Vladimir Safatle: “Existe uma necessidade de reconstrução mundial da esquerda”
12 novembro 2023 às 00h16
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Referência na análise política no campo progressista, filósofo diz que o discurso de insurreição hoje está com a extrema direita
Um dos nomes mais respeitados do País quando se fala em análise política no campo da esquerda é, sem dúvida, o filósofo e professor titular da Universidade de São Paulo (USP) Vladimir Safatle. Se suas ideias fossem ouvidas pelas instâncias dos principais partidos de seu espectro ideológico, como o PT e o PSOL – ao qual ele é filiado e foi candidato a deputado federal no ano passado –, provavelmente a governança da esquerda seria bem diferente. Na verdade, nunca teria sido o que vem sendo desde 2003, com o primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva.
“O governo precisaria ter uma oposição de esquerda, até para funcionar melhor”, afirma, contrário à participação do PSOL na composição. Para Safatle, hoje o discurso da insurreição mudou de lado. “A extrema direita é insurrecional e a esquerda é governista. Virou gestora da ordem, tornou-se a garantia do funcionamento institucional brasileiro. Se não a esquerda, quem vai defender o Supremo Tribunal Federal? Desculpe, mas [a esquerda] não nasceu para defender o STF, pelo contrário, a Corte é uma caixa de interesses oligárquicos”, sentencia.
Nascido em Santiago do Chile em 1973 – onde sua família estava exilada e de onde sairia ainda naquele ano, com o golpe militar de Augusto Pinochet contra o governo de Salvador Allende –, o filósofo pode ser considerado “meio goiano”, já que viveu em Goiás e, adolescente, fez parte da cena cultural que surgia na capital, Goiânia, no fim dos anos 80, com o Centro Cultural Martim Cererê. “Nossa banda [Departamento de Testes] foi a primeira a tocar lá”, faz questão de recordar o professor, cujo pai, Fernando Safatle, comandava então a recém-criada Secretaria do Estado da Cultura do governo Henrique Santillo.
Nesta entrevista ao Jornal Opção, que contou com a participação especial do professor Adriano Correia Silva, titular da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (Fafil/UFG), Vladimir Safatle fala também sobre seu novo livro “Em um com o impulso” (Autêntica, 240 p.), primeiro volume de uma trilogia sobre a experiência estética e discorre sobre outro grande talento: o de compositor de música erudita, que já o levou a compor várias peças para espetáculos de teatro. Em 19 de outubro – dia que concedeu a entrevista –, ao vir a Goiânia para uma palestra e apresentar seu livro Na 27ª Semana de Filosofia da Fafil, ele também fez um concerto, no Campus Samambaia da UFG.
Elder Dias – O sr. colaborou com um artigo para “Junho de 2013: a Rebelião Fantasma”, uma publicação com textos que discorrem sobre as chamadas Jornadas de Junho, dez anos depois. Foram protestos iniciados pela esquerda que surgiram por melhorias nos serviços públicos, a partir da tarifa do transporte, mas que, no fim, tiveram como consequência sua tomada por movimentos reacionários. Até que ponto esse movimento realmente colaborou, ainda que de forma involuntária, para o que ocorreu nesta década que se passou, como, por exemplo, a queda da presidente Dilma Rousseff (PT)?
Primeiramente, é preciso deixar claro que a responsabilidade pela queda de Dilma não foram as manifestações de 2013, mas as eleições de 2014. Ela é reeleita flexionando seu discurso à esquerda, mas, assim que sai o resultado, faz uma guinada ao centro e à centro-direita. Dá o comando da economia, pelo Ministério da Fazenda, para um liberal convicto, Joaquim Levy, e trai seus eleitores, perdendo sua base. Em um acirramento das divisões ideológicas do País, a primeira coisa a se fazer é fortalecer seu campo. Ela ficou completamente à mercê das intempéries e é importante entender isso para ver que as manifestações de 2013 não têm responsabilidade no que ocorreu depois com a presidente. Quem é a responsável pela queda de Dilma é a própria Dilma.
2013 marca um triplo esgotamento: é o fim da Nova República, o fim do lulismo como modelo de desenvolvimento e o fim da esquerda brasileira
Para que o golpe ocorresse, também colaboram as contradições do modelo que ela representava, que era o lulismo. Eu diria que 2013 marca um triplo esgotamento: é o fim da Nova República e seu sistema de pactos; é o fim do lulismo como modelo de desenvolvimento social e econômico; mas é também o fim da esquerda brasileira. Nestes últimos dez anos, o que temos é uma morte lenta e uma transmutação muito forte de nosso discurso, que vai cada vez mais perdendo sua caracterização necessária. Por isso mesmo, vejo 2013 como momento central para entender os impasses que nos perseguem desde então e presentes de forma cada vez mais forte.
Elder Dias – Quando eclode o Movimento Passe Livre, então, o que há é uma espécie de “vai ou racha” para a esquerda que, no caso, acabou rachando?
