Segunda parte da resenha do livro “Liderança — Seis Estudos Sobre Estratégia” (Objetiva, 544 páginas, tradução de Cassio de Arantes Leite), do alemão-americano Alfred Kissinger.

Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

A herança maldita deixada por Adolf Hitler para o povo alemão destruiu a economia daquele país, gerando exorbitantes hiperinflações, que atingiram a autoestima da população que presenciou perdas de entes queridos em praticamente todas as famílias germânicas. Não bastasse o preço pago pela morte de parentes nos campos de batalha, os alemães tiveram outras perdas ante o suicídio de vários de seus cidadãos que procuraram fugir daquela realidade. Somado a isso, os conterrâneos de Albert Einstein estavam completamente descrentes quanto ao futuro de um país que vivia as mais altas hiperinflações do planeta. Faltava tudo: alimentos, remédios, segurança.

 Numa realidade como essa, o país necessitava urgentemente de uma liderança que apontasse a direção que deveria seguir o sistema político. Eis aí um desafio que o povo alemão não tinha dúvidas. Existia, sim, na Alemanha, um homem público com coragem e caráter demonstrados no transcorrer de sua carreira política que teria a envergadura para assumir tamanho desafio. Certamente, esse líder tinha nome e sobrenome: Konrad Adenauer. Líder inconteste da União Democrática Cristã, Konrad Adenauer tornava-se, enfim, chanceler da Alemanha do pós-guerra.

Henry Kissinger relata a ascensão do ex-prefeito de Colônia ao poder pelas qualidades dele sedimentadas na coragem manifestada no momento que o futuro chanceler da Alemanha enfrentou o então poderoso Adolf Hitler, aliada à solidez de um caráter que não se vergou quando resistiu às pressões.

Konrad Adenauer: o estadista que reconstruiu a Alemanha pôs-nazismo | Foto: Reprodução

Vale ressaltar que a eleição do estadista alemão foi, em sua primeira candidatura, bastante apertada, fato que revela o quanto o Estado alemão se encontrava dividido. Basta dizer que o ex-prefeito de Colônia foi eleito com a diferença de apenas um voto. Entretanto a figura do estadista foi sendo paulatinamente respeitada pela sociedade. Essa aprovação transformada em números possibilitou a Konrad Adenauer se eleger quatro vezes consecutivas chanceler da Alemanha. Assim, a coragem e o caráter de que tanto nos fala Kissinger, em seus escritos sob liderança, foram fundamentais para a ascensão do filho de um modesto servidor público, alcançando, então, o mais importante cargo político de seu país

 Henry Kissinger aponta para um importante papel que deve um governante, enquanto líder, necessariamente desempenhar. Falo de mostrar a direção do sistema político. Ao apontar intuitivamente a direção, o líder delineia os objetivos e define as estratégias; que é o caminho que une as certezas do passado com incertezas do futuro. Cabe ao líder escolher gerenciar essa transição rumo ao futuro.

No caso da Alemanha, o ex-prefeito de Colônia refutou a submissão aos vencedores para escolher pela reconstrução de seu país, inserido no contexto da unidade europeia. Entretanto reconheceu os erros do passado, envidando esforços para reparar as vítimas da barbárie nazista.

O autor define essa posição do chanceler alemão como sendo “Estratégia da Humildade”. Para ele, “a estratégia da humildade era composta por quatro elementos: aceitar as consequências da derrota; reconquistar a confiança dos vitoriosos; construir uma sociedade democrática e criar uma federação europeia que transcendesse as divisões históricas da Europa”.

Insere-se na estratégia da humildade um imenso desafio de reaproximação com o povo judeu.  Como esquecer o assassinato de mais de seis milhões de judeus? Eis aí um desafio condizente com a estatura de Konrad Adenauer.

Henry Kissinger: falem bem ou mal, mas é um dos maiores analistas da política internacional | Foto: Reprodução

Liderando o sistema político, a Alemanha investiu consideravelmente na recuperação da combalida economia de Israel. Sobre esse assunto, o autor relata que “as remessas da Alemanha Ocidental a Israel de navios, máquinas-ferramentas, trens, carros, equipamento médico e mais totalizaram entre 10% e 15% das importações anuais israelenses totalizaram 124 bilhões de marcos no geral”. Os esforços do chanceler foram decisivos para recuperação da imagem do seu país junta ao povo Israelense.

