Justiça determina bloqueio de bens de associação “pró-vida” após padre impedir aborto previsto por lei
11 março 2024 às 11h41
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O Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJ-GO) determinou o bloqueio de bens da Associação Pró-Vida de Anápolis. A medida foi tomada devido à intervenção do vice-presidente, padre Luiz Carlos Lodi, que impediu a retirada de um feto sem chances de sobrevivência em 2005, em Goiânia. Procurada pelo Jornal Opção, a Associação Pró-Vida ainda não se manifestou sobre o caso. A Associação é presidida pelo Padre Walter Trautenberger.
Na ocasião, Tatielle Gomes da Silva e José Ricardo Dias Lomeu solicitaram o direito ao aborto devido a malformações graves causadas pela Síndrome de Body Stalk, que impede o fechamento das paredes abdominais, tornando a sobrevivência do bebê inviável após o nascimento. A Justiça autorizou o aborto, mas a intervenção médica foi interrompida pelo padre Lodi por meio de um habeas corpus.
O tribunal não foi informado sobre a impossibilidade de sobrevivência do feto. Como resultado, Tatielle teve a medicação suspensa, foi obrigada a receber alta com dores e sangramento, e o casal teve que sepultar o feto. Diante do ocorrido, o casal moveu uma ação contra o padre por danos morais e indução ao erro. Após recurso ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi concedida uma indenização de R$ 398 mil à vítima.
Como o padre Lodi não possuía esse valor, o casal acionou a Justiça para que a Associação Pró-Vida assumisse a responsabilidade. O TJ-GO bloqueou os bens da entidade até o pagamento do valor, atualizado em R$ 581 mil.
Entenda mais sobre o caso
Na época do ocorrido, Tatielle tinha 19 anos. A gestação já estava no quinto mês, mas Tatielle e seu marido, José Ricardo Dias, conseguiram uma autorização judicial para realizar o aborto. Os dois buscaram o Hospital Materno Infantil de Goiânia e deram início ao procedimento.
Padre Lodi obteve um Habeas Corpus (HC) contra a decisão judicial, interrompendo o procedimento e solicitando o “direito natural ao nascimento com vida” para o bebê. Após o atendimento do HC, Tatielle retornou para casa, mas, devido às medicações já administradas para induzir o aborto, deu à luz 11 dias depois, resultando na morte da criança.
Em 2008, o casal processou o padre por danos morais. Em 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenando o padre a pagar R$ 398 mil ao casal. No entanto, a indenização nunca foi efetivamente paga, e nenhum patrimônio foi encontrado nas contas bancárias ou em posse do padre.Diante disso, a defesa de Tatielle solicitou à Justiça o bloqueio dos bens da associação pró-vida liderada pelo sacerdote. Em novembro de 2023, o pedido foi unanimemente acatado pela 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Goiás.
“A distinção entre pessoa física e jurídica somente é feita pelo religioso quando o assunto pertine a eventual responsabilidade patrimonial. Para os demais temas, a distinção é intencionalmente ignorada, com vistas a atrair a atenção da maior quantidade possível de pessoas […] Fica nítida a intenção do fundador da associação de utilizar a pessoa jurídica com o propósito de lesar credores. Não pode o Poder Judiciário fechar os olhos diante de situações como a examinada”, diz um trecho do despacho do Tribunal.
Padre Lodi enfrentou outra condenação por se opor ao aborto em março de 2023, quando o Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJ-PE) determinou que ele pagasse uma indenização de R$ 10 mil a um médico, a quem o padre havia chamado de assassino. O profissional foi responsável por realizar um aborto de um feto de 22 semanas, em uma menina de 10 anos, vítima de estupro em São Mateus, no Espírito Santo.
O procedimento foi autorizado pela Justiça e realizado em um hospital em Recife (PE) em 2020.Na ocasião, o padre expressou críticas à decisão judicial em suas redes sociais, afirmando que o feto tinha 22 semanas e quatro dias de vida e que o médico estava em liberdade após o procedimento.
Ele também mencionou outro caso envolvendo o mesmo médico, relatando um aborto de duas meninas gêmeas em 2009, dentro do útero de uma menina de nove anos de Alagoinha (PE). O padre questionou a postura do médico, defendendo que ele deveria ser investigado por seus atos.
Aborto no Brasil
No Brasil, o aborto é permitido em três circunstâncias:
- Gravidez resultante de estupro: O aborto é permitido em casos de estupro, desde que a gestante apresente um boletim de ocorrência policial ou termo circunstanciado.
- Risco de vida para a mulher: Se a gravidez apresenta risco de vida para a mulher, é permitido interrompê-la mediante parecer médico.
- Anencefalia: O aborto é autorizado quando o feto é diagnosticado com anencefalia, uma condição em que o cérebro não se desenvolve adequadamente.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública delineou o perfil das principais vítimas de estupro no Brasil. A maioria são meninas com idade entre 0 e 13 anos (61%), sendo que 56% delas são negras. Do total de violências, 68% dos casos ocorreram dentro da própria residência. Quanto aos agressores, em 86% dos crimes envolvendo crianças de 0 a 13 anos, os estupradores eram conhecidos e familiares, como pais, avôs, padrastos e tios. Para as vítimas com mais de 14 anos, 77,2% dos agressores eram conhecidos, enquanto 24,3% foram estupradas por parceiros ou ex-parceiros íntimos.