Não se vislumbra a inconstitucionalidade material da Lei Estadual 22.482/2023, uma vez que o seu conteúdo guarda compatibilidade com a Constituição Federal.

Alexandre Francisco de Azevedo

Especial para o Jornal Opção

O Brasil adota a tripartição dos poderes – Legislativo, Executivo e Judiciário – que devem ser harmônicos e independentes. Para garantir a harmonia e a independência, e resolver situações de crises, a Constituição criou um plexo de freios e contrapesos que, em essência nada mais é do que uma forma de controle mútuo entre os três poderes.

Exemplo disso é a edição de uma lei. Cabe ao Poder Legislativo aprovar um Projeto de Lei que será submetido ao crivo do Poder Legislativo que, por sua vez, poderá vetá-lo ou sancioná-lo. Ocorrendo o primeiro, a Casa de Leis poderá derrubar o veto. Em qualquer situação de existência da lei, e mediante provocação, o Poder Judiciário poderá, ao interpretar a norma, reduzir ou ampliar o seu alcance, podendo, inclusive, declarar a sua inconstitucionalidade. Neste casos, o Poder Legislativo, não concordando, poderá aprovar nova lei ou mesmo alterar a Constituição.

E tudo isso sem a necessidade da existência de um poder moderador, que, aliás, não existe na Constituição Federal de 1988. Todos os poderes exercem controle mútuo uns sobre os outros. Sem exceção.

Ao lado desses poderes, existem órgãos que não pertencem a nenhum daqueles poderes, possuindo autonomia constitucionalmente assegurada.

Exemplo desses órgãos é o Ministério Público, em todas as suas ramificações, e os Tribunais ou Conselhos de Contas.

É bastante comum o leigo confundir e pensar que o Ministério Público seja parte integrante do Poder Judiciário. Ainda mais comum, dada a nomenclatura, é pensar que os Tribunais de Contas são órgãos do Poder Judiciário.

Ledo engano.

O Ministério Público e os Tribunais de Contas não estão atrelados a nenhum dos poderes, embora tenham autonomia constitucional.

No caso dos Tribunais de Contas, a autonomia é importante para exercer a função de controle externo da função administrativa, desempenhada pelos três poderes. Quando se trata da fiscalização do Chefe do Poder Executivo, os Tribunais de Contas funcionam apenas como órgãos auxiliares do Poder Legislativo, a quem a Constituição Federal atribuiu a competência para o julgamento das contas.

Deste modo, o Poder Legislativo também possui a função de controle externo da Administração Pública, e não apenas os Tribunais de Contas. Tanto é assim que podem ser criadas comissões parlamentares de inquérito para investigar atividades administrativas praticadas por qualquer órgão público, alcançado, em certa medida, até os particulares.

Assim, o Tribunal de Contas do Estado julga as contas de todos os administradores públicos estaduais, incluindo o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, com exceção das contas do Governador do Estado. Neste último caso, a corte de contas apenas emite parecer prévio. Observem que mesmo detendo independência constitucional, o Poder Legislativo e o Poder Judiciário devem prestar contas.

Assentadas essas premissas, urge perguntar: quem fiscaliza os fiscalizadores? (Quis custodiet ipsos custodes?)

Ora, se os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, que são harmônicos e independentes, devem prestar contas perante o Tribunal de Contas, porque este não pode ter suas contas examinadas pelo Poder Legislativo, que possui função principal, além de legislar, a de fiscalizar? Em que isso afetará a sua autonomia constitucional, se até o Supremo Tribunal Federal deve prestar contas perante o Tribunal de Contas da União?

Aliás, a simples ideia de se pensar em órgão intocável, que não deve prestar contas a nenhum Poder, vai contra toda a teoria de um governo republicano.

O próprio Supremo Tribunal Federal, pelo menos em duas ocasiões, convalidou normas estaduais prescrevendo o dever de os Tribunais de Contas prestar dos contas à Assembleia Legislativa, dispondo que “não obstante o relevante papel do Tribunal de Contas no controle financeiro e orçamentário, como órgão eminentemente técnico, nada impede que o Poder Legislativo, exercitando o controle externo, aprecie as contas daquele que, no particular, situa-se como órgão auxiliar” (ADI 2957). Já na ADI 1175, o Supremo decidiu que “surge harmônico com a Constituição Federal diploma revelador do controle pelo Legislativo das contas dos órgãos que o auxiliam, ou seja, dos tribunais de contas”.

Por tudo isso, não se vislumbra a inconstitucionalidade material da Lei Estadual 22.482/2023, uma vez que o seu conteúdo guarda compatibilidade com a Constituição Federal. Contudo, pode pairar dúvidas sobre a forma, já que a competência dos Poderes deve ser prevista na Constituição Estadual e não em norma infraconstitucional.

Em miúdos, a Assembleia Legislativa deveria ter aprovado uma Emenda à Constituição do Estado atribuindo-lhe a competência para apreciar as contas do Tribunal de Contas do Estado. No mais, não existe qualquer óbice a que, por meio de norma, se estabeleça que o Poder Legislativo exercer o controle externo do Tribunal de Contas.

Alexandre Francisco de Azevedo é professor de Direito Eleitoral e Constitucional da Pontifícia Universidade Católica de Goiás e do Centro Acadêmico Alfredo Nasser. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep). É colaborador do Jornal Opção.