Em 2013 o que vimos foi uma verdadeira insurreição popular, que não foi isolada no mundo. Houve uma sequência de insurreições populares, que começaram em 2011, com a Primavera Árabe, depois passando por Israel, Espanha, pelos movimentos Occupy [como Occupy Wall Street, em Nova York], depois vem para a América Latina, em Santiago do Chile, Colômbia, Brasil, depois Turquia. Podemos interpretar o século 21 como uma sequência de insurreições populares que não conseguem se corporificar institucionalmente. Há, digamos, uma potência sem corpo.
É importante, primeiramente, lembrar que o Brasil não é a maior ilha do mundo. Não dá para explicar nossos fatos a partir de uma perspectiva completamente endógena, há uma relação com o sistema de descontentamento político-social que perpassa o mundo inteiro. Em 2013 se esgota o lulismo, a grande construção da Nova República, que podemos dizer que se esgota quando se realiza.
Elder Dias – Como o sr. definiria essa construção chamada lulismo?
Um sistema de pactos de larga extensão, com coalizões que iam de Marco Feliciano [pastor e deputado federal, atualmente no PL-SP, referência da chamada bancada da bíblia] até o PCdoB, entrava quem quisesse. Essas coalizões procuravam criar algum sistema de compensação e de distribuição de renda, mas de forma muito limitada. Isso acaba por permitir a explosão do custo de vida nas grandes cidades. Basta lembrar que, em 2013, São Paulo e Rio de Janeiro estavam entre as dez cidades mais caras do mundo. Ou seja, é um sistema que não consegue realizar o que promete. Acho terrível que a esquerda nunca tenha feito uma autocrítica a esse respeito. Agora, vai tentar fazer a mesma coisa novamente e vai dar errado mais uma vez.
A esquerda brasileira não está preparada para uma fase insurrecional
O que houve foi uma força de descontentamento popular e de frustração com o que havia sido prometido. Prometeram que seríamos a quinta economia do planeta, que a Copa do Mundo e a Olimpíada iriam reconstruir nossas cidades. Nada disso aconteceu e a população percebeu. Naquela circunstância, não houve nenhum setor da esquerda consistente a ponto de vocalizar essa necessidade de uma espécie de segundo momento para as políticas de combate à desigualdade, para um avanço mais efetivo e real. Isso mostra como a esquerda brasileira não está preparada para uma fase insurrecional.
O discurso de esquerda enfrenta um esgotamento mundial por perder sua radicalidade
Elder Dias – Mas, pela atual conjuntura mundial, com a hegemonia das redes sociais, em qual modelo a esquerda brasileira poderia se inspirar para passar a ser mais resolutiva?
Existe uma necessidade de reconstrução mundial da esquerda. Penso que esse é o drama deste nosso momento. Não tem modelo, em lugar nenhum. Só que isso não nos exime da tarefa de buscar. O discurso de esquerda enfrenta um processo de esgotamento mundial, pela perda de sua radicalidade, pelo fato de simplesmente não conseguir realizar o que promete. Um caso exemplar ocorreu na Grécia, quando o Syriza [partido da esquerda radical que chegou ao poder em 2015 com o primeiro-ministro Alexis Tsipras] chama a população para tentar se contrapor à irracionalidade das políticas de austeridade a que estava submetida. A população, então, lhe dá a carta branca, mas o partido então não sabe o que fazer com aquilo e fica completamente constrangido. Por quê? Porque o jogo era outro, era um teatro, uma tragédia grega (risos). A população topou a proposta, mas não tinham o que oferecer.
Elder Dias – Ficou como o cachorro que late atrás do carro, mas não sabe o que fazer se o carro parar.
É algo assim, diria que a esquerda se transformou em outro nome para traição. E esse é o nosso problema, principalmente porque é um momento em que a extrema direita entrega o que promete. Veja só, o Reino Unido fez uma ameaça grave com Boris Johnson [primeiro-ministro britânico de 2019 a 2022]: sair da União Europeia. E cumpriu, com a aprovação do Brexit. Pode até sofrer consequências, mas politicamente se fortalece, porque sustenta o próprio discurso em que acredita.
Já a esquerda, não, porque não consegue se colocar como alternativa crível de transformação estrutural. Isso é sentido de maneira muito dramática no Brasil, onde há uma esquerda institucional muito forte, com experiência de 13 anos de governo, com formação de quadros de gerenciamento do Estado, inclusive com a participação de intelectuais. Isso, para nós, se torna algo ainda mais dramático.
Adriano Correia Silva – A que o sr. atribui essa crise de identidade e de resolutividade da esquerda? Isso seria uma consequência ainda da queda do Muro de Berlim e da dissolução da União Soviética?
Têm vários fatores e com certeza esses estão entre eles. Eu diria que há um processo em que setores da esquerda vão se especializando como gestores dos diversos governos, construindo coalizões em várias partes do mundo, aplicando um projeto de gerenciamento do Estado do bem-estar social até onde é possível. No momento em que esse Estado do bem-estar social se mostra inviável, não porque não pudesse ser realizado, mas por ser baseado em um sistema muito profundo de exploração, por ser também um Estado colonial. Todos os países que vão desenvolver esse projeto – França, Inglaterra etc. – ainda se sustentavam como Estados coloniais. Então, havia a mão de obra imigrante, essencial para manter esse projeto e que iria explodir lá na frente como questão social. No caso da Alemanha, outra economia social de mercado, houve ali uma invenção dos neoliberais, uma formação de compromisso, que acontece porque há uma força das lutas operárias no fim dos anos 60 e ainda nos anos 70.
