Doutor em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), o professor Tadeu Alencar Arrais é, antes de tudo, um questionador. Tem um olhar crítico em relação à sociedade em que vive e autocrítico sobre a própria condição, ao considerar o todo da realidade brasileira. “Somos um País tão desigual que um professor titular está com certeza entre os 10% dos que ganham mais, talvez entre os 5%”, lamenta.

Nos projetos que desenvolve para além da sala de aula, a premissa básica está na importância e na necessidade da presença do Estado para que haja, de fato, justiça social e acesso aos serviços conforme assegura a Constituição Federal. É o “cumprimento do Artigo 6º” da Carta Magna, como ele ressalta. Assim nasceu o Observatório do Estado Social Brasileiro, um site cujo objetivo é mostrar, com dados, como a máquina estatal é importante para o desenvolvimento da Nação. Assim também ocorre no canal Porque o Estado Importa, no YouTube.

Sua veia satírica para discussão da cidade onde mora fica para o blog Necrópole Goiânia, idealizado para aliviar a “solidão dos prefeitos” e que fica movimentado de quatro em quatro anos, quando há eleições municipais. Seu complemento vem por meio de outro canal no YouTube, Sobre Cidades, Zumbis e Neoliberalismo.

Professor titular do Instituto de Estudos Socioambientais (Iesa), onde também fez graduação e mestrado em Geografia, ele recebeu a reportagem do Jornal Opção em seu gabinete, no prédio da unidade acadêmica, no Campus Samambaia da UFG. Nesta conversa de cerca de uma hora, ele elogiou o governador Ronaldo Caiado (União Brasil) por implantar a taxa do agro, criticou a “ganância” de setores do poder econômico e diz que o novo arcabouço fiscal “só poderá ser visto por completo com a reforma tributária”.

O sr. é uma pessoa muito envolvida com a cidade, por meio do blog Necrópole Goiânia – que satiriza questões ligadas à política e ao dia a dia da capital – e também com a questão socioeconômica, principalmente por meio do Observatório do Estado Social Brasileiro. Não dá nem para dizer que sejam trabalhos à parte, já que isso compõe suas pesquisas acadêmicas, mas é certamente algo que contribui bastante à ampliação da discussão sobre os temas. Como estão esses projetos hoje?

O Observatório surgiu em 2016, quando da discussão da PEC 95 [proposta de Emenda Constitucional nº 95/2016], a chamada PEC do teto de gastos. Estávamos em Brasília e, naquele momento, a gente pensava em como poderíamos construir uma memória de dados do território brasileiro e, mais especificamente, uma memória do Estado social. Eu costumo dizer que o projeto do Observatório do Estado Social Brasileiro e também do canal [do YouTube] Porque o Estado Importa nascem para lembrar, a todo cidadão, sobre o Artigo 6º da Constituição Federal. É um dos artigos que eu mais gosto dela. Lá está escrito (lendo) “são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, a segurança, previdência social, proteção à maternidade” etc. Isso está lá a partir de 1988.

Então, se a Constituição diz que a educação, a saúde e a assistência aos desamparados por meio da previdência social são direitos sociais, está dizendo então que o Estado brasileiro é obrigado a oferecer esses serviços de forma universal para todo e qualquer cidadão brasileiro ou todo aquele que estiver neste País. É um desafio incrível.

Dizer que o Estado é grande, oneroso e ineficiente é uma mentira deslavada

Mas é também quase uma utopia, não?

Sim, mas por que é um desafio incrível justamente porque o Brasil não é a Dinamarca, não tem um padrão comparativo com outro país desse porte. Somos um País com mais de 8,5 milhões de quilômetros quadrados, mais de 5,6 mil municípios e uma história marcada pela escravidão, que formalmente terminou “ontem”, mas que continua de outras maneiras. Mais do que isso, somos um País muito diverso regionalmente.

