As aventuras do moleque de barro (II)
07 setembro 2020 às 14h23
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Prometi que, se uma menina namorasse comigo, eu passaria nu na porta de sua casa. Teve gente que se armou de espingarda. Sabe o que fiz? Leia a crônica toda…
Gabriel Nascente
A Rua 75 dos anos 50 era um pedaço de Goiânia que respirava um sossego moroso, aos bocejos de lerdeza e preguiça, talvez, de paisagem tipicamente tosca, achavascada, com sua rusticidade de alvenarias cunhadas nos barracões de fundos de seus quintais. Súbito, um galo entrava dentro de outro galo para, juntos, ecoarem o pulmão de seus gritos. Mas de repente tudo isso era inaparente, pois pulsavam ânsias de labuta no sangue de seus moradores, gente de cultura humilde, em sua maioria.
O bar do Tião, que até hoje sobrevive, rugoso pela idade avançada de sua vetustez, fervia. A Escola Técnica, também daquela antiguidade, ferva. Lá embaixo, no número 3, caiam os martelos e as correias zuniam velozes em suas polias motorizadas. Eram as zoeiras suarentas da marcenaria dos Nascente.
O parque Mutirama não existia. Era mata fechada, jângala de espesso verde, rasgada apenas por alguns trilheiros, que permitiam ligações entre o bairro Popular e a pacata Vila Nova, pela estreita ponte de aroeira sobre o outrora límpido córrego Botafogo. A viajar pelas dimensões desse passado paisagístico a gente vai redescobrindo o significado poético das coisas, bem como o sentido intrínseco, existencial e teológico, desta nossa hospedagem de argila pelo planeta.
Meu Deus, como é oportuno lembra-se agora das palavras do grande poeta persa Hafiz: “Meu pó será o que sou”. Municiado desses princípios de axiomas filosóficos, narrarei um faceto acontecido, cujo fundo cenográfico foi a Rua 75. A extinta “Folha de Goiaz”, mantinha, aos domingos, duas páginas dedicadas à literatura. Até então eu jamais havia me regozijado com um poema publicado naquele jornal. Foi um estouro de repercussão na rua da minha infância.
Eu estava sacudido de paixão pela estonteante beleza de uma jovenzinha, de nome Jurema. Espécie de amor desenfreado de adolescente picado pelo ferrão azul da poesia. E pumba! Lá foi uma sentimental ovação de louvor à pequena musa de cabelos negros e sorriso de anjo. Num certo momento do poema, confessei que, se algum dia ela namorasse comigo, eu passaria pela porta de sua casa mais nu do que um pé de mamão na chuva, mais ou menos assim. O poema saiu no Suplemento Literário da “Folha de Goiaz”, no domingo. A galera entendeu que aquilo era de fato uma declaração de escândalo. E que eu iria mesmo a qualquer momento aparecer por lá inteiramente pelado, em minha bicicleta. Como nada disso aconteceu, o fato virou folclore na memória do povo.
— uai, seu poeta, ocê nm cumpriu a promessa. Tem gente que pegou até espingarda e foi para a porta da rua esperar pelo desfile de sua nudez… Isto é memória.
Bem antes de clarear os idos de 60, os barrancos do córrego Botafogo eram férteis em argilas de várias cores, onde o amarelo e o vermelho, e ainda umas rajadas de branco, predominavam garbosamente. Suas ledas correntes de água não eram prostituídas pelo esgoto. Enquanto isso, a molecada circunvizinha do prisco ribeirão, se deleitava da limpidez de suas águas, nadando em banhos e mergulhos. Incluso eu.
Foi que, certa hora às vésperas do pôr-do-sol, o Fredinho, de louras madeixas, deu um generoso mergulho e, emergir-se de volta à superfície, deparou-se com um bando de moscas zoando ao redor de tua cabeça. Era um baita pedaço de merda. Isto é memória.
Gabriel Nascente é cronista do Jornal Opção.