A arte de Isadora Vilela contra os hipopótamos insones de Zeca Baleiro
12 maio 2024 às 00h00
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Ademir Luiz
Especial para o Jornal Opção
A colagem é a categoria das artes plásticas que melhor resistiu à tentação do hermetismo da estética artística contemporânea. Acredito que isso aconteça porque a colagem é um estilo de produção estética moderna por definição, criada no contexto moderno, permanecendo impermeável aos cacoetes pós-modernos, que transformaram as linguagens artísticas em jogos criativos isentos de limites e não mais em catalizadores de objetos físicos compostos por códigos de discurso delimitados pelos próprios elementos que o compõem. A colagem, para fazer sentido em si, necessita comunicar. A comunicação está no DNA de sua concepção, o que não impede voos de imaginação, dependendo do talento e do repertório de cada criador.
O contexto do surgimento da colagem conforme conhecemos hoje está filiado aos movimentos de vanguardas artísticas da modernidade.
O cubismo analítico estava se transformando em cubismo sintético, que é a denominação oficial dada à introdução de papier collé por Braque e Picasso, uma expressão que deriva do verbo francês coller, colar ou grudar. Esses dois grandes pioneiros da arte haviam mais uma vez triunfado: tinham inventado a colagem (…) Parecia tão óbvio, tão fácil; tão infantil. Mas antes de Braque e Picasso ninguém, absolutamente ninguém, tinha pensado nisso como uma forma de arte. (Gompertz, 2013, p. 152).
O crítico e historiador da arte E. H. Gombrich, em seu monumental A História da Arte, cita a figura lendária do refugiado alemão Kurt Schwitters (1887 – 1948), autor da célebre colagem “Tinta invisível”, de 1948, como um símbolo da atitude fundamental do artista que decide dedicar-se ao coller. “Schwitters usou bilhetes de ónibus jogados fora, recortes de jornais, trapos e outras sobras, e colou-os para formarem um buquê divertido e de bom gosto (…). Era certamente desejo desses artistas tornar-se como que crianças pequenas e fazer pouco caso da solenidade e pomposidade da Arte com A maiúsculo” (1983, p. 476). Uma pomposidade que, atualmente, caracteriza-se pela negação da clareza.
Sabemos que comunicar não é mais uma prioridade na arte. Parece ser tendência universal em, por exemplo, instalações, vídeo arte ou performances a busca pelo discurso deliberadamente impenetrável. Nestes casos, a interpretação da obra de arte não pode mais ser direta ou intuitiva, precisa passar pela tutela de intérpretes oficiais ou, num registro diametralmente oposto, recusar-se a se encaixar nos limites de caixinhas de sentido explícitos ou implícitos. A proposta é que ter sentido deixou de ter sentido, bastando a construção imagética do objeto final para justificá-lo, independente de explicações. Obras como o tubarão morto no formol de Damien Hirst, as fotos de sexo explícito entre Jeff Koons e Cicciolina ou os excrementos enlatados de Piero Manzoni simplesmente existem e ponto. Ou talvez nem exista, como a escultura invisível de Salvatore Garau.
É compreensível que esse status quo gere estranhamento no público em geral ou mesmo no público culto não especializado. O que não se pode ignorar é que tal cenário não surgiu do nada, ele foi maturado ao longo de complexos processos históricos, analisados com erudição por figuras do porte intelectual de Arthur Danto e Roger Scruton. O que não nós impede de rir da famosa piada sobre o extintor de incêndio confundido com uma escultura numa exposição de arte contemporânea.
Na letra da música “Bienal”, o cantor e compositor Zeca Baleiro ironizou essa perspectiva escrevendo que:
Minha mãe certa vez disse-me um dia,
Vendo minha obra exposta na galeria,
“Meu filho, isso é mais estranho que o cu da gia
E muito mais feio que um hipopótamo insone”.
