Anderson Braga Horta e a tradução literária de qualidade

14 junho 2020 às 00h01

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O tradutor é uma verdadeira ponte entre culturas diferentes, um integrador que universaliza e democratiza as artes

João Carlos Taveira
Especial para o Jornal Opção
Traduzir é uma arte? Um passatempo? Ou mesmo uma profissão como outra qualquer, a que se pode dedicar integralmente para ganhar o pão de cada dia? Em geral, nos países desenvolvidos a tradução tem desfrutado dessa última hipótese, pois os profissionais da categoria ganham bem e gozam de prestígio social e respeito intelectual como quaisquer outros que transitam pelas veredas literárias, dentro e fora do mundo acadêmico. Por outro lado, em países como o nosso, tal atividade tem sido um tanto diletante, porque mal aceita e mal remunerada. E quase todos aqueles que a ela se dedicam o fazem por puro prazer ou mesmo por um capricho muito pessoal, pois outras profissões lhes garantem o sustento e a sobrevivência.
Entende-se que a tradução seja uma forma de reescrita, de reinvenção; porque traduzir é reescrever numa língua diferente. O objetivo precípuo é a produção de um texto que venha substituir o original, para aqueles que desconhecem o idioma em que aquele texto foi escrito. O tradutor é, assim, um tipo muito original de criador, pois cada língua tem sua especificidade semântica e gramatical, e isso leva a uma necessidade suprarracional de compreensão textual e cognitiva dos significados e significantes. Literariamente falando, nenhuma língua permite literalidade com outra, a tradução ao pé da letra… devido a expressões idiomáticas e outros pormenores idiossincráticos.
Por aqui, tivemos e temos muitos tradutores de alto nível. Podem ser citados tranquilamente Machado de Assis, Olavo Bilac, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, Abgar Renault, Mario Quintana, Herbert Caro (não era brasileiro, mas traduziu Thomas Mann, Hermann Broch e Elias Canetti para o português), Paulo Rónai, Aurélio Buarque de Holanda, Antônio Houaiss, Aíla de Oliveira Gomes, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Ivan Junqueira, Ivo Barroso, Fernando Py, Paulo Henriques Britto, Denise Bottmann, Jorio Dauster, Caetano Galindo, José Lira, Leonardo Fróes, Paulo Bezerra, Rubens Figueiredo, Regis Bonvicino, Boris Schnaiderman, William Agel de Mello, Paulo César Sousa, entre outros, responsáveis por traduções imprescindíveis de livros de autores das línguas alemã, espanhola, francesa, inglesa, italiana, russa. Desses destacados artistas das palavras conhecemos hoje poemas, contos, romances, peças de teatro, relatos de viagens e ensaios fundamentais da literatura universal. Exemplos são muitos. Citemos alguns: Schiller, Goethe, Süskind, Hölderlin, Heine, Mann, Hesse, Zweig, Kafka, Rilke, Kundera, Capek, Hrabal (Alemanha e parte da Boêmia), Cervantes, Góngora, Quevedo, Lorca, Paz, Borges, Márquez, Vargas Llosa (Espanha e países de mesma língua), Balzac, Stendhal, Baudelaire, Rimbaud, Valéry, Victor Hugo, Flaubert, Zola, Proust, Mallarmé (França), Shakespeare, Milton, Austen, Kipling, Thomas, Orwell, Elliot, Poe, Faulkner, Passos, Steinbeck, Whitman, Miller, Bishop, Dickinson (Inglaterra e Estados Unidos), Maquiavel, Dante, Boccaccio, Moravia, Ferrante, Calvino, Eco, Pavese (Itália), Púckkin, Dostoiévski, Tólstoi, Tchekhov, Gogol, Górki, Nabokov, Evtushenko (Rússia).