O Estado brasileiro – e esse é o princípio do qual partimos – é extremamente eficiente, ao contrário do que dizem os liberais. O tripé que alardeiam, de que o Estado é grande, oneroso e ineficiente, é uma mentira deslavada. Nosso papel é desvendar essa questão e construir um contradiscurso que demonstre o que na prática já é evidente.

O SUS [Sistema Único de Saúde] é um exemplo dessa eficiência, não?

O SUS e o sistema educacional. Hoje, 12 de abril, aproximadamente 40 milhões de crianças, jovens e adultos saíram ou vão sair de suas casas para ir a uma escola pública. No dia de hoje, todas essas crianças, esses jovens e adultos também, lá vão lanchar, ter acesso a bons livros – que são melhores do que os do mercado privado, o que podemos provar – e travarão contato com professores de diferentes formações. Isso em Goiânia, em Uirapuru [noroeste de Goiás], em Santarém (PA), no oeste do Paraná, nos confins da Amazônia. Este Estado brasileiro, desde 1988 – ou seja, em relativamente muito pouco tempo –, vinha conseguindo universalizar o serviço na educação. Temos isso em dados, podemos provar, como já ressaltei. Em cerca de 2,4 mil municípios brasileiros, não há sequer uma escola privada.

Majoritariamente, o responsável pela educação no ensino básico é o Estado

Quase a metade do total…

Se desconsiderarmos as pequenas escolinhas, as chamadas “escolas de bairro”, vamos ver que majoritariamente o responsável pela educação no ensino básico é o Estado. Na saúde, da mesma forma. Se fizermos um esforço para entender como o acesso à saúde se distribui pelo Brasil, vamos ver que em uma parte significativa do território não há um único equipamento privado de saúde. Podemos nos perguntar, então, como as pessoas nascem ali, como tomam vacinas, como têm acesso a fraldas…

A pandemia serviu para ressaltar como isso ocorre.

Exatamente. Então, vamos tomar esses dois casos de muito sucesso e eficiência: a educação e a saúde, num imenso território como é nosso País. Portanto, quem é empreendedor no Brasil é o Estado – para tomar emprestado o título de um excelente livro de Mariana Mazzucato [economista italiana, professora de Ciência e Tecnologia na Universidade de Sussex, em Brighton, na Inglaterra], O Estado Empreendedor (o professor pega o livro, que está em sua mesa de trabalho). Ela faz a cartografia do Estado do ponto de vista de pesquisa e desenvolvimento (P&D), para mostrar como se dá a presença dele na criação e crescimento das empresas, como a Apple e tantas outras.

No caso, eu aqui falo de um empreendimento maior, que é salvar vidas, garantir acesso a serviços etc. Esse é o Estado brasileiro, ao contrário do que disse a Folha de S.Paulo em sua capa de domingo passado – aliás, bastante mal-arranjada –, noticiando que a maior parte dos jovens seria favorável à privatização e trazendo um leque de serviços públicos que deveriam passar para iniciativa privada, que vai dos Correios à Petrobrás, passando pelas estradas. O jornal relata ter feito uma pesquisa em pouco mais de uma centena de municípios, com 2 mil pessoas, que às vezes não têm sequer a experiência em travar o contato com o serviço público para dizer que o Estado é ineficiente. Sendo ineficiente, teria de ser privatizado, como se ele já não fosse.

O neoliberalismo quer o Estado para si

O que o sr. exatamente quer dizer com “como se ele já não fosse”?

Primeiramente, há um equívoco por parte dos liberais ao entender que há uma oposição entre o Estado e o liberalismo. Historicamente, isso não procede, porque na verdade é o próprio Estado quem cria o capitalismo, lhe dá outra cara e, a partir daí, há uma simbiose. Por exemplo, quem inventa o mercado nacional, por definição, é o Estado; quem estimula a política financeira de juros e o endividamento público é o Estado. Se observarmos os grandes romancistas daqueles séculos, como Balzac, para dar um exemplo, é comum ler em suas obras a palavra “soldo”. Nem os patronos do liberalismo, como Adam Smith, disseram que o capitalismo prescindiria do Estado. Não, o Estado tem suas funções nesse processo.