Pra entender um trabalho tão moderno
É preciso ler o segundo caderno,
Calcular o produto bruto interno,
Multiplicar pelo valor das contas de água, luz e telefone,
Rodopiando na fúria do ciclone,
Reinvento o céu e o inferno.
Não encontramos hipopótamos insones na obra da artista plástica Isadora Vilela.
Ela nasceu em Goiânia, capital de Goiás, e formou-se em Direito pela Universidade Federal de Goiás, especializando-se em Direito Público. Atua como analista judiciário no Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região. Em paralelo com a formação e atuação jurídica, construiu sua formação em artes visuais primeiramente explorando a linguagem fotográfica. Em meados de 2015 participou do curso de fotografia da escola “Canopus”, em 2016 fez a oficina de “Luz Natural” com o professor Antônio Marcos Brasiliense e em 2017 foi selecionada para participar do workshop “Trajetória e processo criativo”, ministrado pelo fotógrafo Cássio Vasconcellos, no âmbito do Festival de Fotografia Goyazes. Aprendeu que “como uma tecnologia moderna de cunho popular, a fotografia estava em ótima posição para assumir um papel central na arte de vanguarda” (Hacking, 2012, p. 13).
Esses estudos sobre fotografia tiveram um papel importante no passo seguinte de sua trajetória artística, o interesse pela técnica de colagem sobre papel, a colagem analógica. Intervenções sobre fotografias antigas ganharão protagonismo em suas criações posteriores. Incorporou em seu projeto estético uma velha polêmica conceitual dos primórdios da técnica fotográfica. Em contraponto a defesa da pureza da foto como objeto artístico por si mesmo, “um conceito oposto de fotografia afirma que ela não possui características inatas. Sua identidade, portanto, dependeria dos papéis e das aplicações a ela atribuídos” (Hacking, 2012, p. 14).
Ainda em 2017 realizou duas oficinas de colagem com o artista Wolney Fernandes, no espaço da Plus Galeria/Goiânia, “Oficina dos Começos” e “Con Vivência com Colagem”. Desde então, tem feito diversos trabalhos como colagista, associando à técnica de colagem sobre papel, diversos elementos e experimentações, a exemplo de bordados, aquarela e pastel seco. A partir de 2023, após realizar curso de cianotipia botânica com a artista plástica Letícia Volpi, integrou essa técnica de impressão fotográfica aos trabalhos de colagem.
Isadora Vilela expos seus trabalhos em uma série de exposições, como o “Di (ver) cidades II”, realizado em 2017 na Galeria Studio Art MD’Azevedo, em Brasília. Em 2018 realizou a Exposição individual “C(alma) e Flor”, integrante das atividades da 5ª Semana de Responsabilidade Socioambiental do Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região; e as exposições coletivas “IX Quarteto em Mostra”, no Hotel Serras de Goyaz, e a “Olhares Pictóricos”, em parceria com a artista Yves Amui, na Livraria Palavrear, em Goiânia. Ainda em 2018 participou das exposições coletivas “Vinylism”, “The Tent Gallery”, em Edimburgo, na Escócia, e de uma mostra organizada pela galeria “Well Well Well Art Project”, de São Paulo. Em 2019 participou de três exposições em Goiânia. Da 15ª Exposição coletiva “Sincretismo”, ao lado dos artistas Dalmo Antônio, Deni Vilela, Fé Córdula e Laurice Noleto, no Espaço Cultural CRD; da COLAB, exposição de obras de colagem com curadoria dos artistas Marcelo Maróstica e André Borelli, no espaço Dox Garden Coworking e da “Nova”, exposição coletiva de artistas goianos, no estacionamento Stop Car. Em 2023 participou da produção de um mural coletivo do Festival Internacional de Lambe Lambe de Goiânia. Como mostra permanente, usando o potencial de divulgação das redes sociais, a artista divulga seus trabalhos no perfil do Instagram denominado @acervovintage_colagens.
