A infância é passarinho fazendo anarquias nos quintais da alma. Folguedos dos quais fiz parte, sem me dar conta de que aquele encantamento de júbilos era fugaz       

Gabriel Nascente

As nuvens parecem páginas do passado de minha infância barulhenta e esburacada. Às vezes, ao vê-las, flanando, quais levezas de urubus, chego a imaginar que são praias aéreas flutuando sob os tetos do infinito, por onde viajo pelas escumas da lembrança — e até inalo um cheiro gostoso de lenha queimada, mas de fogão caipira. Isto me devolve à memória, com absoluta nitidez, a imagem daquela rústica casa do casal tia Júlia-Doca, onde a combustão do fogo, no canto da cozinha, fritava costelinha de porco, com mandiocas, feijão e arroz branco, na trempe, em panelas de ferro.

Aquilo, naquele aparato de carinho e esmero, ao preparo gastronômico, despertava um apetite doido em todos nós: a molecada da casa. Dessemelhante aos demais, eu era apenas o afilhado de tia Fiíca, a madrinha que me conduziu, pela mão e pela fé, ao confessionário da Igreja Nossa Senhora Coração de Maria, para Primeira Comunhão, sob as bênçãos de todo o ritual eucarístico do Catolicismo.

Os meninos de hoje, coitados, são uns infelizes que não conhecem terra, um pé de laranja, um banho de córrego; tão alheios à natureza, que mal sabem o que é um arco-íris. Certamente o ventre que os gerou chama-se internet, esta droga eletrônica aberta, universalmente, à alienação e à burrice, com nefastas repercussões de esvaziamento intelectual em seus âmagos.

A infância é um passarinho fazendo anarquias nos quintais de nossas almas. Folguedos dos quais eu fiz parte, sem me dar conta de que todo aquele encantamento de júbilos era fugaz, estupidamente transitório. Mas a alma nos diz que a infância não morre. E é por isto que o menino antigo, que governa meu coração, também não morre. E vive aprontando safadezas para que eu abandone logo esta história de ser aprendiz da angústia.

A eternidade é a metafísica de um milhão de faces; portanto, mentirosa. Basta que nos apaguemos dela, e ela desaparece. Da infância à adolescência, eu fui um rapazote de inquietação elétrica, movido por uma turbulência de sonhos. E este fervilhar de coisas, no espírito, me dificultava a fixar meus pés na plataforma da realidade; o chão.

Destarte, foi daí dessa massa disforme (de razão versus emoção), que retirei o substrato semântico para a lavratura da poesia. E vim, às apalpadelas, abrindo fendas na escuridão, em nome deste ofício duro de acreditar: a poesia. A propósito, eu mando um recado aos que navegam pela magia da criação poética: que amem a poesia desesperadamente, com todas as forças da alma, renúncia e contemplação. E mais. A poesia deve acompanhar a sábia intuição das aves migradoras, porque são lúcidas e isentas de legislações hipócritas prescritas pelo homem, desde os primórdios da pedra.

Enquanto alguns raros escritores e poetas, submersos à praga epidêmica do novo coronavírus, estão a escrever seus diários de pandemia, eu vou, a ritmo de goteiras, arrematando o inventário da minha infância. E já, de chofre, a primeira confissão vem à baila. Antes de conhecer a palavra, era eu um capeta de infernais extravagâncias. Não sei se para o bem. Penso que sim. Sede de saber, pulo de gato nos mistérios da gnose, através do fogo das emoções, algumas olímpicas, outras diabólicas. Era o demônio de Sócrates e a neurose de Hemingway em meu sangue. Ou as lacerantes unhadas na ignorância da minha inocência.

Desde as mais longínquas estripulias da florada de criança e adolescente, andava comigo uma chama inquieta, nitidamente acesa. Pois se fosse para atravessar rios a nado, dar mergulho de cabeça em águas paradas de represas, voar de bicicletas, capar sapos, pregar chicletes em meninas exibidas, (metidas a cocô), pular catracas de cinemas, transformar mamão em caveiras para meter medo em crianças, imitar a estátua “O Pensador” de August Rodin, para enfeitiçar os olhares das namoradinhas, inventar acampamentos em beiradas de rios e de córregos, instalar rádios em automóvel de luxo, subir em telhado para consertar antenas de televisão, era comigo mesmo, o Bié da 75, alcunhado de Cientista Louco.

Lembrete   

Por um lapsus calami (e, portanto, jamais intencional), esqueci-me de registrar na crônica “A Pinacoteca do TJGO aberta para o mundo” o lustre histórico do desembargador  Itaney Francisco Campos, o presidente da Comissão Cultura, por ter sido ele quem apresentou a proposta de criação da Pinacoteca à Corte Especial, aprovada por unanimidade.

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