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Carlos Russo Jr.

O Nobel de Literatura Günter Grass sublinha que a educação religiosa da espécie humana vai sempre falar de eternidade. É uma forma de ocultar a barbárie cometida por nossa espécie biológica.

Existiram, na Alemanha nazista, mais de 1600 guetos e campos de concentração e extermínio para raças “inferiores” (judeus e ciganos) e para inimigos políticos. Seis, oito, dez, quantos milhões de mortos? (Durante toda a guerra, entre 1939 e 1945, morreram de 60 milhões a 80 milhões.)

A Faixa de Gaza nada mais é que a reprodução do Gueto de Varsóvia destruído e massacrado pelos sionistas comandados por Benjamin Netanyahu. Netos e bisnetos de chacinados se transformam, eles mesmos, em assassinos.

Günter Grass (1927-2015), Nobel de Literatura de 1999, mescla sonho e realidade, passado, presente e futuro. “A Ratazana” (Record, 417 páginas, tradução de Lya Luft) resgata personagens para conviverem com um rato que tenta demonstrar que sua espécie irá dominar a Terra, dando início a uma nova era. O rato entra em todas essas histórias, criando suas próprias, desafiando o narrador em seus sonhos e em suas realidades, discutindo com ele, interrompendo e desafiando.

Durante o aniversário de 107 anos da avó de Oscar, por exemplo, é exibido um vídeo sobre o reflorestamento da Alemanha. Este é conduzido por personagens das fábulas do Irmãos Grimm e pelos próprios Grimm, que aparecem na história como ministros do meio ambiente do governo de Bonn. E lá também está o rato.

Günter Grass: escritor lutou na Segunda Guerra Mundial ao lado dos nazistas | Foto: Reprodução

O narrador luta, por sua vez, para preservar a espécie humana, escrevendo suas memórias dentro de uma nave que circunda o planeta destruído. Enquanto escreve sobre seu próprio passado, imagina um futuro apocalíptico e terrível.

Em “A Ratazana”, talvez o mais distópico romance jamais escrito, Günter Grass desenvolve todo seu senso de observação e interpretação, e divaga sobre a condição humana e dos animais.

Um romance erudito e assustador.

O holocausto nuclear anunciado e Gaza

No livro, o fim do espécime humano e de todos os seres vivos, exceto os ratos, viria com o grande holocausto atômico.

O ministro do Patrimônio de Israel, o rabino Amichay Eliyahu, foi questionado pela Rádio Kol Berama, uma estação de rádio ortodoxa, se uma arma nuclear deveria ser usada em Gaza. Eliyahu respondeu: “Este é um caminho”.

É claro que o ministro se referia à bomba nuclear de nêutrons, aquela capaz de eliminar todo o vestígio de vida humana onde é detonada. Mas sem destruição do “patrimônio”, que, sob a forma de terras e de seus parcos bens seriam roubados da raça em extinção: os palestinos.

Em sintonia com Eliyuhu, um capitão do exército de Israel, o rabino Amichai Friedman, falou às suas tropas: “Esse é o mês mais feliz da minha vida…finalmente percebemos quem nós somos. Toda essa terra é nossa, toda a terra incluindo Gaza e Líbano. Vamos destruir todo mundo”.

Palavras psicopatas, mas felizes, com o propósito de limpeza étnica…vindas de um oficial rabino israelense, e com aplausos da tropa.  

Suas confissões têm a forma acusatória. A retórica, esta é similar à nazista.

“A Ratazana” desenvolve o raciocínio das bombas atômicas ditas “táticas”.

As bombas de nêutrons somente atuam em determinadas regiões, excluindo todo tipo de vida animal: “A princípio o ser humano se iria desidratando, encolhendo, até resumir-se a um farrapo que pode ser simplesmente varrido, descartado. Com a bomba de nêutrons os fornos e valas perdem suas funções”.

Um trabalho que teria os cumprimentos de Adolf Hitler, se ele ainda vivesse. Afinal, o Führer e Heinrich Himmler não lograram apagar os vestígios de seu genocídio.

“A Ratazana” causou polêmica

Por ocasião do seu lançamento na Alemanha, “A Ratazana” deu origem a uma enorme polêmica, tendo o governo chegado a cogitar em processar o autor, Günter Grass. Aliás, apenas desistiu do processo ao lhe ser concedido o Prêmio Nobel de Literatura.

