Renato Lucas: “Nunca vamos passar pelo fenômeno do suicídio. O ser humano nunca vai ficar livre”
13 setembro 2020 às 00h01
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Psicanalista afirma que é importante realizar o setembro amarelo, que a prevenção ao suicídio precisa ser discutida e que não vê que abordar o tema seja um risco
Para o psicanalista Renato Mendonça Lucas, é salutar que campanhas como a do setembro amarelo, de prevenção ao suicídio, sejam realizadas. É preciso trazer o assunto ao debate público e alcançar cada vez mais pessoas. Ao contrário do que se pensou durante muito tempo, Renato Lucas diz não perceber qualquer problema à saúde pública ao verificar o assunto abordado pela imprensa.
Mas o profissional discorda que o suicídio seja uma “epidemia silenciosa”, como define a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) nas primeiras páginas de uma de suas cartilhas informativas sobre o suicídio. “No caso de um suicida, você só sabe que a pessoa é suicida quando ela comete o suicídio. Se você analisar, em algumas situações é possível verificar alguém que poderia ser classificado como de grande propensão ao suicídio. Mas, mesmo assim, muitas vezes a pessoa pode externar esses traços e não cometer o suicídio.”
Qual é importância, desde 2014, de se ter um mês específico para a campanha do setembro amarelo?
Qualquer coisa que se faça na mídia é importante. Tem a extrema importância de trazer a discussão acerca da problemática do suicídio, que é sempre presente. Se vai contribuir efetivamente com a diminuição ou não do suicídio é uma coisa a saber. Mas é importante com um alcance de mídia, que atinja o coletivo para trazer a discussão e despertar o debate. Assim como o mês de setembro trata da prevenção ao suicídio, outros meses são eleitos para tratar de outras questões. É uma ação de boa índole, com boa pretensão, que traz um debate para algo que é uma problemática do humano. É louvável, perfeitamente interessante.
Durante muito tempo, tratar publicamente do suicídio poderia gerar uma abordagem que despertasse em quem tem intenção de se matar o incentivo que faltava para tirar a própria vida. A discussão pública do problema ajuda ou ainda carrega dificuldades?
Não considero de maneira alguma que debater o suicídio especificamente vá provocar um aumento ou uma diminuição nos casos. Um movimento que traz luz ao debate é sempre importante, mas não sei se tem resultados ou se a pretensão também é de evitar, de fazer uma profilaxia. Se houver, também não posso garantir que haja uma melhora, no sentido de diminuição.
Não há qualquer possibilidade de se pensar que trazer uma discussão sobre suicídio à tona possa provocar um aumento do número de suicídios. Não é isso que provoca ou que leva alguém ao suicídio. O que leva alguém ao suicídio pode ser qualquer coisa. Ninguém, nenhum profissional, pode ser tão experimentado o quanto puder, tem como prever alguém que vai se matar com certeza. É impossível. Nos anos que tenho de clínica vejo que é impossível alguém afirmar que alguém vai se matar.
A pessoa pode estar rindo aqui e conversando e de repente passar na cabeça dela o desejo de se matar, essa pessoa vai lá e se mata. É claro que a pessoa já deu alguns sinais. Mas isso todo mundo faz. A grande maioria das pessoas, em algum momento, em termos de fantasia, mesmo de um pensamento ou de uma ideia, já pensou na morte, em abreviar a vida.
Cabe citar o doutor Sigmund Freud, que chega a dizer que não há morte natural. Toda morte, um pouco, é algo que você vai de encontro a ela. Pensar, por exemplo, em morte natural é meio estranho, porque, no final das contas, cada um acaba por dar um jeito de morrer. Claro que há uma diferença entre o que é propriamente um suicídio e o que é alguém ir de encontro à morte. Existem muitas maneiras de a pessoa chegar a uma morte provocada que não é classificada como suicídio. Mas poderia ser.
Por exemplo, uma pessoa que reage a um assalto. Provavelmente há nessa pessoa um desejo muito forte de morrer, que vai aproveitar desse momento e reagir para fazer o outro matá-la. Aqui ela morre, é assassinada. É um crime. Realmente é um crime. Mas se analisarmos mais a fundo, a pessoa aproveitou daquele momento para se matar. Poderia ser classificado como um suicídio, mas não é.