Essa força vai sendo decomposta, entre outras coisas, pela ascensão do neoliberalismo, que, à sua maneira, consegue tomar um setor da classe trabalhadora e apresentar a utopia da sociedade empreendedora. Isso em um momento no qual a esquerda deveria ter conseguido dar um passo a mais em seu processo de radicalização. Ela até tenta em vários países, como no Chile em 1973, tenta também como desdobramento das luta anticoloniais. Mas é fato que o processo vai se demonstrar muito mais complicado do que aparentava. Então, com a debacle dos países do socialismo real, perde-se o horizonte.
Talvez fosse o momento, ali, de setores não governamentais da esquerda terem fornecido nova força ao debate político. Mas esses setores não conseguem se integrar muito claramente em partidos, muitas vezes com uma leitura muito abstrata do que era a crítica do Estado.
A partir daí, vai havendo uma distinção muito evidente. Por um lado, há a esquerda acadêmica, com um discurso de radicalidade que não tem capacidade de intervir dentro do jogo político ou só em setores muito específicos – como é o caso da luta de reconhecimento, que acaba sendo a última e a única coisa que a esquerda coloca na pauta de transformação. Por outro lado, há os setores ligados à luta política cotidiana, que vão fazer o processo que vimos com o PT no Brasil, executando em 20 anos o que outros países fizeram em 50, que é se especializar na gestão do Estado. Quando isso ocorre, aparece outra lógica, à qual André Singer [cientista político, professor e jornalista] se refere muito bem como “reformismo gradual e seguro”. Só que, no final, não foi nem gradual, nem seguro e não foi nem reformismo.
O PSOL deveria fazer oposição para ter quem puxasse o governo Lula para a esquerda
Elder Dias – Em Goiás, a esquerda nunca foi exatamente forte, mas hoje vive um momento particularmente de maior fragilidade. Tanto que, nas últimas eleições, houve rumores de uma aliança com um desafeto de outros tempos, o ex-governador Marconi Perillo (PSDB). Agora, volta a ter novamente boatos de que PT e tucanos poderiam se juntar visando as eleições municipais e depois as estaduais. O que há com a esquerda, está havendo isso no Brasil inteiro ou é algo próprio de Goiás?
Talvez Goiás seja um pouco o futuro do Brasil, nesse sentido. Tenho como falar alguma coisa sobre esse aspecto porque fui candidato a deputado federal pelo PSOL no ano passado e mesmo dentro do partido acabei ficando um tanto isolado. A guinada que o partido deu em relação ao governo federal não é algo justificável. O governo precisaria de uma oposição de esquerda, até para funcionar melhor. E oposição não é algo que se faça de dentro, mas de fora. Insisti nessa ideia [em o PSOL ser uma oposição de esquerda ao governo Lula], inclusive em campanha. Nos governos passados de Lula e Dilma Rousseff faltou quem puxasse um pouco mais para a esquerda e desta vez também não vamos fazer isso. A tendência, infelizmente, é cada vez mais a gente se organizar como consórcio. A presidente nacional do PSOL [Paula Coradi] que acabou de ser eleita disse que nossa função é impedir que o Centrão imponha a pauta. Que me desculpem, mas nossa função não pode ser essa. Nossa função é colocar e sustentar muito claramente uma alternativa socialista dentro do cenário da política brasileira. Precisamos mostrar, insistir, no espaço parlamentar e nas prefeituras que a gente ganhe, que essa alternativa é possível.
Esse tipo de posição adotada [pela direção do PSOL] já mostra para mim uma tendência, que é chegar nisso que Goiás chegou, como você disse. A esquerda vai perdendo relevância. Isso só não foi pior porque tínhamos a figura de Lula como liderança. Lula teceu o grande acordo, o qual teve um preço muito claro: a esquerda ganha, mas não governa.
Elder Dias – E tem sido assim desde 2003…
E agora veio muito mais forte. A esquerda não governa no sentido de que não pode colocar pautas. Haveria, por aí, uma tentativa de reconstruir minimamente, de certa maneira, uma possibilidade de funcionamento da economia que não está mais dada. Temos um processo de acirramento da concentração de renda, da pauperização, baixo crescimento mundial e aumento crônico do endividamento. Então, a função do governante é gerenciar ruínas. Nesse cenário, a extrema direita nada de braçada, porque conseguiu integrar a si um discurso de ruptura.
Elder Dias – A extrema direita trabalha bem com o caos?
Exatamente. É necessário romper com as estruturas de regulação para conseguir ter capacidade de sobreviver. A extrema direita entendeu que o discurso agora é de sobrevivência social. A esquerda não consegue realizar suas promessas de solidariedade. Ela nem ao menos consegue colocá-las. Para ter ideia, meses atrás o governo anunciou que não iria lutar pela implementação de um impostos sobre grandes fortunas. Disse que não estaria na pauta. Naquela mesma semana, o governo de extrema direita da Itália aprovou uma lei de taxação de grandes fortunas. É esse o lugar em que estamos.
