Ame ao próximo como a ti mesmo: não esmurre nazistas!

08 maio 2022 às 00h01

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Esmurrar nazistas só reforça os extremistas, suas ações e a sua visão de mundo. O melhor mesmo é sair do armário e não ter vergonha de ser bom
Fernando Bueno Oliveira
Especial para o Jornal Opção
Somos essencialmente bons ou o convívio em sociedade nos corrompe? Os seres humanos são maus por instinto ou já fomos “programados” para a bondade? Somos verdadeiros lobos maus egocêntricos ou Homo cachorrinhos que anseiam pela união e interação? São indagações que numa roda de conversas entre estudantes de filosofia podem render horas e horas de discussão, com alta probabilidade de se lembrarem das ideias de Thomas Hobbes e de Jean-Jacques Rousseau para poderem chegar a uma não conclusão sobre a organização da sociedade civil.
O historiador Rutger Bregman, autor de cinco livros sobre história, filosofia e economia e considerado um dos mais proeminentes pensadores europeus, ancora sua discussão, no livro “Humanidade — Uma História Otimista do Homem” (Crítica, 460 páginas, tradução de Cláudio Carina), em torno desses dois pensadores.
Este best-seller é organizado em cinco partes, sendo cada uma delas recheada de uma série de exemplos que conduzem o leitor a perceber o lado bom das pessoas, mesmo em meio a situações críticas. Por meio de relatos de acontecimentos reais, o autor insere em primeiro momento uma ideia pessimista a respeito dos seres humanos para, em seguida, demonstrar que a humanidade tem jeito.
Diante do imaginário social que avalia os seres humanos maus, egoístas por natureza e que agem pensando no interesse próprio, o livro, que facilmente prende a atenção pela linguagem acessível e semelhante ao jeito Yuval Harari de escrever, oferece uma nova perspectiva de análise. Aborda fatos contextualmente relevantes que demonstram que somos mais inclinados à bondade e à solidariedade do que à maldade e ao egoísmo, ideia que vai contra os princípios filosóficos de Thomas Hobbes, por exemplo.
Na avaliação do autor, Hobbes não poderia ter errado mais o alvo: ele caracterizava a civilização numa esfera de maldições. É claro que a visão de Hobbes sobre a civilização estava enraizada em sua experiência com doenças e com a guerra civil inglesa, além de outras calamidades. Mesmo sendo o “pai do realismo”, a sua visão da humanidade, segundo o autor, não era nada realista ao não levar em conta as possibilidades de uma vida em comunidade e, ao mesmo tempo, solidária.

Diante disso, para Rutger, a filosofia de Rousseau faz mais sentido. Ela defende que os grandes problemas da humanidade aparecem a partir do momento em que os seres humanos passam a ser localmente fixos. Doenças infecciosas até então desconhecidas, fome, inundações e exigências de guerra passaram a avassalar a sociedade sedentária. Isso culminou no evento catastrófico que Rousseau tanto lastimava: o nascimento do Estado. Para ele, os homens viviam harmoniosamente, livre de egoísmos, cobiça e ciúmes até serem corrompidos pela sociedade. Autores “realistas” costumam descartá-lo como romântico ingênuo, ao contrário do que pensa Rutger.
Se é verdade que já vivemos num mundo de liberdade e igualdade, por que o abandonamos? O advento de cidades e Estados, da agricultura e da escrita, não resultou em prosperidade para a maioria, mas em sofrimento. Somente nos últimos dois séculos as coisas melhoraram a ponto de nos fazer esquecer o tanto que a vida era péssima. Lembremos que hoje as vacinas salvam mais vidas por ano que o número de vidas que teriam sido poupadas se tivéssemos gozado de paz mundial durante todo o século XX; que agora somos mais ricos que em qualquer outro período; que a abolição da escravidão aconteceu; e, por último, talvez o melhor: que entramos na era mais pacífica de todos os tempos.