 O convite do governo israelense para que Adenauer visitasse o país sinalizava que a estratégia da humildade fora bem-sucedida. Adenauer aceitou o convite e foi a Israel.  Lá, em um jantar em homenagem ao estadista alemão, lembrou o primeiro-ministro Levi Eshkol a Adenauer de doloridas atrocidades do passado.Disse ele: “Não esquecemos e jamais devemos esquecer […] o terrível Holocausto em que perdemos 6 milhões de pessoas do nosso povo. As relações entre alemães e israelenses não podem ser relações normais. As reparações da Alemanha a Israel eram apenas simbólicas e não podiam apagar a tragédia ocorrida.”

O chanceler alemão fez pequena pausa e respondeu: “Sei como é difícil para o povo judeu esquecer o passado, mas se não conseguirem reconhecer nossa boa vontade, nenhum bem advirá disso.”

Henry Kissinger e Konrad Adenauer

A trajetória de Henry Kissinger como servidor de vários governos dos Estados Unidos foi de um brilho absoluto. Do momento que ele foi contratado como consultor do governo do presidente Jonh Kennedy até quando se tornou o principal articulador, no governo do presidente Richard Nixon, das complexas negociações para abertura da economia chinesa para o mundo globalizado, Kissinger estava lá fazendo o que sempre fez: negociar questões de relevante importância para o interesse nacional da nação.

Na condição de operacionalizador das políticas norte-americanas para o exterior, Kissinger teve encontros com praticamente todos os chefes de Estado de importância na diplomacia mundial. Dentre esses, o chanceler Konrad Adenauer foi por ele visitado e, inúmeras vezes, revisitado.

Posto isso, penso ser oportuno reproduzir a narrativa dos primeiros encontros que o autor teve com o chanceler alemão ocorridos em 1957. A narrativa desse encontro ajudará a entender a imensa estatura de um líder fundamental no processo de reconstrução da economia da Alemanha do pós-guerra. Vamos, pois a ela.

“A autoridade de Adenauer se originava em parte de sua personalidade, que combinava dignidade e força. Seu rosto, que ficara parcialmente paralisado com os ferimentos sofridos em um acidente de carro aos quarenta e poucos anos, e sua postura, ao mesmo tempo educada e remota, transmitiam uma mensagem inequívoca: você estava em um mundo guiado por princípios e imune a slogans ou pressões. Ele falava com calma, gesticulando apenas ocasionalmente em prol da ênfase. Sempre preparado para questões contemporâneas, nunca discutia a vida pessoal na minha presença. Tampouco perguntava sobre a minha.”

Henry Kissinger veria a encontrar-se pelo menos 10 vezes com Konrad Adenauer. Mesmo depois da aposentadoria do chanceler alemão, ocorrida em 1963, eles continuaram a encontrar-se. “Nessa época, me tornei um ouvinte compreensivo para reflexões por vezes melancólicas sobre sua vida e o futuro de seu povo”, assim relata o autor.

Liderança mais viva do que nunca

Concluído esse voo sobre a vida do grande estadista alemão, creio ser oportuno discutir a liderança sob o ponto vista da proposta pelo autor, focalizada na figura do grande estadista alemão.

A partir desse prisma, creio que seja importante ter resposta para a seguinte questão: a reconstrução da economia alemã seria bem-sucedida nas mãos de um chefe de Estado que não fosse Konrad Adenauer? Creio de não.  Homens desse gênero são raros, muito raros.

Para isso, voltemos aos atributos apontados pelo autor como necessários para o exercício da liderança: caráter e a coragem.

Enfrentar o então poderoso chanceler da Alemanha Adolf Hitler foi, sem dúvida, um ato de coragem do ex-prefeito de Colônia. Adenauer tinha consciência de que pagaria um preço por essa atitude. Tanto é que um dos primeiros atos do chanceler foi de pressionar o Parlamento para a destituição ex-prefeito de Colônia, isso foi possível pelo fato de Hitler ter ido contra a crença de Adenauer no Estado Democrático de Direito. Não satisfeito com a demissão, Hitler ordenou uma caçada implacável contra seu adversário que nunca dormia duas vezes em um mesmo local.

 Com a derrota do nazismo, a solidez do caráter do novo chanceler se mostrou inabalável nos momentos de elevada pressão. Por agir assim, Konrad Adenauer manteve a direção do sistema político alemão inserido na “estratégia da humildade”, em cujo contexto a Alemanha acertava-se com seu passado genocida, mas lutando para construção de novo futuro no qual o país se integrava ao continente europeu. Na União Europeia dos nossos dias, a Alemanha é a maior potência econômica da Europa. Passado mais de meio século da morte de Konrad Adenauer, sua liderança é mais viva do que nunca.

Salatiel Soares Correia é éngenheiro, administrador de empresas, mestre em Energia pela Unicamp. É autor de oito livros relacionados aos temas Energia, Política,Economia e Desenvolvimento Regional. É colaborador do Jornal Opção.

Leia a primeira parte da resenha