Do britânico Shakespeare ao chileno Vicente Huidobro
Em Brasília, três escritores têm se destacado no ofício da tradução, principalmente de poesia: o falecido Fernando Mendes Vianna (1933-2006), José Jeronymo Rivera e Anderson Braga Horta que, a seis mãos, verteram para a nossa língua Victor Hugo (“O Sátiro e Outros Poemas” e “Dois Séculos de Poesia”, a propósito do bicentenário do escritor francês) e os mais representativos poetas espanhóis de um período expressivamente histórico (“Poetas do Século de Ouro Espanhol”/“Poetas del Siglo de Oro Español”, edição bilíngue, da Coleção Orellana n.º 12, do ano de 2000, da Embaixada de Espanha no Brasil, numa publicação cujo estudo introdutório é assinado por Manuel Morillo Caballero).
O primeiro livro (“O Sátiro e Outros Poemas”) sobre o autor de “Os Miseráveis” saiu pelas Edições Galo Branco, do Rio de Janeiro, em 2002, e traz “Estudo Introdutório” do poeta Fernando Mendes Vianna. Já o segundo volume (“Dois Séculos de Poesia”), publicado pela Thesaurus Editora de Brasília, no mesmo ano de 2002, tem prefácio (“Quem foi Victor Hugo”) também de Mendes Vianna, “Cronologia” de José Jeronymo Rivera e “Epígrafes de Victor Hugo nos principais poetas românticos brasileiros”, capítulo assinado pelo poeta Anderson Braga Horta.
Anderson Braga Horta, a seguir, junta-se ao professor e escritor Rumen Stoyanov na tradução para o português do livro “Contos de Tenetz”, do escritor búlgaro Yordan Raditchkov (1929-2004), conterrâneo do segundo. Trata-se de um livro delicado e extremamente difícil de classificação de gênero, devido a uma característica personalíssima: as dezenove peças que o compõem transitam entre o regional, o infantil e o maravilhoso fantástico, no dizer do próprio Braga Horta, que mais uma vez demonstra sensibilidade poética ao traduzir, a quatro mãos com Rumen Stoyanov, diretamente do búlgaro um livro de ficção de um dos autores mais renomados daquele país. O escritor Yordan Raditchkov deixou uma obra estimada em mais de 60 volumes, entre os quais romances, contos, novelas, peças teatrais, roteiros cinematográficos e diversos relatos de viagens, e que já está traduzida em mais de 30 idiomas. E isso não é pouco.
Com base na sua experiência nesse ramo, Anderson Braga Horta também assina um livro em que apresenta sua própria teoria sobre o assunto. “Traduzir Poesia”, publicado pela Thesaurus Editora em 2004, com recursos oriundos do Fundo de Apoio à Cultura (FAC), sai a lume e traz no seu bojo todo um espectro de motivações sobre a importância da tradução, com seus dilemas e armadilhas, para deleite de leitores e conhecimento de literaturas de quaisquer nacionalidades. Uma grande obra, em que são apresentadas também traduções de quase duas dezenas de poetas, entre os quais Gustavo Adolfo Bécquer, Rubén Darío, Pedro Salinas, Vicente Huidobro, Francesco Petrarca, Paul Verlaine, Charles Baudelaire, Arthur Rimbaud, Rainer Maria Rilke, William Shakespeare.
Traduzindo do português para o espanhol e vice-versa
Acrescente-se a toda essa trajetória, aliás, muito bem realizada, um longo e pertinente painel de momentos nem sempre isolados do autor de “O Cordeiro e a Nuvem”, com versões do português para o espanhol e traduções do espanhol para o português, digamos, de pessoas e poemas em trânsito, porque geralmente servidores diplomáticos creditados em Brasília em algum período de nossa época. Fato esse que demonstra e define muito bem o prestígio do poeta Anderson Braga Horta junto ao público leitor de diversos países europeus e do nosso continente sul-americano, principalmente. Sirvam de exemplos nomes como Trina Quiñones, Sofía Vivo, José Augusto Seabra (1937-2004), Rodolfo Alonso, José Antonio Pérez-Montoro, Eduardo Mora-Anda, Claudio Sesín, dos quais apresentamos a lista de títulos de livros em ordem de publicação:
“Fugitiva”. Trina Quiñones. Thesaurus, Brasília, 1993. (Tradução para o português.)