A extrema direita conseguiu nos jogar nas cordas com o discurso de verdadeira ruptura
A esquerda virou gestora da ordem. Tornou-se a garantia do funcionamento institucional brasileiro. Se não a esquerda, quem vai defender o Supremo Tribunal Federal (STF)? Desculpe, mas a gente não nasceu para defender o STF, pelo contrário, a Corte é uma caixa de interesses oligárquicos, é uma estrutura monárquica dentro da República. Não faz nem sentido ter pessoas indicadas para cargos tão altos, deveria haver outra forma de nomeá-los – eleições, democracia direta, qualquer coisa nesse sentido. Nossa função deveria buscar uma reforma real que fortalecesse a soberania popular dentro do aparelho do Estado, não ficar defendendo instituição que funciona mal. Só que a extrema direita conseguiu nos jogar nas cordas e entrar com o discurso de verdadeira ruptura.
Junte-se a isso com o fato de que essa direita tem base econômica, porque tem o agronegócio de seu lado. Ora, a esquerda não está disposta a brigar com o agro, a gente vê claramente. A esquerda não quer defender outro modelo de desenvolvimento agrário, por ser este atual, além de devastador, destrutivo, também concentracionista. O emprego é quase uma subescravidão, muitas vezes. Essa base econômica, juntamente com o fortalecimento ideológico, que vem do discurso neoliberal e com a associação com grupos religiosos e conservadores, faz com que surja um problema de longa duração. A extrema direita brasileira é um problema para os próximos 40 anos.
Elder Dias – Há cinco anos, o sr. esteve na Universidade Federal de Goiás para ministrar uma palestra, logo após a eleição de Jair Bolsonaro. Hoje estamos novamente sob um governo progressista. Pelo que sua fala dá a entender, isso não passou nem vai passar. Pelo contrário, existe uma ameaça de voltar até mais forte daqui a alguns anos, com um nome mais competente que Bolsonaro para implantar sua agenda reacionária. É nesse sentido mesmo?
É algo que aconteceu com o fenômeno da extrema direita na Europa. Primeiramente, vieram as figuras mais caricatas, como Jean-Marie Le Pen, na França, e Silvio Berlusconi, na Itália. Esses tiveram a função de redimensionar o discurso, fazendo com que aquilo que era impossível de ser anunciado possa então circular. Depois, vem uma segunda fase, com a extrema direita tecnocrata, com Marine Le Pen [candidata derrotada no segundo turno das últimas eleições da França], filha de Le Pen;, com Giorgia Meloni [primeira-ministra da Itália]; com Tarcísio de Freitas [governador de São Paulo], aqui no Brasil. São figuras que parecem mais palatáveis, mas que de moderados não têm nada: apenas trabalham em um campo onde não precisam mais forçar, porque isso foi feito lá atrás. Assim, podem até aplaudir ações como o “limpa” de vingança que a PM de São Paulo fez em Guarujá, sem que haja estranhamento, dizendo ainda que agiram de maneira absolutamente profissional e precisa.
Elder Dias – Podemos dizer que, então, o que a Argentina está passando agora é seu “momento Bolsonaro”?
Sim, e eu diria ainda mais: isso pode ter influência muito forte nos demais países latino-americanos, porque a extrema direita achou outro modelo. Em Bolsonaro, se juntava a experiência militarista com o neoliberalismo autoritário. Já Javier Milei [candidato da extrema direita à Presidência da Argentina] reúne uma perspectiva anarcocapitalista com esse neoliberalismo autoritário. Usando esse aspecto que já havia aparecido em Bolsonaro, mas com dificuldades, tornam a liberdade o eixo central do discurso político. Com Milei, se abre um outro campo, não militarista, e que pode efetivamente trazer uma série de problemas.
Elder Dias – E a condição da esquerda na Argentina é ainda mais crítica porque, nestes quatro anos de governo de Alberto Fernández, não conseguiu governar e a crise piorou.
Há uma insistência nesse modelo que a esquerda latino-americana tenta realizar, que é um populismo no sentido de Laclau [Ernesto Laclau (1985-2014), pensador político argentino definido como pós-marxista], de grandes alianças, em que se procura integrar certos setores da sociedade. A América Latina conheceu o modelo de Allende [Salvador Allende (1908-1973), presidente do Chile de 1970 a 1973, quando foi deposto pelo golpe militar de Augusto Pinochet]. Em três anos, ele criou quase 60 cordões industriais, fábricas autogestionadas. Era outro modelo de produção, ligado à ideia de autogestão da classe trabalhadora. Nada disso está na ordem do dia desse modelo de esquerda que tem no Brasil e na Argentina seu eixo fundamental. Esse modelo é falimentar. O caso argentino simplesmente mostrou isso; o caso brasileiro ainda vai mostrar. E, então, vamos ter um setor da extrema direita que vai para a rua. E aí vamos ficar com medo, mais uma vez.