Quando se fala da pessoa que chega a tirar a própria vida, os psiquiatras e psicólogos discutem bastante a questão da ideação suicida. É possível identificar, mesmo que traços de comportamentos mais leves, na personalidade ou nas atitudes que indicam predisposição ao suicídio?
É uma discussão extremamente polêmica, porque traços aparecem em quase todas as pessoas. Nós temos sempre traços, a cada dia, de algo que nos leva à morte. No caso de um suicida, você só sabe que a pessoa é suicida quando ela comete o suicídio. Se você analisar, em algumas situações é possível verificar alguém que poderia ser classificado como de grande propensão ao suicídio. Mas, mesmo assim, muitas vezes a pessoa pode externar esses traços e não cometer o suicídio.
Mas é alguém que nos causa confusão. A pessoa tem traços. Se eu elencar ou eleger como traços de alguém suicida, posso me enganar porque essa pessoa pode ter os traços, mas nunca chegar às vias de fato. E, ao contrário, pode chegar às vias de fato. Veja que há uma grande discussão em torno da questão. Elaborar uma nosografia ou uma sintomatologia definitiva é um grande risco, porque você pode cometer erros de avaliação.
Nós, seres humanos, temos traços de várias coisas. Se você coloca esses traços como algo plausível de determinar um diagnóstico, pode-se cometer um erro. Você pode fazer uma confusão seriíssima, que é confundir o que é frequente com o que é universal. Por uma coisa que é frequente, achar que pode tomar aquilo como sendo algo universal e partir para uma teoria geral, uma nosografia geral, e pode cometer erros de avaliação diagnóstica.
É algo meio pantanoso. Sempre será. A mente humana é aberta. É aparentemente triste e frustrante dizer isso, mas, por outro lado, é o que é belo também. Porque a mente humana é muito aberta, diversa. E lidar com a mente humana é algo que tem de ser muito artesanal. Se fosse possível prever o suicídio na maioria dos casos, muito do que se comete de suicídio poderia ser evitado. Mas não é.
Inclusive há sazonalidades. Existem meses do ano em que as estatística comprovam que há um aumento do suicídio. Geralmente em finais de ano e início do ano seguinte. As pessoas chegam ao final do ano e fazem um balanço dos últimos 12 meses, como se isso fosse possível. Não recomendo que se faça balanço de fim de ano. Primeiro, fim de ano é um dia depois do outro. Fim de ano é só uma comemoração, uma coisa simbólica, cronológica. Mas é só um dia depois do outro, não acaba ou recomeça algo.
Mas as pessoas têm a crença de recomeço e fazem um balanço do ano, de uma forma fechada. O balanço vai ser sempre de prejuízo, porque você deseja muito mais do que realiza. Todo balanço que as pessoas fazem da vida é sempre de prejuízo, porque nós sonhamos muito mais do que concretizamos. Quando esse balanço é feito, a pessoa pode entrar em um processo de depressão, de melancolia, e chegar de repente… é de repente, algo que vem se construindo ao longo de uma vida, mas, mais do que de repente, há um pensamento que passa pela cabeça da pessoa e ela decide se matar.
É possível dizer por que algumas pessoas conseguem lidar melhor com as frustrações cotidianas da vida, como a perda de um emprego, o fim de um relacionamento, enquanto outras tomam decisões mais radicais, como o suicídio?
É possível. Costumo dizer que a vida humana é feita de contradições. São nas contradições que você aprende e fica próximo a aquilo que tem a ver com a verdade. Quanto mais uma pessoa, desde criança – isso é importante dizer porque os fundamentos se dão na infância, do quinto ao sexto ano de vida -, quanto mais é ensinada, educada, a suportar limites, castração, a reconhecer que não é competente para todas as coisas e há sempre uma possibilidade de incompetência, de imperfeição, mais se aprende a lidar a seguinte contradição: mais competente serei na vida quanto mais reconhecer minha incompetência.
Ou seja, quanto mais eu suportar minha incompetência, mais posso ser competente de enfrentar a vida. De saber suportar que você não é perfeito, não é inteiro, é falho. Suportar isso é a possibilidade de você suportar a vida. As pessoas que não tiveram, desde a mais tenra infância, uma educação que indicou na direção disso, terão problemas para enfrentar as coisas da vida. É como se a pessoa não suportasse. A vida passa a ser insuportável, porque passa a ser diferente do que esperavam que fosse. O suicida, neste sentido, é um poderoso. Tão poderoso que não suporta que a vida o apresente destituído deste poder. Apesar de parecer frágil, porque ao invés de reconhecer o impossível, a experiência é de impotência. Só aparece como pessoa frágil, mas briga com a inteireza, com o poder. E a vida nem sempre é assim, de poder as coisas.