O que ocorre é que, a partir de certo momento, o Estado absolutista, que tinha como função sustentar o príncipe, amplia suas funções – a partir da Revolução Industrial, principalmente – não porque queira, mas porque o movimento operário e demais movimentos sociais passam a exigir. Então, esse Estado passa a incluir a questão previdenciária; depois, com novas movimentações, esse mesmo Estado começa a oferecer serviços de educação etc., até chegar aos dias de hoje.

Ou seja, o Estado amplia suas funções e, se isso ocorre, é preciso também ampliar sua capacidade fiscal, até para lidar com suas crises. Portanto, há um falso debate nessa oposição [entre liberalismo e Estado], como é falso também dizer que o neoliberalismo é contra o Estado. Na verdade, o neoliberalismo quer o Estado para si – basta ver, hoje, a política de juros. Então, se na PEC 95 basicamente se dizia que ficariam congelados os gastos com serviços no País – o que seria difícil na Noruega, imagine então no Brasil –, hoje chegamos ao novo arcabouço fiscal. O que esse arcabouço estabelece? Um limite de 70% para investimentos com algumas bandas para lá e para cá. Ora, mas se há essas bandas, independentemente de a receita crescer, objetivamente haverá um limite de expansão em um Estado em que os serviços não foram universalizados ainda.

O sr. vê alguma evolução, na comparação entre a PEC  95 do governo Michel Temer (MDB) e o novo arcabouço fiscal do ministro da Fazenda, Fernando Haddad? Ou seria apenas um “teto de gastos 2.0”?

É uma pergunta de muito difícil resposta. Ela teria de ser respondida pela leitura do projeto do governo que foi eleito; depois, pela leitura da ação desse mesmo governo; e, por último, pela leitura da sociedade civil. O pessoal que trabalha com a auditoria da dívida pública, por exemplo, acha que a proposta é um penduricalho. Um ponto chave é que a política de juros não foi tocada, até onde eu sei. O que isso significa? Se há um limite de 70%, com bandas para baixo e para cima, se a atividade econômica e, portanto, a receita subir extraordinariamente, tudo continuará limitado. E isso sem tocar na questão dos juros.

Nós sabemos que um dos problemas centrais do Brasil é o endividamento público, que faz com que o cumprimento do Artigo 6º da Constituição seja restringido. Temos um problema no Brasil: deveríamos discutir essa questão já no ensino básico, com os próprios alunos. Há um consenso de que o mundo em que nós nascemos, regrado pelo fordismo, bastante encaixado, quando se tinha previdência, seguridade, trabalho etc., e então as pessoas contribuíam para o sistema, havia a esperança da casa própria… Isso acabou, embora a maioria das pessoas ainda não tenham consciência disso.

Quando somamos a população do trabalho informal com os desempregados e isso dá mais do que que a população trabalhadora formal, há algo que mudou bastante: temos um desemprego estrutural e, a partir dele, o endividamento. A política central do neoliberalismo é o endividamento, criam-se sujeitos endividados. O Brasil tem, se entrarmos nos dados do Serasa, mais de 60 milhões de pessoas negativadas e endividadas. Há um Estado endividado e um indivíduo endividado. E esse Estado pede ao indivíduo para fazer sacrifícios. Com que finalidade? Remunerar o mercado financeiro.

Fechando, por seu raciocínio, então o neoliberalismo não prescindiria do Estado, pelo contrário, ele abusaria do Estado?

