigueiro, já que a varíola era conhecida também naquela época como bexiga. O monumento relembra a saga desses soldados, que fugiram (ou melhor, se retiraram) da Guerra do Paraguai. Muitos morreram acossados pela fome e por doenças. Ficou marcada na minha memória a panelinha de um dos soldados, que ainda jazia naquelas plagas mineiras, lembrando a tristeza da derrota e o infortúnio da epidemia. Retratava ainda como a vida humana é efêmera.

Mas reminiscências da infância à parte, na obra Deonísio da Silva não se prende a relatar grandes batalhas e táticas militares. Prefere apresentar a insanidade da guerra por meio das impressões dos que a viveram em terras mato-grossenses, como o coronel Camisão, o engenheiro francês que constrói e destrói pontes, a guerreira paraguaia Mercedes que se torna amante do inimigo, e o narrador anônimo que sobrevive às batalhas e é o responsável por concluir esse relato distinto de uma guerra insana. (E qual não seria?)

Em muitos momentos os personagens filosofam sobre o sentido da vida e da guerra, sobre o medo da morte. “O medo viaja conosco. Nossos soldados são cheios de superstição e leem a natureza ao modo deles (…) Não enfrentam um inimigo humano, visível, palpável, um exército de carne e osso. Enfrentam contingentes de sombras”, relata o autor.

Assim, as atrocidades da batalha são narradas, não de uma forma linear, mas a partir dos olhos dos soldados, da inimiga paraguaia, do narrador que permanece anônimo. Ficamos tristes com o destino do coronel Camisão, que apesar da patente superior, é romântico, corajoso e ético. Muitas vezes ele se revolta com as práticas desumanas adotadas pelos seus soldados contra os inimigos.

“Avante, Soldados: Para Trás” é um romance tocante, introspectivo e sensível, que causa impacto no leitor diante da brutalidade da guerra e dos homens. Obra, de fato, merecedora de um prêmio internacional.

Mariza Santana, jornalista e crítica literária, é colaboradora do Jornal Opção.