Amichay Eliyahu, ministro: a desumanidade de um rabino | Foto: Reprodução

Trata-se de um romance a que não se pode ficar indiferente, e que alguns consideram a mais radical das profecias sobre a catástrofe ecológica que vivemos e a uma possível catástrofe nuclear que àquela se somaria.

O livro conta-nos a história, ou histórias, do fim da era humana, e tem como um dos seus protagonistas uma ratazana, representante de uma espécie que pressente e sobrevive a todas as desgraças, abandona os navios que vão naufragar e nos acompanha desde que surgimos no planeta.

Num incessante confronto com a voz glacial do rato, o autor luta por chegar ao fim das suas narrativas, na consciência de que talvez reste pouco tempo para serem contadas e ouvidas, uma vez que se aproxima o momento em que terão fim todas as histórias.

“Basta vocês são coisas do passado não existem mais, são lembrados como loucura.” “Nunca mais vocês vão dar as cartas, diz o rato, referindo-se à humanidade”.

“Mais do que o homem, duram os seus detritos. Dele tão somente o lixo sobreviveu.” Nós produzimos nosso próprio futuro, são as palavras do personagem Matzerath.

Apesar do sucesso retórico das autoridades de plantão, as florestas não param de morrer, as substâncias tóxicas continuam escapando, ninguém sabe o que fazer do lixo, e morrem até mesmo os últimos peixes do Mediterrâneo. E as ameaças nucleares, sempre presentes, prometem vingar, ontem como hoje.

Um drama: a humanidade ante sua extinção

“Vivemos hoje e cada dia é o último. Com o terror, nossa segurança cresce, diziam eles. Ou o progresso tem seu preço. Ou não se pode conter o desenvolvimento técnico ou ainda não queremos voltar a idade da pedra. A língua de ilusionistas era tolerada.”

As mentiras caminham a passos largos, antes de terem as pernas curtas.

“Viveríamos uma série de outras catástrofes como grandes incêndios, inundações terremotos e períodos de seca.”

Diz a ratazana sobrevivente ao holocausto nuclear: “O homem, levado pelo ódio a seus semelhantes, procurou-nos dentro de si, sem mais delongas nos encontrando, assinalando, aniquilando. Ontem os hereges e degenerados, e sempre a quem os poderosos reputavam inferiores ou consideravam escória: simplesmente os exterminavam”.

Parcela da Europa e dos Estados Unidos, aliados de Israel, vê os palestinos como a “ralé” que pode ser trucidada a bala, a bombas, a faca e, se necessário, pelas bombas táticas de nêutrons.

  “Vocês programaram o extermínio. O homem, metodicamente, transforma em números seus semelhantes, números que se podem cortar, passar simplesmente um traço por cima. Anular é o termo que usavam para contabilizar as baixas!”, fala a Ratazana.

Ensina-nos Günter Grass que a educação religiosa da espécie humana vai sempre falar de eternidade. É uma forma de ocultar a barbárie cometida por nossa espécie biológica.

Tanto no século passado quanto no atual, as guerras locais não serão capazes de impedir a guerra geral, assinala Grass. Apenas fazem-se multiplicar os crimes contra a própria humanidade.

“Milhões de desempregados que vocês dizem liberados do trabalho e outros eufemismos e no final, vocês estão fartos até mesmo da sabedoria valiosa que se estendia dos provérbios de Salomão ao último livro de Broch¹”, resmunga a Ratazana.

Não reconheço mais partidos, só vejo interesses. Falsear e falsificar converteram-se genericamente numa forma de vida, que logo tornou-se governamental, diz o narrador.

Até mesmo os contos de fada morreram. E, junto com eles, as florestas; após a hecatombe atômica, os homens deixarão nesta terra apenas lixo, lixo tóxico, lixo atômico, lixo, lixo, florestas queimadas destruídas, poluição total, oceano sem peixes tomado por algas.

E, ao final, as bombas atômicas encerrarão nossa era.

O ministro afastado de Israel não falou só: apenas teve a coragem de exaurir o pensamento do governo de Israel e de parcela da própria humanidade.

Nota

¹ O último livro do escritor austríaco Hermann Broch é o romance “A Morte de Virgílio” (Nova Fronteira, 502 páginas, tradução de Herbert Caro).

Carlos Russo Jr. é crítico literário e escritor.