Sim, observe os mecanismos. Se há títulos que vão dar em média 11% de lucro ao ano, porque, tendo R$ 1 milhão em reserva alguém investiria em uma padaria? Não faz sentido. Da mesma forma, pode-se investir em uma letra como LCA [letra de crédito agrário] ou LCI [letra de crédito imobiliário] e pegar 11% livre, sem taxação nem imposto de renda. Ford [Henry Ford (1863-1947), industrial estadunidense criador da montadora Ford, entre outros investimentos], em suas memórias, escreveu “sempre aconselho aos jovens industriais se afastarem dos banqueiros”. Porque ele via claramente o que gerava valor e o que geraria esse tipo de renda no mercado financeira.

A emergência do mercado financeiro coincide com o fim do fordismo. Com a decadência do fordismo, há também a decadência de um modelo de cidade. Por quê? Simples, se o fordismo falava de um trabalho em massa, de um consumo em massa, de um consumidor homogêneo, falava também de um sistema que gerou uma cidade relativamente homogênea dos grandes condomínios verticais, como ocorreu em algumas cidades dos Estados Unidos. Quando esse modelo rui, rui também o financiamento, rui a previdência e tudo com ele. E os Estados Unidos se transformou no país que são hoje: com uma população sem teto ou nômade assustadora, com problemas ainda piores do que os do Brasil, com cidades-fantasma e tudo o mais.

Qual o resultado disso? Uma pressão cada vez maior para retirar o Estado e deixar que todos se virem. É uma narrativa “zumbídica”, por assim dizer, é um mundo zumbi, sem política, sem mediação, um mundo de violência e da anulação do outro.

É como se fosse uma anomia programada, um processo distópico?

Nós vivemos uma distopia. Não é por acaso que haja atualmente tantas séries sobre zumbis e algumas delas entre as de maior sucesso, como The Last of Us. O que a maioria delas têm em comum? Claro, todas trabalham com a questão da hecatombe, de um princípio de violência, mas todas trabalham com conflitos do fim de uma comunidade política e o desafio de recriar um mundo político do qual ainda há uma memória.

O IPTU é um imposto pedagógico, deveria ser ensinado na escola

Zumbis lembram necrópole. O sr. tem um blog chamado Necrópole Goiânia. É sobre isso, também?

Sim, é um blog que eu alimento de quatro em quatro anos, durante as eleições. Ele nasce para apoiar os prefeitos, essa é a verdade. A atividade de ser um prefeito, por exemplo, a de Rogério Cruz [prefeito de Goiânia, do partido Republicanos], é muito solitária. Ele tem todos os seus capachos, há os guardiões na imprensa, o corpo burocrático, os intelectuais que discutem as coisas. O [blog] Necrópole surge para ajudar esses prefeitos a romper sua solidão. Então, os textos são de apoio, de estímulo, sem exigir nada. Porque a Necrópole admite a falência do espaço público, a absoluta falência. É óbvio que são textos irônicos – embora tenham pessoas que levam a sério.

Vamos falar sobre o IPTU [Imposto Territorial e Predial Urbano] em Goiânia. Foi uma tragédia. O IPTU é um dos impostos mais pedagógicos que existem, deveria ser ensinado na escola. Porque existe um zoneamento que mostra onde você está na cidade, de quais serviços você usufrui no raio próximo a sua casa e com quanto você tem de colaborar. Mas o que é o IPTU em Goiânia? Hoje ele faz com que quem mora no Setor Aeroporto [zona central da capital], como eu, por exemplo, em um lugar com acesso a todos os serviços, pague menos do que quem mora aqui no Itatiaia [zona norte da cidade], como você. Isso não é justo, porque quem, está aqui não tem as mesmas facilidades do que quem está no Setor Aeroporto. Não é justo e não é pedagógico. Eu teria de pagar mais impostos, por tudo o que eu disse, mas o que ocorreu na última mudança, foi que minha alíquota baixou. É absurdo.

Mas, em termos de carga tributária em geral, o Brasil não é nada pedagógico, não?

