Goiás lidera trabalho escravo no País enquanto enfrenta greve dos fiscais de resgate
29 fevereiro 2024 às 07h45
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No dicionário, um escravo é definido como um indivíduo que “está ou foi privado de sua liberdade, sendo submetido à vontade de outrem, definido como propriedade”. Por mais de 300 anos, a escravidão retirou o direito de mais de 4 milhões de pessoas no Brasil. Apesar da abolição e da mudança de nomenclatura para “trabalho análogo a escravidão”, muitos trabalhadores ainda são vistos como propriedade e a escravidão ainda é uma realidade no País. O Estado de Goiás lidera o ranking de trabalhadores resgatados em situações subumanas e degradantes, com 729 trabalhadores encontrados em situação análoga à escravidão até novembro de 2023.
Dessa forma, o estado se tornou líder no ranking brasileiro de escravidão, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A última vez que Goiás ocupou a posição foi há 15 anos. Diante do cenário, o Ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, veio até Goiânia na manhã desta quarta-feira, 28, para se reunir com representantes políticos. Os fiscais do Ministério do Trabalho informaram à reportagem que estão em greve e não foi realizada nenhuma operação de resgate neste ano. Os trabalhadores entregaram uma carta reivindicando direitos ao ministro Luiz Marinho em audiência pública na Assembleia Legislativa de Goiás (Alego).
Durante a coletiva de imprensa, Luiz Marinho destacou temas como a distribuição de renda, exploração da mão de obra infantil e a necessidade de um sistema que dê sustentabilidade. “O que nós precisamos é enaltecer o que é bom e corrigir o que não está bom”, disse o ministro ao começar sua fala.
“O estado de Goiás está gerando oportunidades e empregos. Viemos visitar a fábrica de veículos da Hyundai, que está muito presente capacitando e qualificando as pessoas com inovação e evolução tecnológica. É isso que nós precisamos para nossos empreendedores, independente do tamanho ou segmento da empresa. Estamos gerando emprego, mas emprego com baixíssima remuneração”, continuou Luiz Marinho.
Questionado sobre a ausência do governador Ronaldo Caiado (UB) em seu recebimento, o ministro do Trabalho disse que veio para dialogar com todos os setores, independente de ideologia. “Posição ideológica das empresas e dos empresários para mim não importa. Venho falar com as pessoas jurídicas e não vamos discutir orientação ideológica. Vamos discutir como iremos trabalhar um processo de alavancar a economia e cuidar do trabalhador”, explicou.
Para ele, a terceirização, “do jeito que ficou”, virou “irmã gêmea” do trabalho escravo. “Tivemos um crescimento desse indicador que induziu, inclusive, o aumento da exploração da mão de obra infantil”, disse durante audiência pública na Alego.
“Não há como terminar com essa chaga somente pela fiscalização. É preciso que criemos vergonha na cara de quem a pratica. Precisamos que a sociedade diga: ‘basta, chega, não toleramos’. Se a sociedade mudasse a postura, rapidamente acabaríamos com essa situação. Não podemos admitir, mas a sociedade, os meios de comunicação precisam comprar — a ideia”, continuou.
O ministro veio à capital goiana atendendo a um convite da deputada estadual Bia de Lima (PT). Ela disse que vai conversar com a FIEG (Federação das Indústrias do Estado de Goiás), com a FAEG (Federação da Agricultura e Pecuária de Goiás), a SIEG (Sistema Estadual de Geoinformação), com o propósito de buscar com os empreendedores, tanto da cidade quanto do campo, mecanismos para proteger os direitos dos trabalhadores.
“Não podemos ficar calados, omissos e precisamos tomar atitudes sérias para impedir que trabalhadores chamados a realizar serviços tanto no campo, como também na zona urbana, estejam nessas condições. Essas pessoas chegam a Goiás, especialmente do Nordeste, na esperança de um emprego para alimentar a família, mas são submetidos a situações análogas à escravidão”, aponta a deputada.
Dentre os pedidos feitos ao Ministro, Bia destacou a revogação da lei complementar 173, sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, e o pedido de mudança na lei trabalhista que restringiu o mandato classista. “Como é que nós podemos tirar os pequenos e médios agricultores rurais da condição de superendividamento? Além disso, temos o problema na agricultura familiar, onde os trabalhadores não tem direitos previdenciários. Para que a gente possa dar o suporte para os trabalhadores, seja do campo ou da cidade, é preciso dar condições de trabalho enquanto tem uma vida útil e ativa”, completou a deputada.