Em suma, não há motivos para sermos fatalistas. É nesse contexto que Rutger Bregman narra certos fatos que, antes de “Humanidade”, estavam manchados pela estupidez humana. O que torna esse livro marcante é a arte do autor em trazer uma narrativa pessimista marcada pela violência, morte coletiva e maldade, em primeiro momento, para, em seguida, demonstrar que uma análise mais acurada pode derrubar avaliações preconcebidas, muitas vezes ajuizadas no fervor do momento.
Como ir contra a uma obra consagrada e de sucesso instantâneo intitulada “O Senhor das Moscas” — que trata sobre um grupo de meninos britânicos presos em uma ilha desabitada e sua tentativa desastrosa de autogovernar? Uma história real de náufragos ocorreu em Tonga, com desfecho bem mais amigável que o do romance de William Golding. Ou, ainda, como acreditar que em Nova Orleans, após a passagem do furacão Katrina, persistiram a coragem e o altruísmo, sendo que as reportagens da época demonstraram uma sociedade à beira da anarquia?
É possível pensar em bondade mesmo em situações de guerra? Durante as últimas décadas vêm aumentando as provas de que, em momentos críticos do tipo matar ou morrer, grande parte dos soldados se recusa a agir e só começa a atirar quando supervisionada. Até mesmo em plena Segunda Guerra Mundial havia muita resistência interna, em geral não percebida, a matar um semelhante.

