Leonard v. PepsiCo: como seria o caso retratado pela Netflix se fosse no Brasil?
24 dezembro 2022 às 16h03
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A década de 1990 marcou a humanidade com diversos eventos históricos, como a queda do Muro de Berlim e a reunificação da Alemanha; o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS); a Guerra do Golfo e outros conflitos armados. Mas, ao mesmo tempo, também houve um grande avanço da ciência e da tecnologia, com o desenvolvimento e popularização de computadores e da internet. Os “anos 90” ainda trouxeram um cenário de prosperidade e estabilização em diversos países, incluindo o Brasil, com o Plano Real.
Surfando na boa fase econômica e desenvolvimento, a publicidade estava mais forte do que nunca na época. Diversas grandes empresas, como a PepsiCo, dona do famoso refrigerante Pepsi, apostaram as suas fichas em comerciais grandiosos, repletos de celebridades e efeitos visuais. O que deu muito certo, com certeza, mas acabou gerando uma história muito conhecida nos Estados Unidos: o caso “Leonard v. PepsiCo”.
Retratada recentemente em uma excelente série documentária chamada “Pepsi, Cadê Meu Avião?” pela Netflix, a história conta como um jovem, John Leonard, com 20 anos na época, travou uma batalha judicial contra uma multinacional. Tudo por conta de um comercial de 1996 no qual aparece um caça britânico Harrier que poderia ser “adquirido” por uma quantidade de pontos em uma promoção. O que deveria ser uma brincadeira apenas, mas se tornou uma grande dor de cabeça para a Pepsi.
No fim das contas, resumindo tudo, Leonard perdeu a batalha judicial e não conseguiu a aeronave apesar dos esforços. Mas, o caso se tornou um marco na Justiça americana e entrou para a história. Todavia, fica a dúvida: e se fosse no Brasil? Um suposto “João Leonardo” poderia ter vencido essa disputa?
Warbirds brasileiros
Para entender melhor a projeção do caso “Leonard v. PepsiCo” no Brasil, o Jornal Opção consultou vários especialistas em direito nas diversas áreas que compõem essa história única. Primeiro, antes de mais nada, é necessário saber se um cidadão brasileiro médio pode adquirir uma aeronave militar, assim como é permitido nos Estados Unidos.
Respondendo a dúvida logo de cara: sim, é possível um civil comprar um avião de guerra no Brasil, segundo Georges Ferreira, professor especialista em direito aeronáutico na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO). Entretanto, ele destacou que existem muitos “poréns” nessa questão.
“É possível importar uma aeronave militar, quem cuida desses trâmites é a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), mas você tem que abrir um processo que ateste a aeronavegabilidade e os riscos que ela pode representar”, disse o presidente da Comissão de Especialistas para a Reforma do Código Brasileiro de Aeronáutica do Senado Federal (CERCBA). “Obviamente, a Força Aérea Brasileira (FAB) também será chamada para atestar que o avião esteja totalmente desarmado, sem os equipamentos militares funcionando”, completou.
Ou seja, um cidadão comum pode ter esse tipo de veículo, mas sem qualquer tipo de armamento ou equipamento militar, como canhões, metralhadoras e bombas. Tudo deverá ser desativado e retirado do aeroplano.
“Uma vez que você tenha esse tipo de aeronave é importante também contratar uma empresa que trabalhe com a certificação. Dependendo até do ano dela, muitas vezes não tem existe mais oficina certificada para realizar a manutenção. Por isso você recebe a certificação de aeronave experimental histórica militar, tornando-se uma aeronave experimental, com as operações sendo por risco do operador e uma série de limitações para a sua utilização”, explicou Ferreira.
Georges ressaltou que é “bem complexo” importar um avião militar e mantê-lo em operação no Brasil. “O importante é sempre ter um diálogo com a ANAC para declarar a sua intenção de importar essa aeronave”, aconselhou, apontando que adquirir o veículo operacional desmilitarizado e certificado de um país com uma associação civil, como os Estados Unidos, pode ajudar no processo.
O professor ainda contou que existem alguns “warbirds”, termo utilizado para denominar uma aeronave militar antiga desmilitarizada que é destinada para uso civil, no Brasil.