“Caminhos de Integração” / “Caminos de Integración” / “Paths of Integration”. Sofía Vivo. Thesaurus, Brasília, 1993. “Matemos a Rosa”, “O Tempo do Homem”, “Escorpião”, “Voos” e “Flecha” (traduzidos para o inglês por Asta-Rose Alcaide e para o espanhol por ABH, estes com revisão de Trina Quinõnes). Coube a Anderson Braga Horta a tradução do espanhol para o português dos poemas de Mabel Cháneton, Manila Cháneton, Sofía Vivo (metade) e Trina Quiñones (menos um).
“Vértigo del Verbo”. Sofía Vivo. Brasília, 1995. – Traduções: “Larva”, “À Coreógrafa Denise Zenícola”, “Existência”, “Alegre”, “Morte”, “Quem Sou?”, “Labirinto”, “Vertigem”, “Tecedura”, “Saudade” e “Tenho Árvores”.
“Colóquio dos Centauros” (trad. de Rubén Darío). Separata do Anuario Brasileño de Estudios Hispánicos, n.º VIII, 1997.
“Sac-Nic-Te y sus Memorias de Olvido”. Sofía Vivo. André Quicé, Brasília, 2001. (Tradução para o português.)
“Uma Noite de Poesia Ibero-Americana”. Asociación de Agregados Culturales Iberoamericanos. Folheto de declamação de Fernando Mendes Vianna. Brasília, 18-7-2001. – Tradução para o português de “Un jour rappelle-toi”, de Emmelie Prophète (Haiti), e, para o espanhol, de “Ismália”, de Alphonsus de Guimaraens.
“Poetas Portugueses y Brasileños de los Simbolistas a los Modernistas”. Org. de José Augusto Seabra. Instituto Camões / Embaixada de Portugal em Buenos Aires / Thesaurus Editora de Brasília, Buenos Aires, 2002. Capa de Victor Tagore. 472 pp. – Traduções para o espanhol, com Rodolfo Alonso, José Jeronymo Rivera, José Antonio Pérez, Kori Bolivia, Manuel Graña Etcheverry, Rumen Stoyanov e Ángel Crespo. Notas sobre os poetas brasileiros por José Santiago Naud.
“Antologia Pessoal”. Rodolfo Alonso. Tradução com José Augusto Seabra e José Jeronymo Rivera. Thesaurus, Brasília, 2003.
“Poemas Menores”. José Antonio Pérez-Montoro. Livro na Rua, Série Escritores Brasileiros – Contemporâneos, n.º 9. Thesaurus, Brasília, 2005. 16 pp.
“História dos Ideais”. Eduardo Mora-Anda (“Historia de los Ideales: Valores e Ideales a lo Largo de la Historia”). Thesaurus, Brasília, 2006.
“Antologia Poética Ibero-Americana”. Com Fernando Mendes Vianna e José Jeronymo Rivera. Org. Pavel Égüez. Asociación de Agregados Culturales Iberoamericanos, Cuiabá, 2006.
“Sac-Nic-Te y sus Horas Paganas”. Sofía Vivo. De I a XXIX, o restante a cargo de Antonio Miranda. Metáfora, Buenos Aires, 2007.
“El Libro de los Poemas Casuales” / “O Livro dos Poemas Casuais”. Claudio Sesín. Editorial Dunken, Buenos Aires, 2008. – Trad. dos livros “La Noche sin Después y el Otro Día” e “Poemas Casuales”.
“Salmos del Mar” / “Salmos do Mar”. Eduardo Mora-Anda. Brasília, 2008. [Parte das traduções é de Antonio Miranda.]
Para uma pequena mostra do trabalho de Anderson Braga Horta, como exímio tradutor de poesia, escolhemos um poema de Charles Baudelaire por considerá-lo uma obra-prima da poesia francesa e da poesia universal.

L’Albatros
Souvent, pour s’amuser, les hommes d’équipage
Prennent des albatros, vastes oiseaux des mers,
Qui suivent, indolents compagnons de voyage,
Le navire glissant sur les gouffres amers.
