Jornal americano revela participação dos EUA nas eleições do Brasil

21 junho 2023 às 14h37

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As eleições que escolheram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) presidente do Brasil, no ano passado, tiveram alguns desafios maiores do que a própria disputa eleitoral. Então presidente e principal adversário de Lula, Jair Bolsonaro vinha de uma série de questionamentos ao processo eleitoral brasileiro e ao funcionamento das urnas eletrônicas. Foi pautado nisso, por exemplo, que apoiadores do ex-presidente organizaram acampamentos em quarteis generais de todo o Brasil e promoveram invasões a Brasília, em 8 de janeiro.
A garantia da segurança da democracia brasileira partiu de um esforço das instituições nacionais, que se mantiveram firmes diante dos desafios da manutenção do poder. Agora, porém, reportagem do Financial Times mostra que o governo dos Estados Unidos, sob orientação do presidente Joe Biden, também tem parte nisso.
O Financial Times conversou com seis funcionários EUA envolvidos no esforço, alguns já fora de serviço, bem como com figuras no Brasil para compreender como o governo Biden se envolveu no que um dos americanos classificou como uma campanha de mensagens “muito incomum” nos meses que antecederam a votação, por meio de canais públicos e privados.
A reportagem esclarece que todos os ouvidos destacam papel dos personagens brasileiros em assegurar a democracia, apesar das investidas de aliados de Bolsonaro. “Foram as instituições brasileiras que realmente garantiram que as eleições ocorressem”, diz um alto funcionário do governo americano. “O importante era que transmitimos as mensagens certas e mantivemos a disciplina política.”
A mensagem em questão era clara, destinada principalmente a generais e aliados próximos de Bolsonaro: Washington se mantinha com neutralidade em relação ao resultado da eleição, mas não se posicionaria para qualquer tentativa de questionar o resultado ou o processo eleitoral.
Estratégia
Um dos motivos que fortaleceu a movimentação ocorreu ainda nos EUA, em 6 de janeiro de 2021, quando inssurgentes apoiadores de Donald Trump invadiram o Capitólio ao questionar os resultados das eleilções locais. Diante disso, o presidente Joe Biden sentiu que Bolsonaro poderia tentar articular o mesmo caminho.
Para conter insurgências, foi preciso organizar uma campanha não anunciada. Um dos motivos pelo caráter das articulações está no próprio história de influência dos EUA na América Latina. O próprio presidente Lula chegou a declarar, ainda em 2020, que os EUA sempre estiveram por trás de esforços para minar a democracia nos países latinos. Em 64, por exemplo, os EUA ajudaram a apoiar o golpe militar que derrubou João Goulart e instituiu uma ditadura de duas décadas.
A estratégia foi pensada de forma a transmitir a mensagem norte-americana, sem que país se tornasse peça de foco nas eleições. Diante disso, os EUA desenharam um plano com vários ramos do governo, incluindo as Forças Armadas, a CIA, o Departamento de Estado, o Pentágono e a Casa Branca. “Este foi um compromisso muito incomum”, diz Michael McKinley, ex-alto funcionário do Departamento de Estado e ex-embaixador no Brasil. “Foi quase um ano de estratégia, sendo realizada com um objetivo muito específico em mente, não apoiar um candidato brasileiro em detrimento de outro, mas fortemente focado no processo [eleitoral], em garantir que o processo funcionasse.”
Recados enviados
Conforme revelado pelo ex-alto funcionário do Departamento de Estado Tom Shannon ao Financial Times, os esforços começaram com visita do conselheiro de segurança nacional de Biden, Jake Sullivan, ao Brasil, em 2021. Na ocasião, ele observou que Bolsonaro ainda insistia no assunto de fraude nas eleições americanas e ainda pautava as relações com o país em sua relação com o já ex-presidente Trump. O diagnóstico de Sullivan foi direto: “Bolsonaro era inteiramente capaz de tentar manipular os resultados eleitorais ou negá-los como Trump havia feito”.
Logo em seguida, Bolsonaro oficializou à candidatura a reeleição e, na ocasião, garantiu que tinha o Exército ao seu lado. O anúncio veio poucos dias após um encontro realizado com cerca de 70 embaixadores para uma reunião em Brasília, onde fez uma apresentação questionando a confiabilidade do sistema eletrônico de votação no Brasil. Em resposta, o Departamento de Estado dos EUA emitiu um endosso incomum ao sistema de votação, dizendo que “o sistema eleitoral e as instituições democráticas capazes e testados pelo tempo do Brasil servem de modelo para as nações do hemisfério e do mundo”.
Uma semana depois, o secretário de Defesa norte-americano, Lloyd Austin, alertou militares brasileiros dizendo que as forças nacionais precisavam estar sob “forte controle civil”. Em provado, deixou claro que veria reações negativas significativas caso houvesse desrespeito ao resultado das eleições.
Além do secretário de Defesa, visitaram o Brasil ainda no ano de eleições outros personagens importantes dos EUA, como Laura Richardson, general chefe do Comando Sul dos EUA, e chefe da CIA, William Burns.
Participação no processo
A estratégia norte-americana também envolveu articulações ligadas ao processo prático das eleições. O ex-embaixador dos EUA no Brasil, Anthony Harrington, conseguiu conexões dentro da fabricante de chips Texas Instruments para, segundo ele, “distinguir as necessidades de semicondutores e dar prioridade ao impacto em eleições democráticas”.
À medida que a eleição se aproximava, altos funcionários dos EUA acreditavam que Bolsonaro também precisava ouvir mais vozes dentro de seu próprio círculo. Entre os aliados condutores da mensagem norte-americana ao Brasil, estavam nomes como do presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, do vice-presidente Mourão, do ministro da Infraestrutura de Bolsonaro, Tarcísio Gomes de Freitas, e do secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, almirante Flávio Rocha.
Na sequência dos resultados do primeiro turno, vários aliados importantes de Bolsonaro reconheceram rapidamente a vitória de Lula, como Freitas e Lira, por exemplo. “Em 24 horas, eles aceitaram os resultados do segundo turno”, diz McKinley. “Que golpe para quem estava pensando que havia espaço para contestar os resultados.”
As tensões, entretanto, se mantiveram mesmo após a consolidação da vitória de Lula no segundo turno, até às vesperas de sua posse. Os norte-americanos ficaram mais aliviados quando Bolsonaro foi embora para a Flórida, a dois dias da posse de Lula, mas ainda mantiveram o alerta sobre a situação.
Em 8 de janeiro, quando apoiadores de Bolsonaro invadiram as sedes dos Três Poderes, em Brasília, Biden estava no México. “Ele pediu na hora para falar com o Lula”, disse um alto funcionário do governo ao Financial Times. “Após a ligação, ele propôs ao primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, e ao presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, que emitissem uma declaração conjunta trilateral apoiando Lula e o Brasil. Foi o primeiro desse tipo para a América do Norte.”