Após a coletiva de imprensa, Marinho participou de um encontro com as centrais sindicais, sindicatos, movimentos sociais, gestores e servidores públicos federais.
Goiás é campeão em trabalho escravo
Órgãos oficiais apontam o aumento das denúncias e ações de fiscalização, mudança de cenário político e resgates com maior quantidade de profissionais envolvidos como fatores para a primeira posição na lista. O setor sucroalcooleiro concentra 58,7% dos resgatados, com 428 profissionais encontrados em situações precárias de trabalho. As ocorrências foram em quatro municípios – Itumbiara, Acreúna, Anicuns e Inhumas.
Conforme os dados, dentre os 729 trabalhadores, 676 estavam na zona rural e 53 nas cidades. No comparativo com anos anteriores, o quantitativo de 2023 é o maior desde 2008, quando o estado alcançou o recorde de 867 resgates. A maioria dos trabalhadores são resgatados em fazendas no interior do estado usadas para produção agropecuária.
Goiás é seguido pelos estados de Minas Gerais (571), São Paulo (380), Rio Grande do Sul (330) e Piauí (145). Em todo o Brasil, desde de 1995, quandoi iniciaram as ações de combate ao trabalho escravo no Brasil, já foram resgatados cerca de 64 mil trabalhadores. Em 2023, foram resgatados 3.190, maior número dos últimos 14 anos. Em 2024 não há informações disponíveis, devido à redução/paralização das operações pelos Auditores-Fiscais do Trabalho em todo o país em decorrência do movimento grevista.
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Saulo Reis, coordenador da Comissão Pastoral da Terra (CPT) em Goiás, explica que o cenário crítico é tragédia anunciada.
“Destaque para lavouras e empresas do agronegócio, onde grande parte desses trabalhadores e trabalhadoras foram resgatados em fazendas que produziam sobretudo cana de açúcar. É uma situação bastante alarmante, mas ao mesmo tempo uma tragédia anunciada. O agronegócio, mesmo recebendo grande parte de investimento público, com juros subsidiados pelo plano safra para renúncias fiscais de governos estaduais e prefeituras, ainda assim recorre ao trabalho escravo para a super exploração do trabalho e do lucro com fim em si mesmo”, denunciou.
Saulo destacou a importância do Ministério Público do Trabalho e da equipe de auditores fiscais do Ministério do Trabalho e Emprego na luta contra o trabalho escravo no Brasil, especialmente no estado de Goiás. Sem um fortalecimento da fiscalização, é desafiador enfrentar esse problema que compromete a dignidade humana no mundo do trabalho.
O art. 149 do Código Penal prevê prisão de 2 a 8 anos e multa pela violência causada à pessoa submetida a trabalho análogo à escravidão, mas na prática, órgãos fiscalizadores denunciam impunidade. “O processo de terceirização exige a implementação de mecanismos legais para responsabilizar empresas que contratam terceirizadas envolvidas em práticas de trabalho escravo. Caso contrário, a terceirização pode se tornar um instrumento de exploração e violação dos direitos básicos dos trabalhadores, como evidenciado pelo número significativo de resgatados provenientes do agronegócio e de empresas contratadas”, explicou.
Para Saulo Reis, a valorização da carreira dos servidores públicos do Ministério, juntamente com o aumento da fiscalização, é urgentemente necessária. “O quadro reduzido de auditores fiscais do trabalho em Goiás contribui para a impunidade, limitando a capacidade de identificar e denunciar casos de trabalho escravo. Estima-se que a prática seja ainda mais disseminada do que se imagina, destacando a urgência de reforçar as equipes de fiscalização para abordar essa questão de maneira abrangente”.
O projeto de Combate ao Trabalho Análogo ao Escravo está sofrendo redução de verbas desde que um parecer da gestão d o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) passou a orientar pelo não recebimento de bens e recursos advindos do Ministério Público do Trabalho (MPT), em 2021. Sobre a paralisação, os fiscais alegam falta de estrutura e de cumprimento de acordos sindicais entre a categoria e o Governo Federal.
Ele explica ainda que em Goiás a situação é de dois pesos e duas medidas. De acordo com o Estatuto da Terra, uma propriedade que é autuada com a situação de trabalho escravo, deveria ser desapropriada e destinada à reforma agrária.
“Isso deveria ser automático, no entanto, não acontece. Empresários, principalmente no ramo do agronegócio, deveriam perder o direito de acessar crédito, qualquer tipo de política pública com esse tipo de prática. Mas o que a gente vê aqui em Goiás é o contrário: é a criminalização dos movimentos sociais, das famílias que vivem em acampamentos, às margens de rodovias estaduais, que estão sendo criminalizadas por meio da lei 22.419 de 2023”.