O uso da palavra “vintage” para definir o conceito geral da produção exposta no perfil não é por acaso. De acordo com o “Dicionário On Line da Língua Portuguesa” o significado de Vintage seria “quaisquer produtos antigos e de excelente qualidade; estilo de vida que retoma os conceitos utilizados entre os anos 20 e 60, aplicando-se, principalmente, no vestuário, objetos decorativos, móveis etc”. Apesar de pertencer a Geração Y, de ser uma millennial, Isadora Vilela não é uma apologista da tecnologia. Sua opção pela colagem analógica testemunha esse fato.
Segundo Isadora Vilela, seu processo criativo em colagens “começa a partir de pesquisas em revistas, livros, fotos e toda a espécie de impressos, preferencialmente, os antigos e com nódoas do tempo. Neste estágio, há um processo minucioso de escolha e recorte das figuras. E, na sequência, os fragmentos e imagens soltos e descontextualizados são reunidos em novos rearranjos e composições por meio da colagem propriamente dita, adquirindo, assim, novos significados e narrativas”.
A palavra-chave para compreensão da criação artística de Isadora Vilela é “narrativa”. Sua principal pretensão é construir, ou reconstruir, narrativas por meio de imagens que inicialmente, isoladamente, não dialogariam. O começo de sua criação não é a interioridade, como seria por exemplo no caso de uma pintora abstrata ou artista performática, mas o mundo real e objetivo, suas referencias culturais e históricas disponíveis em imagens impressas. É somente a partir dessas referências selecionadas que a artista intervém para criar a partir de sua subjetividade, não visando expor um discurso dado e oculto, mas criando um discurso possível. Que pode ser crítico, cômico ou lírico.
Neste sentido, Isadora Vilela é uma artista plástica que cria por meio de obstáculos autoimpostos. Diferente de, por exemplo, Kurt Schwitters que produzia colagens como mosaicos preocupados, sobretudo, com o equilíbrio das formas, submetendo essas ao discurso crítico subjacente, Isadora Vilela trabalha como uma poeta visual que cria imagens inusitadas a partir de propostas muito bem definidas.
Essas limitações não são, porém, limitadoras, uma vez que “investigando com uma análise sutil a atividade dialógica a partir da qual o artista, limitando-se diante do obstáculo, encontra sua liberdade mais verdadeira, pois passa do indistinto das aspirações vagas ao crivo concreto das possibilidades do material com o qual luta, cujas leis reconstrói aos poucos no quadro de uma organização que as transforma em leis da obra” (Eco, 2016, p. 16). Ao organizar seu universo estético, a artista cria uma obra consistente, tanto internamente quanto externamente. Internamente na medida em que é possível vislumbrar um estilo muito bem definido, ainda que em constante evolução técnica e estética. Externamente porque o mundo visual proposto por Isadora Vilela, potencialmente, encontra eco na experiência do expectador que estiver disposto a entrar nele, a decifrá-lo, sendo que o sucesso da empreitada vai depender do repertório do próprio expectador, não da descoberta de chaves ocultas de hermetismo impenetrável. Isadora Vilela cria para ser compreendida, não para gerar confusão hermenêutica.
Em Isadora Vilela, “o deslocamento e a condensação superam as contradições do contraste fazendo com que a estranheza surja quando se percebe, de súbito, que os elementos opostos se integram e convivem num espaço comum” (Cañizal, 1986, p. 34). Portanto, mais uma vez, suas colagens não são uma manada de hipopótamos insones. Isadora Vilela pretende comunicar mensagens muito específicas em cada um de seus trabalhos. Se seremos capazes de compreender sua narrativa é outro problema. São narrativas simples, no sentido de sua coerência interna e horizonte de expectativas de debate, mas nunca simplistas.
