Livro de Miguel Sanches tem como cenário um Brasil imperial e escravocrata, e pouco influenciado pelas ideias científicas que grassavam nos Estados Unidos e na Europa

Mariza Santana

O século 19 foi um período importante da história da humanidade, principalmente para os povos ocidentais. Foi marcado por invenções e descobertas, com desenvolvimento em vários campos do conhecimento, como a matemática, a física, a química, a biologia, a eletricidade e a metalurgia. Durante essa era, foram lançadas as bases dos avanços tecnológicos do século 20, assim como as sementes colonialistas que levaram a duas grandes guerras mundiais.

Na área artística, já no seu final, o século 19 foi marcado pelo surgimento da escola impressionista, que revolucionou a forma de se pintar. Seus artistas usavam pinceladas rápidas em suas telas, trabalhavam ao ar livre; e valorizavam mais a impressão do pintor a respeito da paisagem, suas cores e formas, do que os cânones determinados pela escola acadêmica da época. Foram os pintores impressionistas — Claude Monet, Édouard Manet, Renoir, Cézzane, Pizarro e outros — os percursores da arte moderna do século seguinte.

Mas lá pelos idos de 1860, justamente quando obras de um grupo de pintores franceses começavam a apontar o início da fase impressionista na Europa, no Brasil ainda pouco havia dessa efervescência cultural e científica. O país tupiniquim era um vasto império escravocrata, ainda apoiado fortemente na agricultura e com uma indústria incipiente.

Na ocasião, a realização da primeira Exposição Nacional, em 1861, prometia tirar o nascente país situado nos “tristes trópicos” de seu sono profundo, para alçá-lo de imediato ao momento de desenvolvimento científico que já ocorria na América do Norte e na Europa. Vindo de Recife, a bordo de um navio vapor, o padre Azevedo trazia consigo, como principal bagagem, um invento de sua autoria para ser exposto no evento, e muita esperança dos resultados da exposição.

Miguel Sanches Neto: escritor, crítico literário e professor universitário | Foto: Reprodução

O invento do religioso era uma máquina taquigráfica, cuja concepção havia consumido inúmeros anos da vida desse paraibano, nascido em João Pessoa, que havia se mudado para a capital pernambucana. E no Arsenal de Guerra do Recife, auxiliado por estudantes órfãos, havia se dedicado mais à concepção e fabricação do tal equipamento do que a seus deveres sacerdotais.

A apresentação da máquina taquigráfica no maior evento científico brasileiro realizado até então, no Rio de Janeiro, e a vida de seu inventor, são o tema do livro “A Máquina de Madeira” (Companhia das Letras, 240 páginas), do escritor paranaense Miguel Sanches Neto. Na narrativa estão personagens históricos, como D. Pedro II e Mauá, que viria a ser o maior empreendedor capitalista do país naquele período.

O escritor nos apresenta como principal cenário uma cidade do Rio de Janeiro bem diferente dos dias de hoje. A então capital da Corte brasileira abrigava uma grande população de escravos. A maior parte da aristocracia era composta por proprietários de terra, mais interessados em invenções que poderiam aumentar a produtividade de seus engenhos de açúcar do que em uma engenhoca que poderia escrever mecanicamente.

Francisco João de Azevedo: padre que inventou a máquina de escrever | Foto: Reprodução

O romance de Miguel Sanches Neto não segue uma ordem cronológica linear, mas aos poucos vai apresentando mais detalhes sobre a vida do obscuro padre Azevedo, sua infância de órfão pobre, sua vida modesta, mas inteiramente dedicada a aprimorar sua principal invenção: uma máquina que poderia substituir a escrita à mão dos taquígrafos pelas teclas, um equipamento com base de madeira que mais parecia um piano diferente para os olhares menos atentos.

Mas da criatividade do padre nordestino surgiu a percussora da máquina de escrever. Como já era de se esperar nesse Brasil rural e escravocrata da segunda metade do século XIX, o invento não teria o reconhecimento necessário. Embora selecionado para a Exposição Nacional, a máquina taquigráfica não chamou a atenção, nem do imperador amante das ciências, e muito menos do futuro capitalista e barão de Mauá, ou de outro provável patrocinador.

Padre Azevedo voltaria a Recife sem o apoio necessário para desenvolver o seu invento e torná-lo viável comercialmente. Até que um comerciante norte-americano fica sabendo da novidade, faz uma visita ao inventor, troca ideias, faz promessas, recebe todos os detalhes da concepção do novo equipamento e… Bom, o restante da história é fácil adivinhar. Não pretendo contar mais nada para não tirar o prazer da leitura desse romance histórico (gênero que tanto aprecio).

Se o padre Azevedo existiu ou não, ou se é fruto da imaginação do escritor, isso é apenas um detalhe. Pois sua prosa é tão envolvente, e o protagonista tão forte em sua debilidade, que o leitor vai acompanhando, página por página, o desenrolar do romance.

Antes de continuar, vamos fazer um parênteses para pesquisar na Internet a respeito da máquina de escrever. Segundo ela, a invenção de um primitivo dispositivo de escrever mecanicamente é atribuída a Henry Mill, em 1713. O italiano Pellegrino Turri introduziu, em 1808, o sistema de teclado. Posteriormente, o mecânico norte-americano Carlos Thuber criou um modelo aperfeiçoado, com maior rapidez de escrita, em 1843.

Informações acima à parte, não seria surpresa se, ao invés do inventor do modelo aperfeiçoado da máquina de escrever ter sido um norte-americano, o verdadeiro autor tenha sido um humilde padre perdido em uma província de um Brasil arcaico e escravocrata.

Afinal, até nosso mais ilustre inventor, o mineiro Alberto Santos Dumont, conhecido como Pai da Aviação e responsável pela construção do 14 Bis, que teve seu voo documentado em Paris, tem seu posto contestado em favor dos irmãos Wright.

Esses norte-americanos são apontados como inventores e pioneiros da aviação, aos quais foi concedido o crédito de terem desenvolvido a primeira máquina voadora mais pesada que ar. Justamente porque, como bons capitalistas que eram, patentearam sua invenção.

Mariza Santana é crítica do Jornal Opção. E-mail: [email protected]