Elder Dias – Que lição tirar de tudo isso?
Bolsonaro mostrou que o fascismo nacional é um eixo central de organização de nossa vida social. E isso não é um termo retórico: é um termo analítico. Existe uma larga história do fascismo nacional e a gente a negligenciou nas universidades, nos debates pela imprensa. O Brasil teve o maior partido fascista fora da Europa, que foi a Aliança Integralista Nacional, que tinha 1,2 milhão de membros nos anos 1930. Era algo enorme, não tem família aqui que não tenha alguém que foi integralista. Essa influência perdurou, passou pela ditadura militar e chegou até Bolsonaro. O ex-presidente era alguém que assinava cartas à Nação com o tema “Deus, Pátria, Família”, o mesmo dos fascistas. Isso coloca para nós a tarefa de entender melhor essa experiência do fascismo nacional: de onde ela veio; por que ela é tão forte; por que passa tão incólume; por que consegue se naturalizar dessa forma.
Nos momentos de crise, o fascismo reaparece, como ocorreu agora. Em 2013 temos o fim da Nova República, como eu disse, e, no meio daquela crise, como em toda crise, o processo pode ir para qualquer lado. Vai tomá-lo quem tiver mais capacidade de liderar. E, naquele momento, a esquerda não tinha. Eu me lembro de fazermos reuniões com intelectuais de esquerda e todos estavam perdidos. Havia um escritor conhecido – não vou dizer o nome – que se virou durante uma reunião para dizer: “Quem disser que sabe o que está acontecendo está mentindo”. Eu fiquei muito irritado e respondido: “Tem 100 mil pessoas nas ruas pedindo transporte público mais barato, educação pública de qualidade… o que você não está entendendo, por que tanta surdez?”. Essa é a afirmação clássica nas insurreições populares. Na época da Revolução Francesa também diziam que não estavam entendendo, embora as pessoas deixassem muito claramente que não aguentavam mais ser subjugadas e que queriam tomar o poder de volta para suas mãos.
Elder Dias – E quem estava na Presidência era uma pessoa de esquerda. Dilma, então, teve a oportunidade de se apropriar daquele movimento para ganhar poder. Faltou liderança?
Faltou uma lição elementar de maoísmo (risos). Ficar do lado de quem estava se revoltando, contra o aparato burocrático. Dilma tentou, pelo menos por 24 horas, quando fez a proposta de Assembleia Constituinte. Era o caminho, mas ela sentiu o baque e voltou atrás. Não se faz algo assim impunemente. Isso mostrou que a esquerda não estava preparada para vocalizar um processo insurrecional. A insurreição hoje mudou de lado: a extrema direita é insurrecional e a esquerda é governista.
Como assim, a esquerda não tem uma arte de governar? Basta ver o que fez a Comuna [de Paris]
Adriano Correia Silva – Gostaria que você discorresse sobre duas declarações de Foucault [Michel Foucault (1926-1984), pensador francês]. Na primeira, ele diz, em um curso, que com o neoliberalismo o monopólio das utopias deixa de ser da esquerda. Em outra, Foucault afirma que, até então, a esquerda não tinha o que ele chamava de “arte de governar” e, assim, toda vez que assumia um governo, fazia isso da mesma forma que a direita governava, talvez apenas com a mudança de alguns focos. Como o sr. vê essas formulações?
São colocações muito interessantes. Em relação à primeira, Foucault tem toda razão: é impossível compreender um sistema como o neoliberalismo sem entender o que ele tem de utopia realizada, o que é importante para o primeiro de seus dois momentos. Nesse primeiro, é sempre bom lembrar como Thatcher [Margaret Thatcher (1925-2013), primeira-ministra britânica de 1979 a 1990] falava com a classe trabalhadora. Ela dizia “vocês vão ter sua própria casa”. Só que o trabalhador comprava sua casa pelo sistema público, mas, com o processo de gentrificação [transformação de áreas urbanas que leva ao encarecimento do custo de vida] das cidades, tinha de vendê-la. No fim, perdiam tudo. Mas, enfim, havia essa utopia da sociedade empreendedora, de que, se a pessoa tomasse as coisas por si mesma, se o Estado não atrapalhasse, ela poderia exercer sua liberdade, que seria elemento fundamental para construção da abundância, da emancipação desse sistema quase familiar do “Estado-Providência”. Seria uma espécie de maturação, de “agir como adulto”, já que esse discurso, que vive aparecendo, diz que a esquerda quer tratar todo mundo como criança, dependente do Estado.
Em um segundo momento, não há mais a colocação de uma utopia. É o momento em que se faz circular o medo como afeto social. Então, passamos a ter outra configuração, em que a segurança entra de maneira brutal, explícita, e há uma necessidade de uma guerra contínua como modelo de gestão social.