Segundo a legislação, além de serem despejadas, as famílias podem ser qualificadas em mais de 10 crimes e ainda perder acesso às políticas sociais do governo. Isso porque estão reivindicando o direito à terra previsto na Constituição. “É um absurdo, quando a gente avalia e analisa nessa perspectiva, ficamos assustados por Goiás estar liderando esse ranking tão vergonhoso que é o do trabalho escravo” aqui no estado de Goiás liderando esse ranking nacional de pessoas resgatadas de trabalho escravo”.
O engenheiro civil e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Fábio Tokarski, também recebeu o ministro e falou sobre a realidade no Estado de Goiás. Para ele, o mundo todo está nesse caminho de agregar valor na produção industrial, mas Goiás ainda resiste aos avanços do próprio capitalismo.
‘Nos últimos 50 anos a sociedade saiu de 50% em população urbana para a faixa de 90% de população urbana. No entanto, ainda enfrentamos um resquício dessa ideia feudal e patrimonialista de uma casta de poder”, explicou Fábio. Ele pontuou as principais lutas, dentre elas a proteção dos trabalhadores que vivem às margens das rodovias, na chamada faixa de domínio. De acordo com ele, existem locais que a cerca está há um metro do acostamento. “Aquela apropriação individual é assentida pelo governador. Mas a apropriação coletiva e temporária ele trata como se aquilo fosse a propriedade do proprietário rural, mas não é, é uma propriedade do Estado. Então esse exemplo demonstra os valores pelos quais estão sendo governados o Estado. Em detrimento da maioria, tomam-se medidas que beneficiam uma parcela da população”, finaliza Fábio.
Tokarski destacou ainda que a intenção não é incriminar os proprietários rurais porque a responsabilidade de vigilância não é do proprietário, mas sim do Estado e do poder de segurança.
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Legislação estadual
A lei estadual de Goiás n. 22.209/2023, que “institui a Política Estadual de Combate ao Trabalho Análogo à Condição de Escravo e de Amparo a Trabalhadores Resgados dessa Condição”, veio complementar a legislação federal sobre o assunto.
Um ponto importante da referida lei estadual foi além de aumentar as punições para os empregadores flagrados explorando trabalhadores em condições análogas às de escravo, a exemplo da cassação da inscrição do ICMS e proibição, por 10 anos, de recebimento de benefícios fiscais e de quaisquer recursos financeiros e creditícios oriundos do erário estadual ou das agências estaduais de fomento.
Outro ponto igual relevância foi instituição de uma política assistencial às vítimas resgadas da condição análoga à de escravo, tais como a inserção em programas estaduais de habitação popular, renda e trabalho; prestação de assistência jurídica e emissão de documentos pessoais e auxílio na localização de familiares.
Trabalho escravo contemporâneo
No período de 1995 a 2020, a quantidade de trabalhadores resgatados no cultivo da cana de açúcar em Goiás (814-um a cada cinco dos 4,1 mil) e fabricação de álcool (321) totalizou 1.135. Respectivamente, as atividades ocupam a primeira e a quinta posições na série histórica. O ano de 2008 foi o que teve a situação mais crítica, com 777 registros, se somadas as duas atividades.
Nos anos mais recentes o panorama mudou. Em relação ao cultivo, de 2000 a 2020, houve cinco anos com incidência constatada pela fiscalização. De 2016 a 2021, não constam resgates de trabalhadores. A principal explicação pode ser a mecanização. A colheita passou a ser mecanizada na quase totalidade, dispensando grande volume da mão de obra. A situação da fabricação de álcool, que nem sempre é a produtora da cana que processa, segue o mesmo curso.
De acordo com o artigo 149 do Código Penal brasileiro, trabalho análogo ao escravo é aquele em que pessoas são submetidos a qualquer uma das seguintes condições: trabalhos forçados; jornadas tão intensas ao ponto de causarem danos físicos; condições degradantes no meio ambiente de trabalho; ou restrição de locomoção em razão de dívida contraída com o empregador. É crime e pode gerar multa, com pena de até oito anos de prisão.
Para registrar uma denúncia, estão disponíveis os seguintes canais:
- Ministério Público do Trabalho: site (mpt.mp.br) ou aplicativo (MPT Pardal); se o caso for em Goiás, clique aqui para acessar o site e fazer a denúncia.
- Subsecretaria de Inspeção do Trabalho: Sistema Ipê.
Para acessar fotos dos resgates, tanto em Goiás quanto em outros estados, clique aqui.