Que tal a história da remota ilha de Páscoa. Durante muito tempo foi unânime entre antropólogos a ideia de que seus habitantes haviam torturado e matado uns aos outros, restando somente um pequeno grupo de nativos. Contudo, uma busca aprimorada por estudos antropológicos na ilha revelou ao historiador Rutger Bregman que não houve guerra nem fome, ninguém comendo ninguém. Os visitantes forasteiros não encontraram uma civilização moribunda: na realidade, eles, os invasores, que a empurraram no abismo.
E quanto à máquina de choque de Stanley Milgram utilizada para um experimento psicológico em 1961 e a experiência nos porões da universidade Stanford dez anos mais tarde, essa última relatada no best-seller “O Ponto da Virada”, de Malcolm Gladwell? Nas duas situações, à primeira vista, imperaram a maldade e a tendência dos seres humanos para atos mais hediondos. Entretanto, nada foi como parecia ser. Talvez a conclusão mais realista é a de que se pessoas boas forem forçadas, empurradas e cutucadas, seduzidas e manipuladas, muitas serão de fato capazes de fazer o mal.
Nem sempre somos meros espectadores: também atuamos por um mundo melhor. Então, por que pessoas boas se tornam más? Voltemos à guerra. Já em fins da Segunda Guerra Mundial, por que os alemães continuavam a lutar tanto? Não era o apelo da ideologia nazista, não tinham qualquer ilusão de que poderiam vencer, não haviam sofrido lavagem cerebral. A verdadeira razão era muito mais simples: kameradschaft. Amizade.
O mesmo se pode dizer dos americanos que lutaram na Segunda Guerra Mundial: a sua principal motivação não eram o idealismo ou a ideologia. O soldado americano não era motivado pelo espírito patriótico, assim como o soldado britânico não era motivado pelo espírito democrático de direito. Não foi pela pátria que aqueles homens lutaram, mas por seus companheiros. Talvez essa afirmação não seja tão facilmente digerida pelo leitor. Conselho de Bertrand Russell (1872-1970): “Nenhuma de nossas convicções é totalmente verdadeira”.
Observemos o outro lado da moeda: os campos de concentração da Segunda Guerra, a crueldade dos soldados do Reich e os atos horripilantes de seus médicos malditos são a prova mais fiel de que por diversos momentos da história a humanidade é submetida a situações de total desumanidade. Algum resquício de bondade em pesquisas insensatas do doutor Mengele? Algum tipo de caridade nas teorias racistas do Reich? Realmente nem Rutger conseguiria visualizar bondade nas feituras da senhora Ilse Koch, por exemplo, apaixonada por tatuagens de deportados e fascinada por luvas, capas para livros e bolsinhas porta-canivetes feitas de pele judia tatuada.
Levemos em conta o contexto atual: o mundo volta o seu olhar à guerra entre Rússia e Ucrânia. Sabemos que ambientes de guerra geram situações calamitosas tais como a migração forçada, mortes de soldados e civis, destruição massiva de prédios do governo e das residências de pessoas comuns, pessoas feridas e mutiladas, separação de famílias, restrições de comida, energia elétrica e de acesso à internet e muito desespero. Parafraseando o capitão Marlow, no romance “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad: “O horror! o horror! o horror!”
Dentre cenas horripilantes, ainda no início da referida guerra, uma imagem propagada nas redes sociais deve ter marcado a muitos: a de um soldado russo que se entrega. Naquele momento foi amparado pelos moradores ucranianos que não vieram com pretensões agressivas ou xingamentos. Mas, muito pelo contrário, trouxeram-lhe chá quente, comida e até um celular para que pudesse falar com a sua mãe. Um gesto de humanidade de cidadãos ucranianos.
Conseguiríamos treinar os nossos olhares paradoxais diante de situações previamente reprovadas pelo consciente imediatista? Comecemos com a ideia de que a esmagadora maioria dos cidadãos é honesta e respeita as leis. Perpassemos por outras como a de que existe uma confiança entre você e seus vizinhos e que esses estão sempre prontos a lhe ajudar; a de que persistem atitudes de benevolência no cotidiano e ações altruístas que podem transformar pessoas e, quem sabe, até ajudar na diminuição do número de encarceramentos penitenciários. Parece forçosa a disposição para pensarmos de que os seres humanos têm jeito, afinal, evidências cotidianas nos provam o contrário.
Paira pela internet uma parábola de origem desconhecida, que contém uma verdade simples, porém profunda.
Um velho diz ao neto:
“Há uma batalha travada dentro de mim. Uma luta terrível entre dois lobos. Um é maligno — raivoso, ganancioso, ciumento, arrogante e covarde. O outro é bondoso — pacífico, amoroso, modesto, generoso, honesto e confiável. Esses dois lobos também estão lutando dentro de você e dentro de todas as outras pessoas”. Depois de um momento, o garoto pergunta: “Qual dos lobos vai vencer”?
O velho sorri e diz:
“O lobo que você alimentar.”
Alimentar o lobo maligno ou o bondoso é o “x” da questão. Basicamente, significa que, existe uma luta dos contrários, quase uma guerra interior em que se evidencia a natureza humana, de fato. O lobo mal ataca por achar que tem razão. E quanto ao bondoso? Esse também é possuidor de dogmas. Diante disso, quem é o dono da verdade, afinal? Raiva, ganância, ciúme, arrogância e covardia produzem indivíduos frustrados. Em todas as circunstâncias que venham sempre a bondade e a amorosidade.
A regra de ouro de praticamente todas as filosofias diz mais ou menos o mesmo: “Não faça com os outros o que não gostaria que fizessem com você”. Essas sábias palavras já eram explicadas pelo pensador chinês Confúcio dois mil e quinhentos anos atrás. Elas aparecem de novo com o historiador grego Heródoto e na filosofia de Platão e, alguns séculos mais tarde, foi codificada nas escrituras judaicas, cristãs e islâmicas. Atualmente, bilhões de pais repetem a regra de ouro aos filhos. Entretanto, nem sempre somos bons em perceber o que os outros almejam.
Por isso, gerentes, presidentes de empresas, jornalistas e formuladores de políticas que acham que sabem o que fazem estão na verdade roubando a voz alheia. É por isso que raramente você vê refugiados entrevistados na TV. É por isso que nossa democracia e o jornalismo constituem basicamente um tráfego de mão única. E é por isso que os Estados de bem-estar social estão impregnados de paternalismo.
Mesmo que não sejamos totalmente bons o tempo inteiro, tempere sua empatia e treine sua compaixão, tente compreender o outro e não se banque de “rebeldinho” que sabe de tudo: esmurrar nazistas só reforça os extremistas, suas ações e a sua visão de mundo. O melhor mesmo é sair do armário e não ter vergonha de ser bom!
Fernando Bueno Oliveira é doutorando em Geografia pela Universidade Federal de Goiás.