Apesar de o sr. ter dito que é difícil cravar que uma pessoa que se suicida era alguém com algum transtorno ou distúrbio psiquiátrico, a consulta ao psiquiatra, a busca por um tratamento ou terapia ainda é um tabu no Brasil?
Já tivemos muito mais. Não tenho a capacidade com clareza de dizer se ainda é tabu, porque é algo individual. Acredito que para certas pessoas ainda deve ser. Mas isso já foi muito pior. Não sei dizer se o teatro, o cinema, a arte e a mídia têm favorecido a quebra do tabu, mas hoje as pessoas, se ainda resistem… A resistência a procurar alguém sempre vai existir. É uma resistência de se submeter, de se entregar a alguém, que a pessoa não conhece, poder falar da sua intimidade. Essa é uma resistência que sempre vai existir e é necessário que exista.
Métodos que usam de uma forma para sugestionar driblar a resistência não funcionam muito bem. A pessoa que procura ajuda profissional, vai procurar com certa resistência. A resistência faz parte do próprio tratamento, da situação da psicanálise. Não dá para descartar isso. Faz parte do próprio funcionamento mental. Mas em termos sociológicos, o tabu já foi muito pior. Antigamente se dizia que quem procurava mais ajuda eram as mulheres, mas muitos homens hoje vão atrás de ajuda.
“O balanço vai ser sempre de prejuízo, porque você deseja muito mais do que realiza. Todo balanço que as pessoas fazem da vida é sempre de prejuízo, porque nós sonhamos muito mais do que concretizamos”
No caso de uma pessoa com depressão que não é devidamente acompanhada e tratada, a predisposição ao suicídio tende a ser maior?
Sim. O fato de uma pessoa apresentar um estado melancólico pode aumentar o risco, mas o estado maníaco também. A própria constituição do aparelho mental é bipolar, como tudo na vida, são dois polos. A começar daquilo que é a primeira verdade e a única certeza: há vida, há morte. Se há vida e há morte, há amor e há ódio, há triste e não triste, que as pessoas chamam de alegre, há escuro e há claro. O mundo é bipolar.
O que se verifica como patológico é o transtorno da bipolaridade, quando há oscilação do humor, que é diária em todos nós – oscilamos, basculamos o humor -, entre melancolia e o estado de mania, o estado de euforia. Não só o estado melancólico é capaz de ser um acometimento pré-suicídio, como também o estado de mania. Porque são dois extremos que se unem quando se fecha um ciclo. A melancolia profunda e a mania extrema são, na verdade, estruturas muito parecidas com sinais trocados.
Já vi pessoas extremamente risonhas de orelha a orelha estarem profundamente melancólicas, falantes, taquilálicas, que expressavam uma condição que poderia ser classificada como estado maníaco, mas, no entanto, estavam deprimidas. É mais complicado se ver na melancolia alguém manifestar de uma vez só o estado maníaco. Mas pode ocorrer também uma virada instantânea. Quando há o transtorno, de onde vem a nosografia de hoje, que é transtorno bipolar, era a chamada psicose maníaco-depressiva, é pré-condição.
Mas tem situações que podem levar ao suicídio que prescindem do estado melancólico contínuo ou frequente. A pessoa pode nem estar no estado melancólico e manifestar de repente. Porque o pensamento de aniquilamento do eu pode tornar, ele mesmo, um objeto de ódio. O eu pode se virar contra ele mesmo. É um fenômeno bastante inusitado. Mas o eu não só investe no outro, mas pode tomar ele mesmo com um outro, pode ser amorosamente ou pode ser um aniquilamento de ódio, de censura, de autoaniquilamento, de autoflagelamento. Nos casos de suicídio, é algo parecido com isso, o eu se volta contra ele mesmo. Não suportando o mundo, que é o mundo do outro, ele se aniquila.
De forma mais simplificada, uma pessoa em desequilíbrio evidente entre os dois polos – maníaco e depressivo – estaria mais predisposta a cometer suicídio?