Não é nada pedagógico, mas temos de tomar cuidado com as deduções a partir disso. Há uma pirâmide invertida no Brasil, em termos de tributação. Então, isso não é nada pedagógico aqui porque as classes mais baixas, em termos de renda, sempre pagam mais impostos, porque aqui se cobra majoritariamente sobre serviços e consumo, em vez de centrar em renda e em patrimônio. Então, vamos explicar: quando se fala que os pobres pagam mais impostos, as pessoas se escandalizam, porque o arroz que se compra é o mesmo para ricos e pobres. Mas, calma, não é essa a conta: vamos supor que o custo da cesta básica seja de R$ 600 e o sujeito ganhe R$ 1 mil, ele vai gastar 60% do que ganha com a cesta. Se alguém ganha R$ 10 mil, vai comer o mesmo arroz, mas vai gastar 6% com os mesmos produtos. E esse indivíduo que ganha R$ 10 mil, se der sorte de morar em Goiânia, tem boa chance de pagar menos IPTU.

Quem ganha por volta de R$ 10 mil mensais hoje não tem uma vida de nababo: vai ter as despesas domesticas, pagar seu plano de saúde, talvez um plano previdenciário, pagar a escola dos filhos, entre outras coisas. Mas, em vista daquele que ganha R$ 1 mil, esses gastos são luxos.

Sim, exatamente. E a distância para o que ganha R$ 100 mil, obviamente, é muito maior. Porque este pode ter o privilégio de poupar e em algum tempo ter guardado R$ 1 milhão e investir em LCI ou LCA – ou qualquer aplicação financeira do tipo – que lhe dê mais de R$ 100 mil de rentabilidade por ano, ou quase R$ 10 mil a mais por mês, sem pagar tributação. Já quem está trabalhando para ganhar os R$ 10 mil mensais não tem como fugir do leão, dos impostos que estão na base. Aí chega o governo e faz uma desoneração em cima de produtos de consumo conspícuo. Ou seja, baixa a alíquota do salmão – que é um consumo conspícuo, as pessoas podem não gostar de falar, mas, ora, ninguém vai morrer se não comer salmão.

Ou seja, os pobres e os pequenos empresários, aqueles que fazem de verdade girar a atividade econômico, acaba pagando mais impostos. Só que os de cima vendem a vulgata de que a carga tributária é muito alta no Brasil. Não é assim. A carga tributária global é menor do que a de muitos outros países. E digo mais: é preciso tributar, sim, para que o Estado possa oferecer os serviços devidos.

O Brasil é um país tão desigual que um professor titular está entre os 10% que ganham mais

Ou seja, para que se cumpra o Artigo 6º e, então fechamos o ciclo.

Claro.

O sr. então acha que, na regra de mudança fiscal proposta pelo governo Lula – que ainda não é uma reforma tributária –, eleito pela maioria dos pobres, está refazendo aquilo que desenhou 20 anos atrás: não mexer com a renda dos mais ricos – ou mexer o menos possível – para fazer com que os mais pobres ganhem alguma coisa, ou percam menos. É isso?

É um pouco por aí. O novo arcabouço fiscal – sempre deixando claro que não sou especialista da área, apenas um curioso – só poderá ser visto por completo com a reforma tributária. Uma coisa complementa a outra. O que virá por aí? O governo tem falado em taxação de grandes fortunas, imposto sobre heranças, sobre lucros e dividendos etc. Hoje, qualquer garoto de classe média está lidando com aplicativos de bolsa de valores no celular, são “traders”. Como é que não se tiram dividendos disso? Que país do mundo isso acontecesse dessa forma? O governo vai ter de pensar sobre isso, pensar suas prioridades e taxar quem ganha melhor, como nós – e o Brasil é um país tão desigual que um professor titular deve estar entre os 5% ou 10% dos que ganham mais. Mas é difícil assumir isso, porque somos corporativistas.