“Por exemplo, na escola de aviação EJ, em Itápolis (SP), temos uma aeronave militar a jato, um Aero L-39 Albatros, de origem tcheca, utilizada para treinamento avançado e que alcança 750 km/h. Já tivemos um Fouga Magister, fabricado na França, que operou por vários anos em Bragança Paulista (SP), mas que infelizmente se acidentou e ficou inviável para a recuperação, apesar de não ter sido um acidente grave. Também tínhamos um North American T-28 Trojan, aeronave americana”, contou o especialista.
Um Jump Jet no Brasil?
Falando agora especificamente sobre o Hawker Siddeley Harrier, um caça de ataque ao solo britânico que ficou popularizado por conta do seu uso na guerra das Malvinas, em 1982. Apesar de ser “muito diferenciada”, segundo Ferreira, por conta da capacidade “VTOL”, que permite o jato pousar e decolar verticalmente, assim como um helicóptero, ainda seria possível possuir um exemplar do “Jump Jet” no Brasil.
Entretanto, o apelido icônico não poderá acompanhar o uso da aeronave em território brasileiro. “Obviamente, por exemplo, as nossas autoridades não permitiriam que ela pousasse no campo do estádio da Serrinha, do Goiás Esporte Clube, apesar da capacidade VTOL. É possível sim ter uma aeronave dessas no Brasil, mas ela vai operar com muitas limitações, limitada apenas para operações convencionais, ou as operações horizontais”, afirmou o professor da PUC-GO.
Só que além da burocracia, o custo para manter um avião histórico também é extremamente elevado. “Se a pessoa quiser importar um Harrier funcional para o Brasil, é claro que terá que pensar no preço de uma outra aeronave para viabilizar a sua operação no Brasil, pagando todos os impostos, taxas e mantendo ela operacional”, destacou o perito em direito aeronáutico.
Basicamente, para Georges Ferreira, qualquer argumento de que seria impossível ter um caça Harrier no Brasil é invalido. “Aqui não entendo que seja ilícito adquirir uma aeronave militar histórica e também não é ilegal a sua operação, acho bem tranquilo, não vejo problemas”, concluiu o advogado.
Prometeu tem que cumprir?
Com a dúvida sobre a possibilidade de se ter um avião de guerra totalmente resolvida, agora resta justamente a questão da propaganda e dos trâmites judiciais. A respeito da questão publicitária, o presidente da Comissão de Direito do Consumidor (CDC) da OAB Goiás, Gediael Santos, analisou o comercial dentro das leis brasileiras.
“Vivemos em uma sociedade de massa que a publicidade induzirá ao consumo, convidando o consumidor a consumir e induzindo o seu comportamento”, afirmou o presidente da CDC da OAB-GO. “Essa economia de emoção, desejos e expectativas, além do outro lado, com angústias e conflitos, sempre estarão representados na hora de consumir. Então, a percepção de necessidade do consumidor é alterada com ele buscando inclusão social e até comprometendo a sua renda com produtos e serviços desnecessários”, completou.
Dentro desse contexto, Santos explicou que o consumidor às vezes não consegue identificar em uma situação que está sendo lesado, dentro da “publicidade em 360º” do dia-a-dia. “Muitas vezes vamos ter abuso de direito de publicidade, práticas abusivas e enganosas que induzem o consumidor ao erro”, contou o advogado.
“O Código de Defesa do Consumidor fala que a oferta precisa ser clara, ostensiva e suficiente. Mas, ainda temos uma regra que fala sobre os adjetivos e elogios feitos para um produto ou serviço, eles são admitidos pelo senso comum para dar destaque e não induzem o consumidor ao erro. Por exemplo, eu posso dizer que a minha bicicleta é a melhor do mundo, isso é permitido. Agora, o consumidor precisa entender que aquilo é um informe publicitário, precisa estar descrito, informado que os adjetivos e elogios são simplesmente uma publicidade, e é claro, precisa ter veracidade”, explicou o especialista em direito do consumidor.
Dessa forma, ele entende que o comercial televisivo divulgado pela Pepsi pode ser considerado abusivo subliminar. “Parece que é uma mensagem subliminar, uma publicidade abusiva de forma subliminar que pode induzir ao erro do consumidor”, afirmou Gediael.