Embora dialogue com a psicanálise e traga influências visuais surrealistas evidentes, seu trabalho não se filia a essa corrente artística. O Manifesto Surrealista define o movimento da seguinte forma:
Surrealismo, n. m. Automatismo psíquico puro mediante o qual se tem o propósito de expressar, seja verbalmente, seja pela escrita ou por qualquer outro meio, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento que não sofre o controle exercido pela razão e que se mantém à margem de qualquer preocupação estética ou moral (1985, p. 37).
Neste caso, forma não é conteúdo. A arte de Isadora Vilela é “estética e moral”, não onírica ou desapegada da realidade. É fortemente crítica e combativa. A estética surrealista é usada para questionar a realidade, não para desconstruí-la acriticamente. A artista usa a beleza e o encantamento da manipulação das formas para despertar, muitas vezes acusar, não para entorpecer. Sempre trás temas sociais e mesmo quando eles não estão presentes explicitamente, então nas entrelinhas.
Em suas colagens, uma criança nunca é apenas uma criança no que está possui de fofo e delicado, é sempre a representação de uma criatura frágil, à mercê do tempo e do mundo dos adultos. Uma mulher nunca é apenas uma mulher no que ela teria de belo ou sedutor, baseado unicamente em formas, essa mulher é sempre um ser em constante busca, lutando para se encontrar em ambientes hostis ou, pelo menos, inusitados; deitadas em praias forradas de pedras, como veremos.
Um homem, um casal, uma família, grupos de trabalhadores ou burgueses sempre estão ali como representantes da coragem, profundidade, fragilidade, curiosidade, insegurança ou insensatez humana. Não por acaso, a figura humana sempre está presente no trabalho de Isadora Vilela. Podem estar remodelados, disformes ou desconstruídos, mas são onipresentes. A natureza morta pode ser objeto de narrativa, o ser humano é a própria narrativa. É a narrativa que lhes faz humanos.
Umberto Eco ensinou que “o primeiro passo para interpretar uma obra de arte é buscar uma intenção originária e o primeiro passo para fazer uma obra de arte é estabelecer uma intenção formativa. O que acontece, então, com quem encontra, passeando pelo campo, um seixo moldado de forma curiosa e, ao pegá-lo, pensa numa escultura de Brancusi?” (2016, p. 183). Proponho selecionar alguns trabalhos de Isadora Vilela e procurar interpretar suas intenções originais a partir desse pequeno recorte.
A colagem “Uma luzinha brilhante longe, longe” foi postada no @acervovintage_colagens no dia 27 de abril de 2018 acompanhada da seguinte legenda “Que barato construir narrativas a partir de múltiplos fragmentos. A capa de um disco de infância do Luiz, um livro de botânica do meu pai, uma revista Cruzeiro encontrada em um mercado de pulgas de SP e um livro de contos dos Irmãos Grimm foram meus combustíveis pra criar essa composição”.
A legenda, algo não comum no perfil, expõe tanto as intenções da composição quanto o encontro com o “seixo moldado de forma curiosa” que inspira sua transformação em “escultura”; obviamente, entenda-se “escultura” aqui como sendo obra de arte em sentido amplo. Tomarei essa legenda como uma indicação de poética da artista, aplicando-a como motivação recorrente. Sobretudo no que tange ao método de escolha de materiais, uma vez que:
A técnica com que a sociedade industrial organiza sua atividade; e o que a ela se contrapõe é uma técnica não-projetual, que consiste em tomar e utilizar coisas ou imagens que fazem parte do contexto social, do ambiente. É a técnica que Lévi-Strauss, do ponto de vista da antropologia cultural, chama de bricolage: a do primitivo que vive da coleta (…) Há três hipóteses: ao comportamento da sociedade em relação aos mesmos objetos, o artista opõe um comportamento diferente e contraditório; o artista repete um comportamento da sociedade; o artista revela o verdadeiro comportamento da sociedade, sob a ordem aparente de sua projetualidade tecnológica. Está última é a hipótese mais plausível: a sociedade industrial ou “de consumo” reconduz a sociedade a um nível pré-histórico, transforma o homem civilizado num primitivo, num selvagem, num bricoleur (Argan, 1992, p. 558 – 559).