A média dos servidores públicos federais, justamente por conta da alta desigualdade social, acaba ficando em uma situação muito privilegiada diante da população em geral. E é uma classe que, também pela média, mais apoia do que se opõe ao atual governo. Será necessário então cortar na carne até da categoria?

Não tem outra solução. Veja bem, como aumentar a receita? Com o crescimento da atividade econômica? Ok, dessa forma também. Outra forma é tributar renda e patrimônio. Vamos falar sobre uma questão polêmica para Goiás: o Imposto Territorial Rural (ITR). Não é brincadeira quando dizem que o IPTU da cidade de São Paulo é maior do que o ITR do Brasil inteiro. Por hectare, se paga pouco mais de 1 real. Desafio alguém a falar que, em algum outro lugar do mundo, essa propriedade é tributada assim – e, muitas vezes, propriedades que receberam subsídios do governo. Teriam, claro, que dar sua contribuição. Mas, veja, é uma arena na qual a gente vai ter de tocar na chamada bancada ruralista. Mas dá para perceber o quanto isso é injusto? A pessoa tem mil hectares e paga tão pouco! Em Goiás, agora, a discussão é sobre a taxa do agro…

A taxa do agro é o evento mais significativo da política goiana nos últimos tempos

E o que pensar sobre essa polêmica, que coloca em polos opostos um governador ruralista como Ronaldo Caiado (União Brasil) e os produtores rurais?

A aprovação da taxa do agro talvez tenha sido o evento mais significativo da política goiana nos últimos tempos. Sem dúvida, a iniciativa vem de um governo conservador – não sou eu quem digo, é o próprio Caiado. Outra questão: é um governo conservador que chama sua própria base, que é o agronegócio, para contribuir. Um setor que tem em si uma retórica de sofrer uma carga tributária alta e o governador fala “vocês têm de contribuir com isso”. E então, consegue criar a taxa do agro.

Primeiramente, vamos esclarecer: não é “taxa do agro”, é taxa agromineral, basta pegar o decreto para ver isso. Em segundo lugar, é uma taxa seletiva, que recai sobre um conjunto de atividades do setor primário que são de itens exportáveis. Portanto, não é sobre a mandioca, a banana, nem o abacaxi – poderia até ser, mas não é o caso. O recorte é apenas sobre o setor agromineral que exporta e não só isso: tem de exportar e ter recebido algum tipo de subsídio governamental. Isso é perfeito.

Em tese, foi uma jogada de mestre do governador?

É uma jogada de retorno, de contrapartida. Mas ainda há mais: as alíquotas são progressivas, de acordo com cada setor. O fato é que se impõe uma lógica sobre um setor que cresceu bastante, que é muito importante – embora seja mais importante na renda geral do que na geração de emprego. Esse arranjo, segundo uma simulação simples que chegamos a fazer com os alunos, daria em torno de R$ 770 milhões de receita ao ano. Porém, quando começaram os debates sobre a proposta, de um governo conservador, repito, vieram as surpresas. Entre elas, a de o próprio PT ser contra ela. É algo que não é fácil de entender.

Como o sr. interpretou essa posição dos petistas? Foi algo apenas para fazer oposição ao governo Caiado?

Eu cheguei a ver uma entrevista da então deputada estadual Adriana Accorsi [PT, hoje deputada federal], em que ela dizia que o projeto não teria sido discutido nos detalhes, algo assim. Mas era desculpa pura. Quem, na esquerda, dirá que não é preciso aumentar impostos em determinados setores? Vamos falar, por exemplo, do passivo ambiental desses setores. Então, por que o PT vota contra? Parece-me uma ingenuidade em relação a um tipo de ação específica, que não demonstra se importar com a leitura burocrática do Estado. Então, vamos pegar meio bilhão de reais que seja que poderia ser arrecadado e podemos falar: “olha, na lista de prioridades para esse montante está a infraestrutura na frente”. Veja, se com esse novo fundo o governo consegue duplicar, por exemplo, a GO-020 até Catalão, isso não estará acontecendo só para o agro: a ambulância passa por ali, o transporte intermunicipal, os turistas. Por outro lado, cada centavo que for colocado por esse fundo na infraestrutura, é um centavo a menos que precisaria ser retirado de um investimento a mais na saúde. Ou seja, esses R$ 700 milhões não vão ser “tirados”, vão ser geridos a partir de um determinado formato. Eu acho isso muito positivo, demonstra uma visão mais orgânica do funcionamento do Estado, por parte do governo.