A peine les ont-ils déposé sur les planches,
Que ces rois de l’azur, maladroits et honteux,
Laissent piteusement leurs grandes ailes blanches
Comme des avirons traîner à côté d’eux.
Ce voyageur ailé, comme il est gauche et veule!
Lui, naguère si beau, qu’il est comique et laid!
L’un agace son bec avec un brûle-gueule,
L’autre mime, en boitant, l’infirme qui volait!
Le Poëte est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l’archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l’empêchent de marcher.
O albatroz
Às vezes, em folgança, os homens da equipagem
Capturam o albatroz, a grande ave do mar,
Que segue, companheiro indolente de viagem,
O navio no salso abismo a deslizar.
Mal o privam assim das altitudes francas,
Envergonhado e tonto, esse rei da amplidão
Deixa miseramente as grandes asas brancas,
Como remos, pender e arrastar-se no chão.
Que belo e majestoso era o viajante alado!
Como é frágil no chão, como é grotesco e vil!
Um mete-lhe no bico um cachimbo; outro, arqueado,
Arremeda, coxeando, o exilado do anil.
O Poeta é semelhante ao sublime albatroz
Que ri do arqueiro e arrosta a tempestade no ar;
Exilado no solo em meio à turba atroz,
As asas de gigante impedem-no de andar.
Biografia de Anderson Braga Horta
Anderson Braga Horta nasceu em Carangola, Minas Gerais, em 17 de novembro de 1934. Os pais, Anderson de Araújo Horta e Maria Braga Horta, eram professores e poetas. Assim, criado num ambiente de respeito à cultura e amor aos livros, recebeu em casa mesmo os primeiros estímulos literários.
Depois de passar por Manhumirim, Muriaé, Resplendor, Mutum, a família, então acrescida de Arlyson, Augusto Flávio e Maria da Glória, mudou-se para Goiás (19/3/1942), passando três anos na antiga e dois na recém-inaugurada capital. Na bela e veneranda Cidade de Goiás nasceu o caçula, Goiano. Em Goiânia, onde seu pai foi promotor público, no governo de Pedro Ludovico, o fundador, fez o primeiro ano ginasial.
De volta a Minas, em inícios de 1947, novo périplo, incorporando Belo Horizonte, Aimorés, Mantena, Lajinha, Leopoldina (onde cursou o Clássico). Depois, Rio de Janeiro (onde se formou na Faculdade Nacional de Direito), e finalmente Brasília — cidade para ele desde sempre carismática —, onde se fixou com a mulher, Célia, e onde nasceram os filhos, Marília e Anderson (casado com Janete), e a neta, Fernanda.
Diz ele, apresentando-se na “Antologia Pessoal” editada pela Thesaurus, em 2001: “As primeiras impressões literárias que retenho datam da Cidade de Goiás: uma página de Humberto de Campos em que o autor, na primeira pessoa, confessava um furto de menino — o que me deixou consternado —; e o “Pequenino Morto”, de Vicente de Carvalho, cujos melodiosos hendecassílabos encheram minha alma infantil de tristeza. Em Goiânia me tornei leitor voraz de histórias em quadrinhos e de todos os livros que havia em casa — “Gato Preto em Campo de Neve” e “Clarissa”, “Ecce Homo” e “Assim Falava Zaratustra”, “Meu Destino É Pecar” (isso mesmo, o livro “proibido” de Nelson Rodrigues) e o mais em que pude pôr a mão e os olhos. A impossibilidade de compreender tudo não era obstáculo ao entusiasmo do jovem devorador de letras. Por essa época, apesar da força atrativa dos quadrinhos, que me guiaria a mão numa série de rabiscos, até mesmo numa historieta de texto e desenhos típicos, o autor mais amado foi, sem dúvida, Monteiro Lobato, por sua obra infanto-juvenil, que reputo ainda hoje incomparável”.
Anderson é poeta, contista e ensaísta, com dezenas de livros publicados. E, claro, um tradutor notável — uma ponte universal entre culturas.
João Carlos Taveira é poeta e crítico literário