Essa atitude bricoleur, em um contexto contemporâneo, no qual há amplas discussões sobre motivações artísticas, é traduzida na elaboração de códigos de representação da realidade. Neste trabalho em particular há a presença de alguns elementos que tomarão escala de leitmotiv na obra da artista.
O primeiro é o uso de capas de disco para pontuar ou delimitar o espaço ocupado pela intervenção artística da colagem. Certamente, trata-se de uma incorporação da rica tradição pictórica representada pelas capas de discos de vinil, antes do surgimento do CD, que reduziu as possibilidades estéticas da arte produzida pelas gravadoras, e agora quase que completamente extintas pela massificação do consumo de música via aplicativos e plataformas de compartilhamentos de produções audiovisuais. Uma apologia vintage por definição.
Além disso, essa delimitação do
espaço do quadro, enquanto espaço real, é capaz de acolher elementos retirados diretamente da realidade; uma das inovações técnicas mais sensacionais é, de fato, a aplicação de pedaços de papel, de tecido etc. (collage). É uma maneira drástica de destruir o preconceito de que a superfície do quadro era um plano para além do qual se distinguia a invenção de um acontecimento: a pintura, a partir de agora, é uma construção cromática sobre o suporte da superfície (Argan, 1992, p. 305).
O segundo leitmotiv é a presença de elementos em preto e branco dividindo o espaço da superfície com elementos coloridos deliberadamente desgastados pelo tempo, como se estivessem caminhando para também perder sua pigmentação. As cores lavadas pelo tempo reforçam a estética vintage, sobretudo se pensarmos que a objeto dominante é um automóvel antigo, guiado por crianças que seriam idosas ou talvez já estejam mortas hoje, ainda que o registro fotográfico tenham-nas congelado no tempo, como observou Roland Barthes em seu ensaio sobre fotografia Câmara Clara.
Segundo Barthes, “a fotografia transformava o sujeito em objeto, e até mesmo, se é possível falar assim, em objeto de museu (…). O fotógrafo tem que lutar muito para que a fotografia não seja a Morte” (2017, p. 19 – 20). Reutilizar uma fotografia que antes foi peça de propaganda ou registro jornalístico na concepção de uma obra de arte seria a mais permanente forma de perpetuação dos indivíduos registrados, ainda que suas identidades pessoais tenham se perdido, garantindo-lhes a condição de objetos de museu, mas museu de arte, não apenas museu de rememoração ou arquivamento.
Ao trazer fotos para suas colagens, Isadora Vilela dialoga com a polêmica afirmação de Susan Sontag de que:
Faz sentido que uma pintura seja assinada e uma foto não (ou que pareça mau gosto assinar uma foto). A própria natureza da fotografia implica uma relação equívoca com o fotógrafo como auteur; e quanto maior e mais variada a obra de um fotógrafo talentoso, mais ela parece adquirir uma espécie de autoria antes corporativa do que individual. Muitas fotos publicadas pelos maiores nomes da fotografia parecem obras que poderiam ter sido feitas por outros profissionais de talento do mesmo período (2004. p. 159).
Portanto, independentemente da fotografia ser em si arte ou não, uma vez incorporada à colagem, pela própria natureza de sua técnica analógica, o elemento artístico passa a ser incontestável.
O terceiro aspecto é a presença de elementos vegetais contextualizados como contrapontos aos objetos tecnológicos. No caso de “Uma luzinha brilhante longe, longe” temos folhas verdes saindo do escapamento do automóvel, como se o fato do veículo ser guiado por crianças purificassem o gás carbônico produzido pelo motor à combustão.
O quarto são elementos circulares ou semicirculares em posição de destaque ou mesmo no ponto de fuga da imagem. Em “Uma luzinha brilhante longe, longe” trata-se de um disco solar ou aureola dupla circundando as crianças motoristas.