E isso pode ser colocado positivamente na conta de Caiado?

Mas óbvio! (enfático) Foi uma ação correta. Mas o que me estranha é não haver uma visão, por assim dizer, mais equilibrada do momento político do País. Imagine se todo Estado fizesse isso. Ora, tivemos uma Lei Kandir [Lei Complementar nº 87/1996, assim nomeada por conta do então ministro do Planejamento, Antônio Kandir] que dava isenção para quem exportava in natura. Isso é um absurdo em qualquer lugar do planeta, porque pelo processamento do produto se cria valor agregado.

Foi uma medida de desincentivo à industrialização.

Claramente. Então, por isso mesmo, não entendi muito bem certas posições. Imagine se todas as unidades federativas fizessem o mesmo que Goiás propôs na questão da taxa do agro, teríamos, em tese, governos mais solventes, com recursos vindos de um setor que tem a dar, até porque recebe muito também.

É possível ver em nosso setor do agro a mesma ganância, vamos dizer assim, que se vê em toda a elite brasileira, de tentar tirar tudo o possível do Estado e não devolver nada. Vamos chamar isso de falta de generosidade com o conjunto da sociedade. Podemos dizer que frequentemente observamos isso na discussão de questões como o Plano Diretor de Goiânia. Ou seja, há uma falta de generosidade dos que têm o poderio econômico em relação ao conjunto da pólis?

Não há dúvida. A professora Maria Ester [de Souza, doutora em Geografia pelo Iesa/UFG, arquiteta e professora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO)] e seu pessoal no CAU-GO [Conselho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás] sempre estão muito avançados nesse tema, mas podemos dizer que o Plano Diretor é basicamente no que pode e no que não pode em termos de zoneamento. O resto é quase que detalhe. E o que é Goiânia, quando você fala no termo “generosidade”? Nesta cidade, temos as propostas mais absurdas do planeta, talvez na galáxia. Talvez eu esteja errado, mas que tal fazermos um experimento: vamos traçar, a partir da Praça Cívica, um raio de dois quilômetros. Eu desafio quem quer que seja a me dizer que nessa área haja menos do que dez hectares de áreas doadas para igrejas, das mais diversas denominações religiosas. Um hectare são 10 mil metros quadrados. E essas denominações não pagam um centavo de imposto. Mais do que isso, vereadores tiveram o descaramento de colocar que seria preciso também isentar de IPTU os espaços alugados pelas igrejas. Isso é ridículo e fomentado pela Prefeitura. Mas sabemos qual é o poder de mobilização que têm essas denominações religiosas, com um telefonema colocam 10 mil pessoas em qualquer local, para pressionar. Estamos dominados por esse tipo de padrão de uso do solo.

Então, se eu fosse candidato a prefeito de Goiânia, eu teria dois projetos básicos: taxação de IPTU para igrejas e também cobrar delas o ISS [Imposto sobre Serviços]. Porque, afinal, elas oferecem serviços, ou não? Há pelo mundo outros serviços, menos ortodoxos, que são taxados. Em Montevidéu, no Uruguai, por exemplo, tem um tipo de serviço que é muito pouco ortodoxo, ao juízo das igrejas, é do qual é cobrado imposto, com carteirinha e tudo. Ou a gente discute esse poder ou cada vez mais o fiel vai sair de sua casa, em uma rua sem asfalto, sem esgoto e sem iluminação para orar em uma igreja rica, independente da agremiação.