Sobre o segundo ponto que Foucault coloca, sobre a falta de uma arte de governar, não acho correto. Isso vem da incapacidade que ele tinha de levar em conta os processos concretos de reorganização da vida social dentro dos movimentos revolucionários. Como assim, a esquerda não tem uma arte de governar? Basta ver o que fez a Comuna [de Paris, de março a maio de 1871, considerado por diversos historiadores como o primeiro autogoverno de caráter proletário e popular] durante dois meses, com todas as novas formas de governo que propôs. Basta ver, também, como foram os primeiros anos da Revolução Soviética, ou as várias tentativas menores – no sentido de mais comunitárias – que vão sendo desenvolvidas dentro do processo autonomista. Tem, obviamente, a questão de como depois generalizar a escala, mas o embrião está aí. Porém, se formos pensar, o modelo de gestão do Estado que Foucault tem é o Estado de bem-estar social europeu, esse é o horizonte de pensamento dele.
Adriano Correia Silva – Em relação a seu último livro, “Em Um com o Impulso”, até agora eu não havia me dado conta de que há uma conexão com outro, que você lançou anteriormente, sobre a noção de dever. Sobre a ideia de uma “liberdade sem lei”, não está presente um debate direto, por exemplo, com Kant [Immanuel Kant (1724-1804), filósofo alemão e um dos principais pensadores de sua época], mas o próprio Foucault não enfrenta, em nenhum momento, essa noção de uma obediência ou um governo de si. O que ele consegue imaginar é um governo de si não tutelado, como se poderia pensar em termos de Kant. Gostaria de lhe ouvir sobre se essa articulação que o sr. faz em seu novo livro tem a ver, de um lado, com uma crítica direta ao kantismo e a isso que Foucault acabou enaltecendo – por exemplo, não enfrentar a questão da obediência ou não enfrentar a relação de si para si sob a forma do legislar a própria conduta. Por outro lado, também queria saber mais sobre a aposta que o sr. faz, no livro, sobre uma liberdade que tem conexão com a estética.
O que eu queria era exatamente isso, fazer uma crítica da ideia de liberdade como autonomia, algo que há um bom tempo tenho tentado desenvolver. A autonomia no sentido clássico, de dar para si mesmo sua própria lei. Eu sempre me lembrava de uma colocação de Adorno [Theodor W. Adorno (1903-1969), pensador, compositor e filósofo alemão] que estranhava o conceito de liberdade no Ocidente, pois até quando se fala em “liberdade”, sempre se pensa na ideia de lei – ou seja, a liberdade como uma lei que eu dou para mim mesmo. Ou seja, há alguma questão aí a ser pensada. Por que essa figura da autolegislação é tão forte? Eu diria que isso tem matriz teológica. Então, é preciso voltar a Santo Agostinho [354-430, teólogo e filósofo dos primeiros tempos do cristianismo] para encontrar de onde vem essa ideia de autonomia, que é uma teologia travestida de moral, de certa forma. É algo que traz muito fortemente a ideia do autopertencimento, porque pressupõe que entre o “nomos” e o “eu” não há distância, ou seja, a lei que me dou é a expressão imanente do que eu sou. Penso que seja necessária uma ideia de autopertencimento, que é algo que Foucault não discute, como se autopertencimento e liberdade sejam a mesma coisa. Creio que, pelo fato de estar muito vinculado a uma recuperação dos autores gregos naquele momento, Foucault não leva em conta de que há uma questão histórica presente. Falar de autopertencimento no mundo antigo era uma coisa; falar hoje é outra, completamente diferente. Nos dias atuais, a ideia de propriedade se expandiu para todas as esferas da vida. Então, autopertencimento hoje é ser proprietário de si mesmo.
Autonomia estética não tem nada a ver com autonomia moral
Adriano Correia Silva – Como a figura do empreendedor, por exemplo.
Exatamente. Não tem como sair dessa relação. É um modelo de liberdade que acaba se realizando como servidão, porque se colocar sob a forma de propriedade é uma forma de servidão. Por isso, achei que seria importante procurar outro modelo de liberdade, como uma questão política maior de nossa época. Há tempos, então, tento trabalhar uma ideia de liberdade como uma heteronomia sem servidão. Ou seja, não como autonomia, esse autopertencimento, mas, ao contrário, como a possibilidade que os sujeitos têm de se abrir àquilo que não controlam, que não seja a expressão imanente da vontade e que, no entanto, não signifique se submeter a uma relação de servidão. Acho que a experiência estética tem muito a nos ensinar, nesse sentido. Por isso, quis tanto fazer esse projeto, que consiste em afirmar que autonomia estética não tem nada a ver com autonomia moral. A gente pode até ter a impressão de que as duas coisas são a mesma, mas autonomia moral está vinculada a certa ideia de autolegislação; já a autonomia estética está vinculada à capacidade que se tem de estremecer a sensibilidade, de trazer para dentro da forma aquilo que estremece a sensibilidade, aquilo que, do ponto de vista da organização da experiência sensível, é impossível de ser experimentado.
Adriano Correia Silva – E também impossível de ser legislado.
Perfeitamente, já que a experiência sensível é a expressão de uma lei imanente da vida social.
Adriano Correia Silva – A editora anuncia sua nova obra como uma trilogia. O sr. já está trabalhando no material seguinte?