O quinto e mais significativo elemento é a presença de tarjas cobrindo os olhos de pelo menos uma das figuras humanas em destaque. A questão do olhar, ou do não olhar, é fundamental no trabalho de Isadora Vilela. Seus personagens podem querer olhar e ser impedidos, podem olhar e não ver, podem ser cegos de orgulho, podem ver independentemente dos obstáculos à visão. Tudo depende da narrativa em que estão inseridos. Em “Uma luzinha brilhante longe, longe” um dos meninos olha fixamente para a câmara. Parece desafiá-la. Não olha para frente para dirigir.
Esses mesmo cinco elementos também estão presentes na obra “Chega de Saudade”, postada no Instagram no dia 31 de maio de 2018. Um trabalho que mescla colagem, aquarela e bordado. Temos a base da obra realizada a partir de um vinil amarelo, um disco solar por si só; uma foto em preto e branco do cantor João Gilberto com uma tarja igualmente amarela cobrindo os olhos e elementos de natureza brotando do centro do disco, como se o circulo central fosse fértil terra preta. A opção pelo amarelo remete-se a simbologia do “disco de ouro”, um símbolo vintage de sucesso na antiga estrutura da indústria fonográfica.
Observamos o retorno desses elementos na colagem “Consolo na Praia”, postada dia 11 de maio de 2018, com a legenda-pergunta “Tem energizante melhor do que banho de mar?”, com o detalhe de que o elemento semicircular é uma rosa acoplada ao corpo da figura feminina gigantesca que domina a paisagem costeira. As pétalas dessa rosa podem tanto ser uma representação da rosa dos ventos, que indica os pontos cardeais, quanto o próprio sol surgindo ou se pondo por detrás das montanhas.
Notemos que, embora a personagem esteja vestida com um maiô de praia vintage, não há sinal de faixa de areia na imagem. Vemos rochas, vemos formações montanhosas, não nada que se assemelhe a praia, mesmo que à distância. O tema e o título da colagem são em negativo, o que fortalece o uso da palavra “consolo” no título. A personagem busca consolo. Consolo de quê? Sobre o quê? Encontra? Só encontra pedras e distância, a ponto de se tornar um elemento da paisagem?
Em “Vênus Capitolina”, colagem e bordado sobre papel, postada dia 15 de junho de 2018, ocorrem mudanças significativas nos leitmotiv. As fotos antigas são substituídas pelo registro de uma escultura de mármore branco, trocando o veículo da representação humana ao mesmo tempo em que ocorre uma “simulação” do aspecto “preto e branco”, uma vez que, aparentemente, observando os tons de cinza presentes nas sombras, a foto é “colorida”.
Não há tarja nos olhos da deusa romana. Talvez pelos olhos, como é comum em esculturas de mármore, não possuir órbitas. Por outro lado, ela transforma as próprias mãos em tarjas, ocultando sua nudez. Não é ela quem vê, ou não vê, é o outro que a observa, e a julga, fazendo-a se esconder.
Cabe destacar que essas posições das mãos não foram acrescidas na imagem por Isadora Vilela, diferentemente das tarjas citadas anteriormente. Contudo, como foi destacado, a escolha de cada imagem incorporada à colagem não é aleatória. Faz parte de uma narrativa tecida. Aqui, literalmente, tecida. A narrativa da busca por proteção em um mundo belo, cheio de surpresas, porém, perigoso. As asas quebradas ou rasgadas, dependendo da perspectiva, testemunham essa condição, bem como o poema escolhido para “falar” em nome de Vênus Capitolina, no qual se lê “Não és lua-mulher / nem água / és símbolo talvez, / tortura de minhas carnes”.
A incorporação de um poema à obra não pode ser subestimada.