Aí é que está o problema. Quem não é transtornado? Há transtornos e transtornos. A palavra transtorno pode ser tomada radicalmente como única para dizer de algo anormal. Mas quem é normal? O normal que as pessoas consideram é doente. Você já esteve perto de alguém normal? Se você já esteve perto de alguém que supostamente lhe pareceu normal, é o típico neurótico obsessivo. É aquele cara que não dá rata. A rata está dentro dele, só não dá rata.
Não existe alguém que não tenha algum tipo de transtorno diariamente. Acontece que a grande maioria das pessoas, em termos do que é inconsciente e atravessa o pensamento, à revelia do próprio ego, ficam como crianças diante de fantasmas. Se assustam com pensamentos que são imorais, amorais ou qualquer coisa que seja esdrúxula. Tanto é que os poetas costumam dizer que por trás de um grande moralista há sempre um perfeito perverso.
A mente humana, o se passa dentro dela, é sempre transtornado. É que, em muitos de nós, o transtorno é mais ou menos o mesmo. Num meio onde todo mundo tem um transtorno que não seja tão transtorno, não achamos louco porque todo mundo é louco da mesma loucura. Quando você está em um meio em que todo mundo é louco da mesma loucura, você não considera ninguém muito fora da curva.
Quando aparece alguém com um traço um pouco mais transtornado, você percebe. É possível alguém apresentar sinais mais fáceis de serem notados. Por exemplo, uma pessoa, seja homem ou mulher, em uma situação de crise ou supostamente de um surto em casa ou em algum lugar e começa a quebrar tudo. A pessoa começa a quebrar espelho, a cama, furar o sofá com faca, quebrar tudo o que encontra pela frente. Às vezes até porque bebeu e liberou a censura ou porque realmente surtou, de um ódio tremendo, e que liga para a polícia, para os bombeiros. Essa é uma pessoa que está prestes a se matar.
Há alguma intervenção que pode ser feita para conter esse ímpeto?
Em uma situação assim, é algo muito parecido com alguém que esteja afogando. O salvamento de alguém afogando é ir de encontro à pessoa e nunca chegar perto. Sempre mergulhar e entrar por trás para dar um abraço para que a pessoa não consiga te agarrar. Senão ela leva você junto. Os bombeiros sabem disso. Em uma situação drástica, como a da pessoa que está quebrando a própria casa, a casa representa a pessoa, que está toda estilhaçada. A pessoa projeta para fora aquilo que já está dentro. O próximo passo é pular do prédio ou dar um tiro, por exemplo.
O que fazer? Chame o bombeiro. Não chegue perto da pessoa, porque ela pode lhe ferir. Não há uma conversa imediata capaz de destituí-la do surto. É preciso alguém que consiga contê-la. Se conseguir contê-la antes que a pessoa cometa um ato mais drástico, entrar com medicação psiquiátrica de urgência e internação. É um caso de internação para ser medicado. É uma questão puramente psiquiátrica, que quem pode intervir é um médico psiquiatra.
Depois, espera-se que em pouco tempo, essa pessoa sai do surto e receba a orientação de procurar alguém com quem ela possa falar, alguém que consiga escutar a pessoa naquilo que interessa para poder tentar fazer algo. Mas há também um limite, que depende do desejo da pessoa. Para fazer qualquer tipo de intervenção psíquica, não medicamentosa, é preciso que o outro queira. Essa é outra grande questão. Se o outro não quiser, não há o que fazer.
A cartilha elaborada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e a Conselho Federal de Medicina (CFM) define o suicídio como uma epidemia silenciosa, inclusive com dados de 12 mil suicídios por ano no Brasil e aproximadamente 1 milhão no mundo. Qual é o tamanho do problema de saúde pública que o suicídio representa?
Não considero uma epidemia. Particularmente, não trato o suicídio como algo epidêmico. Porque epidemia é como agora, que temos uma pandemia, que é uma epidemia em escala mundial. É como se houvesse uma esperança, como temos com a pandemia do coronavírus. Quando falamos em epidemia, trazemos embutido na fala uma esperança de que vamos passar por isso. Nós nunca vamos passar pelo fenômeno do suicídio. O ser humano nunca vai ficar livre do suicídio.