Já estou trabalhando o segundo [livro]. Na verdade, a ideia é falar sobre essa relação entre experiência estética e emancipação social. Neste primeiro [“Em Um com o Impulso”], comecei a propor o problema, voltando à história da música, relatar como essa ideia de autonomia aparece na música. Para isso, quis analisar peças, falar sobre a música do século 19, porque achava que aquilo que parece fundamento de nossa tradição, na verdade, não foi compreendido. É uma das duas maneiras de pensar decolonialmente. Uma é recuperar as matrizes epistêmicas soterradas pela episteme hegemônica – claro, em países como o Brasil isso é uma operação explosiva, no bom sentido.
A outra é impor um olhar periférico à matriz hegemônica, apresentando que só da periferia se consegue entender o que realmente estava em jogo. É uma operação de descentramento que é a mais incômoda. Percebi viajando – em conferências ou aulas em outros países – falando sobre as questões de seu próprio território, que todo mundo aceita isso. Mas se questionar sobre Beethoven, Chopin, esse pessoal que eles achavam que entendiam… na verdade, não estavam entendo nada. E então é muito pior.
Adriano Correia Silva – Isso porque, falando de boas intenções, eles até acolhem a emancipação periférica, mas, se mexer no que é próprio “deles”…
Sim, há muita dificuldade em aceitar que um olhar exterior consegue entender melhor o que lhes seria próprio. Por isso, quis fazer esse tipo de operação. Já o segundo livro flexiona para uma questão: como se constrói esteticamente um povo? E, nisso, o eixo é o Brasil, como um projeto estético. O Brasil é um caso único no mundo. Se for pensar, não há outro país em que o modernismo se torna um projeto de Estado. A modernização político-econômica é também uma modernização estética, é vista dessa forma. Há vários momentos desse projeto de Estado e o mais clássico é a transformação da arquitetura moderna brasileira no eixo fundamental de reconstrução do espaço social, que vai até a construção de Brasília. Isso também passa por Goiânia, com a ideia de planejamento urbano, da cidade-jardim. Tudo isso mostra algo impressionante, mas que a gente esquece: o Brasil era uma ideia estética, antes de qualquer outra coisa. Há outros desdobramentos também, como a recuperação da antropofagia nos anos 60. É recuperar o povo – quem foi esquecido, o povo dos labirintos, dos espaços próprios da periferia. Então, eu queria reconstruir um pouco isso. O outro país em que o modernismo virou um projeto de Estado, ainda que por um curto espaço de tempo, foi a União Soviética. A diferença é que lá foi uma revolução de baixo para cima, um processo revolucionário que entende que as formas da sensibilidade precisam mudar para que a sociedade mude. No Brasil também, só que isso vem de cima para baixo, com a construção do Estado populista, do nacional-desenvolvimentismo. Guimarães Rosa é interessante porque explicita todas as contradições desse processo. É o sujeito que tem a tarefa de reformar o sertão, de reordenar o espaço, passar estradas, trazer o desenvolvimento. Não era só o processo econômico em si, mas também algo revestido de uma utopia da realização estética de um povo. Por isso é um projeto tão ambíguo: há um lado de violência colonial que continua, mas há essa outra coisa também. Compreender essa ambiguidade é todo um desafio.
Elder Dias – A partir desse ponto, é interessante parar e pensar nas diversas campanhas do século passado, como “O petróleo é nosso”, a indústria automobilística com JK [Juscelino Kubitschek, presidente da República de 1955 a 1960]. O brasileiro, naquele momento, parece se sentir integrado de verdade ao mundo.
Tem também uma coisa muito própria de um país colonial como o nosso, que é a de achar que a natureza seria um entrave ao progresso. É necessário sujeitar o “mato”, sinal de atraso e de letargia e superar todos os mitos do colonialismo, como o do espaço vazio de onde é “tudo mato”.
Elder Dias – E a partir disso os bandeirantes passam a ser entendidos como grandes heróis.
Sim, sendo que a gente sabe que tudo isso – esses mitos – são absolutamente falsos. As civilizações ameríndias eram extremamente complexas em sua interação entre processo produtivo e sua sustentação e intervenção nos espaços naturais. Basta lembrar que muito do que hoje é a Floresta Amazônica resulta da intervenção humana, a gente sabe isso hoje pela análise das terras, por exemplo. Havia a ideia de que essas sociedades eram apenas coletoras, não teriam agricultura, o que é completamente falso. A batata foi criada pela sociedade inca há 8 mil anos, como só poderia ser coletora? Ocorre, porém, que esses outros modos de distinção entre espaço natural e espaço social dessas sociedades desaparecem para o olhar europeu, que não consegue enxergar isso. Para esse olhar, ou tem o modelo de produção conforme pensam ou é apenas espaço vazio.
Elder Dias – E como será o terceiro livro da trilogia?