O presidente ainda trouxe uma possível comparação brasileira com o caso “Leonard v. PepsiCo”, a propaganda “Quer pagar quanto?”, divulgada pela rede Casas Bahia, em 2003. Na época, a publicidade perguntava para consumidores o quanto queriam pagar em seus produtos. “As vendas alavancaram muito com esse informe publicitário, mas também teve muita dor de cabeça porque muitos consumidores chegavam lá e falavam ‘quero pagar R$ 1’, disse Santos.
“O que fundamentou os consumidores irem até às Casas Bahia para exigir pagar um valor irrisório pelos produtos foi porque o Código de Defesa do Consumidor diz que a oferta obrigará a esse proponente a cumprir. A informação que estiver ali naquela publicidade precisa ser clara, ostensiva, de forma que todo mundo consiga ver e suficientemente precisa. Então, veiculou algo, tem que cumprir, prometeu tem que cumprir. Muitos consumidores foram até a Justiça e conseguiram ganhar o direito de pagar um real por mês, mais uma indenização por dano moral. Em alguns casos, apenas a indenização. Fora que ainda ocorreram muitos problemas trabalhistas por conta da exposição e assédio que vendedores e colaboradores sofreram, eles também conseguiram indenizações junto à Justiça. Então, a empresa teve muitos problemas consumeristas e trabalhistas por conta de um informe publicitário de forma abusiva e enganosa”, relatou o jurista.
Dessa forma, a empresa de móveis e eletrodomésticos precisou veicular uma “contra-propaganda”, umas das obrigações que a lei impõe por violação do direito do consumidor, além de multa e uma retratação por conta do informe publicitário. No caso da Pepsi, apesar de não haver condenação, a empresa também modificou o anúncio para voltar veicula-lo na televisão, dessa vez com um aviso: “É uma brincadeira”.
Davi vs. Golias
Uma outra questão importante para se avaliar são as chances que uma pessoa comum pode ter ao enfrentar uma gigante multinacional nos tribunais. Para o professor Frederico Fleischer, docente do curso de direito da PUC-GO, não há problemas no Brasil para travar tal guerra judicial. “O fato de ser uma grande corporação, em tese, não traz nenhum empecilho. Até porque tivemos inúmeros processos aqui em que elas perderam”, afirmou o especialista em direito civil e empresarial.
“A única diferença é que uma corporação tem muitas condições, ela terá os melhores advogados, mas, inclusive, o nosso direito do consumidor dá a possibilidade nesses casos de reconhecer a hipossuficiência do consumidor”, explicou. Segundo o Código de Processo Civil (CPC), esse mecanismo dá direito à gratuidade de justiça e o acesso a um advogado, caso a pessoa comprove que não possui condições de arcar com os custos durante a tramitação de um processo judicial.
“Essa é uma diferença que temos aqui, uma proteção do Estado. O Código de Defesa Consumidor ainda garante a inversão de ônus de prova e entre outras questões”, elencou o advogado. No caso da inversão do ônus da prova, o CDC obriga o réu a provar a sua própria inocência e é um recurso que pode ser utilizado em casos com hipossuficiência do consumidor.
Entretanto, especificamente sobre o caso “Leonard v. PepsiCo”, Fleischer não vê possibilidade de vitória do jovem de 20 anos, caso a situação seja projetada para o Brasil. “Existe uma questão que envolve a boa fé, uma interpretação justa, algo que seja plausível e que um cidadão médio consiga entender”, disse o especialista. “Uma lógica que foi muito parecida com a decisão dos Estados Unidos”, completou.
“A lógica da decisão diz exatamente isso, não haveria a mínima plausibilidade na questão, que era uma propaganda humorística, que inclusive voltou ao ar depois. Não seria nem plausível uma pessoa imaginar que iria ganhar um caça militar para estacionar em casa”, disse Frederico, ainda lembrando da situação das Casas Bahia, no qual houve pessoas que entraram na Justiça e perderam o caso.
Para Frederico Fleischer, o caso nem teria avançado tanto igual ocorreu nos EUA. “Não teria chegado nem ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF). Seria um caso que morreria em uma segunda instância aqui no Brasil”, argumentou o professor da PUC-GO.