Por que nunca? Porque faz parte da nossa constituição psíquica. É duro, mas é assim. É uma saída, é uma possibilidade impossível de erradicar da alma humana. Há certas coisas que fazem parte do humano, é impossível de se erradicar. Por isso disse no início que acredito ser interessante fazer o setembro amarelo. Mas acredito que vá resolver? Claro que não, mas é uma tentativa. Não é possível fazer algo psiquiátrica ou psicologicamente para reduzir a estatística mundial? É. Mas não só. O bem-estar não só de se ter uma ação social e uma ação econômica. Depende da percepção de cada indivíduo.
Tudo é perceptível. O sentimento é perceptível. Você quando ama, percebe assim. Você quando odeia, você percebe assim. A percepção interna é que favorece isso. Não adianta alguém dizer para você “eu te amo” se a sua percepção interna não lhe disser que alguém pode lhe amar, que você é capaz de fazer alguém dizer que lhe ama e ter algo em você perceptivamente, internamente, que lhe diga “pode acontecer, essa pessoa está dizendo que te ama e você é alguém que pode ser amado”. Senão você não vai acreditar.
Prefiro não dizer epidemia. Prefiro dizer que é algo do ser humano, que é algo intrínseco à mente humana. A mente humana permite isso. Haverá sempre, como sempre houve na história da humanidade. Uma tribo primitiva de Goiás, quando foi contactada, cometeu suicídio em massa. Isso é intrínseco. Por isso não considero como epidemia, porque sempre haverá.
Há momentos da humanidade em que podem ocorrer menos ou mais casos, mas sempre haverá. É igual certas coisas que não têm como ser erradicadas, como fazer uma campanha contra o bullying nas escolas. É bonito, é legal, mas corre-se um risco de achar que pode se eliminar o bullying, que ocorre nos garotos em fase de latência até a pré-adolescência – dos 8 aos 14 anos -, que é um momento de socialização do ser humano em que ele se afirma, o que gera o acontecimento do bullying. Purificar isso na criança corre um risco de não saber para onde vai a agressividade. Vamos virar os Estados Unidos, onde as pessoas metralham as outras nas escolas. Por lá, há uma tentativa de puritanismo social e moral extremamente rígido.
Ao invés de culpar os garotos, poderia se usar isso para ver o que pode ser feito. Transformar isso em algo mais interessante. Mas não pensar que vai acabar ou purificar. É muito mais inteligente, ao invés de recalcar ou proibir, usar isso para fazer algo mais interessante com essas crianças e pré-adolescentes. Existem escolas que já fazem isso. Não entram nessa de simplesmente culpar. Mas utilizar a agressividade latente que aparece naturalmente e usá-la em favor de algo mais sublime.
Como a pandemia pode impactar a saúde mental das pessoas? O ser humano depende do convívio com outras pessoas, mas o isolamento, com diferentes graus de cuidado, tornou as relações fisicamente distantes. Que efeitos isso pode causar na pessoa?
Aquela história de que o ser humano pode sair melhor da pandemia não se confirma. Não acredito que a pandemia fará o ser humano ser melhor ou pior. Se puder acreditar em algo, pode ser em ser pior, mas não vai melhorar. O que as pessoas definem como “novo normal”, acredito ser muito enganoso. Não existe novo normal. Desde o neolítico, o ser humano não evoluiu muito em termos de relações sociais de convívio.
O último pequeno passo que o ser humano deu foi talvez com os gregos helênicos. O que o ser humano evolui na suposição de caminhar para uma idade do ouro, que não acredito também, que chama-se evolução, foi em termos de tecnologia de controle das forças da natureza. Mas no convívio social, o homem é primitivo até hoje.
Estamos vendo no mundo inteiro, não só no Brasil, com a ascensão do conservadorismo, que é contrária à onda de progressistas que vinha desde meados do século passado e início do novo milênio. Houve uma onda de progressismo e agora uma contraonda conservadora. A história está aí para contar que sempre foi assim. Mas vejo que a pandemia impõe ao ser humano, de uma forma geral, uma privação da realidade. Tanto que comentam que o tempo tem passado diferente: “Estou tendo a sensação de que a semana está correndo demais”.
Primeiro, há uma sensação de ficar livre logo da pandemia. O tempo passa muito rápido mesmo. Quando as pessoas são obrigadas a uma privação imposta de fora a ficarem presas, há um empobrecimento da realidade. Em um primeiro momento, um empobrecimento da convivência. Que não é muito diferente do empobrecimento do mundo virtual, de uma convivência que já existe hoje no universo digitalizado. As pessoas ficam muito mais em casa, entrando em contato com as outras pelas redes sociais. Não é muito diferente.