O último seria sobre a situação da experiência estética contemporânea e o impasse em que se encontra. A relação entre arte e política hoje é vista, em larga medida, como uma relação de luta contra-hegemônica, na qual é preciso preservar a gramática hegemônica e lutar dentro dela. Ou seja, preservar a matriz hegemônica de produção de mercadorias culturais e tentar lutar para desviar o sentido dos processos. Algo como efeito Barbie (risos). Essa luta é fadada ao fracasso, não pode ser feita, não funciona. A força fundamental da experiência estética é uma decomposição da gramática, digamos, social de percepção e de sensibilidade. Isso exige um outro tipo de abordagem e eu queria trabalhar sobre isso, para entender por que essa inflexão se dá com tanta força, por que se integra tão bem dentro dos processos mais monetizados da indústria cultural, ou mesmo dentro dos processos de mais ampla circulação da relação entre glamour e arte – nos sistemas de galerias, museus, de grandes bienais. Por que isso se conecta tão fortemente, dando uma ilusão de ruptura onde, na verdade, não há.
Elder Dias – É um projeto para ser concluído até quando? Há uma data?
Essa é a vantagem da vida acadêmica, de ter tempo. Mas deve ser rápido.
Vivi aqui [Goiânia] por quatro anos. Foi uma fase muito boa, tanto que preservei amigos que tenho até hoje
Elder Dias – O sr., nos tempos de adolescente em Goiânia, teve uma banda de rock, Departamento de Testes, cujos feitos ficaram registrados em fotos e em uma publicação da conhecida Livraria Hocus Pocus, ponto de agitação cultural. Como foi esse tempo?
Como isso ocorreu quando eu tinha 15 anos, posso me perdoar (risos).
Elder Dias – Mas sua relação com a música, então, vem desde criança e sempre muito forte, inclusive na formação clássica.
É realmente uma relação antiga mesmo. A música era um elemento geral do processo de formação de todos.
Adriano Correia Silva – E quanto tempo o sr. viveu em Goiânia?
Vivi aqui por quatro anos. Foi uma fase muito boa, tanto que preservei amigos que tenho até hoje. Era um momento em que havia uma cena alternativa underground da cidade e fazíamos parte disso. Os shows eram sempre performances, tinha sempre o pessoal das artes plásticas que fazia sua parte também e que produziram também inúmeros artistas conhecidos. Tinha todo um grupo, na verdade – gente que escrevia, que trabalhava com teatro, dança etc. Depois dessa banda, tive outro projeto semelhante com a Adriana [Peres Franco], que é mãe do DJ Alok. Eu fazia as músicas e ela dançava. A gente chamava isso à época de “estrutura multimídia”. Goiânia era uma cidade endógena, isolada – não é como hoje, em que todos viajam a todo momento, era tudo mais caro –, tinha apenas Brasília de proximidade. Então, todas as pessoas que se sentiam desconfortáveis com a ausência de uma cena cultural na cidade acabavam se encontrando e querendo fazer coisas. A gente frequentava bastante uma casa chamada Mephisto [casa noturna que se localizava na Avenida Ricardo Paranhos, Setor Marista], o dono era super gente boa. Havia uma rede de relação entre quem escrevia, quem tocava, quem fazia artes plásticas.
Elder Dias – Foi a época, também, do surgimento do Centro Cultural Martim Cererê.
E nossa banda foi a primeira a tocar no Martim Cererê. Meu pai [Fernando Safatle] era secretário estadual de Planejamento do governo de Henrique Santillo e eu usufruía dessa oportunidade de maneira completamente indevida (risos).
Elder Dias – O governo Santillo criou uma estrutura para a área cultural, comandada por Kleber Adorno à época, coisa que não existia em Goiânia.
De fato, além do Martim Cererê, havia também o cinema na Praça Cívica [Cine Cultura], onde também tocamos. Santillo foi quem criou no Estado a primeira Secretaria da Cultura, não existia antes.
Elder Dias – O sr. caminhou pela trilha da música erudita e, paralelamente ao trabalho intelectual e acadêmico, se tornou um compositor reconhecido. Como foi essa trajetória?
Quando fui prestar vestibular, pensei que Música não daria muito certo e procurei algo que pudesse dar mais futuro. Então, optei pela Filosofia (risos). A partir de então, deixei isso meio de lado durante um tempo, mas a música foi voltando em mim. Saí desse horizonte do popular – eu tinha uma banda gótica – e voltei para a música erudita. Quando estava na França, procurei um professor que era pianista de música contemporânea para poder aprender com ele, era algo que eu não conhecia. Mas quando voltei para o Brasil entrei nos quadros da USP no mesmo ano. A partir daí, foram anos em que não tive a menor condição de fazer nada a não ser explicar por que eu tinha conseguido entrar [na USP]. Quando percebi que passei a ter um pouco mais de tempo, voltei a compor. Entre idas e vindas – é verdade que nunca fui bom em “linhas retas” –, comecei a fazer peças musicais para teatro. Fiz parcerias a convite de Roberto Alvim [que depois seria secretário nacional de Cultura no início do governo de Jair Bolsonaro], uma delas, inclusive, muito boa, não tem como negar. Depois, acabei lançando dois CDs, um pelo Selo Sesc e outro, mais antigo, que é um trabalho mais fácil de circular, por ser piano e voz. Fiz também um trabalho com minha filha, Valentina, que também é compositora.