Os processos de associação submetem os signos às tensões de um espetáculo dramático onde, em cenas singulares, os elementos do mundo exterior e os da interioridade se confundem e dessa singular mistura emergem quando menos se espera, sentidos latentes predispostos a dialogar com esses outros sentidos de que se revestem as mensagens do dia a dia, conversas em que os participantes se emaranham nas redes sutis que o desejo tece no uso da linguagem. (Cañizal, 1986, p. 77).
Essa associação entre a interioridade, representada pela literatura, e o cotidiano também é o mote da colagem “Carolina Maria de Jesus”, postada no Instagram dia 3 de fevereiro de 2019, e doada pela artista para o acervo permanente da União Brasileira de Escritores Seção de Goiás. Temos a autora numa foto em preto e branco, com uma tarja sobre os olhos onde se lê “achei o dia bonito e alegre. Fui catando papel”.
A legenda dessa colagem é sintomática para interpretação da obra de Isadora Vilela. A artista escreveu: “‘Quando percebi que eu sou poetisa fiquei triste porque o excesso de imaginação era demasiado’. Carolina Maria de Jesus, autora de ‘Quarto de Despejo’. Escreveu sobre a miséria e a vida infausta dos favelados, sem deixar escapar o olhar sensível e singelo, que normalmente é suprimido por completo diante de uma realidade tão avessa à dignidade humana”. Importante perceber que a menção ao olhar sensível ressignifica o leitmotiv da tarja nos olhos. A personagem vê demais por que vê através da literatura, representado pelo fragmento poético posto sobre seus olhos. Ver demais a entristece. A tarja a impediria de chorar ou seriam as próprias lágrimas em forma de versos?
A flor na orelha da escritora, no ponto de fuga da imagem, é um disco solar que se espalha. As pétalas, cercando um incandescente núcleo vermelho, são como as línguas de fogo de uma supernova, espalhando sua luz e potência pela imagem, que é seu próprio universo feito de páginas impressas, que a afastam e aproximam da miséria ao mesmo tempo.
Para finalizar, voltando para letra de “Bienal”, Zeca Baleiro escreveu satiricamente:
Com a graça de Deus e Basquiat,
Nova York, me espere que eu vou já.
Picharei com dendê de vatapá
Uma psicodélica baiana.
Isadora Vilela postou no Instagram sua “psicodélica baiana” no dia 28 de dezembro de 2019, com a legenda: “À procura da rosa tenho andado / causando às criaturas estranheza. / Se me encontrares terei um jeito de flor, / e um não sei quê de brisa nos meus ares”. Sua narrativa vai muito além da referência ao mito de Carmem Miranda.
Vejam o sol vermelho saindo dos olhos da baiana.
Vejam os arranjos de flores e asas de borboletas voando livres dentro da cabeça da baiana.
Vejam o papagaio garantindo a voz da baiana.
Em Isadora Vilela essa “psicodélica baiana” não poderia ser apenas um estereótipo para gringo ver. Em seu jeito de flor causaria às criaturas estranheza. Teria uma narrativa pregressa, para além da superfície da obra. Saberia o quanto lhe custaria ser psicodélica, ser baiana e ser mulher.
Ademir Luiz, professor da UEG e presidente da UBE-Goiás, é escritor e crítico literário. É colaborador do Jornal Opção.
Referências
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.
ECO, Umberto. O segundo diário mínimo. São Paulo: Record, 1994.
ECO, Umberto. A definição de arte. São Paulo: Record, 2016.
CAÑIZAL, Eduardo Peñuela. Surrealismo. São Paulo: Atual, 1986.
GOMBRICH, E. H. A História da arte. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
GOMPERTZ, Will. Isso é arte? 150 anos de arte moderna ao impressionismo até hoje. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
HACKING, Juliet (Org.). Tudo sobre fotografia. Rio de Janeiro: Sextarte, 2012.
MANIFESTO DO SURREALISMO. São Paulo: Brasiliense, 1985.
SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.