A privação imposta dá uma sensação para todos de uma realidade empobrecida. Agora, como cada um vai resolver essa realidade empobrecida é que é a questão. Alguém que já tinha a condição de frequentar a arte, a poiesis, as imaginações, as fantasias, que tinha a liberdade, conseguirá preencher o vazio, a pobreza de realidade, com muito mais eficiência do que alguém que já era pobre com isso. As consequências serão as mais individuais.
É aquela história: cuidado para você não jogar tudo em um saco só e dizer “ficaram assim”. Isso será de cada um. Quando pegarmos uma gama de pessoas que já tinha uma vida capaz de sonhar, de fantasiar, de inventar o próprio prazer, não importam de ficar trancadas. Se submetem porque o mundo já era amplo estando em casa, no trabalho ou viajando. Mas aquelas pessoas que já tinham uma certa pobreza no sentido de não conseguirem sair, fazer hipérboles e figuras de linguagem no geral, que é o que caracteriza a possibilidade poética, terão consequências.
O ser obsessivo ficará mais obsessivo, é a saída que tem para se virar na vida. A tendência é ficar mais obsessivo. A pessoa histérica tende a ficar mais histérica. Mas também pode ocorrer de o obsessivo histericar e de a histérica ficar obsessiva. Vai depender de cada um, como cada um tem lidado com isso, que é para todos, que é um limite imposto de fora. E tem aqueles que, desde o começo, enfrentaram isso de uma forma destemida, aparentemente, mas podem ser suicidas. Alguém que faça um negacionismo tamanho que pode ser causado por um desejo de morrer. Um desejo, claro, inconsciente de morrer.
“Já vi pessoas extremamente risonhas de orelha a orelha estarem profundamente melancólicas, falantes, taquilálicas, que expressavam uma condição que poderia ser classificada como estado maníaco, mas, no entanto, estavam deprimidas”
O sr. acabou por citar o acesso ao virtual por meio dos dispositivos eletrônicos, como smartphones e tablets, que acabaram por criar novas relações entre as famílias, que muitas vezes só conversam dentro de uma mesma casa pelo celular. Que impactos essas mudanças causam na sociedade?
O digital, que proporcionou o mundo chamado virtual, é uma maravilha. Imagine uma pandemia como a da Covid-19 sem a tecnologia que temos hoje! Imagine as consequências psíquicas! Não dá para imaginar, porque não existe mais. Mas o mundo humano é feito de contradições. Aquilo que parece uma ficção interessante, pode trazer retrocessos.
O mundo digital, que proporcionou esta virtualidade, que é uma nova cruzada, da mesma forma das cruzadas de 500 anos atrás, quando o mundo foi ampliado, agora foi encurtado pelo mundo digital. Você conversa com um grupo de pessoas em Singapura ou em Seattle como se estivesse falando em Goiânia. E com imagem. Sabe-se lá as consequências desse mundo digital!
Na pandemia, é um recurso que propiciou as pessoas ficarem afastadas do convívio, porém com uma facilidade muito grande de troca de aconchegos, de afetos, mesmo com muita distância. Diferentemente de uma coisa que já conhecíamos, que é o telefone, nós podemos ver o outro. Isso é maravilhoso! Como recurso tecnológico, ajuda bastante na pandemia.
Mas, antes mesmo da pandemia, o mundo digital é um mundo perigosíssimo, porque afasta o convívio olho no olho, cheiro no cheiro, quente no quente, que sempre foi problemático do ser humano. Agora se esconde atrás de um aparelho que permite que a pessoa vença aquilo que antes era conquista de cada um, que é chegar perto do outro. Tudo aquilo que não é o eu é o outro. O outro é impossível para o eu, assim como outro, que é um eu, é impossível para o outro eu. Cada um está sozinho no mundo.
O convívio social é tão dramático que você precisa, primeiro de tudo, conquistar o outro. No mundo, ninguém é seu inimigo de saída, mas também não é seu amigo. Quando vamos conviver com o outro, com a diferença, com aquilo que não é você, é preciso amansar primeiro. Por isso existe o tratamento cerimonioso, o tratamento respeitoso. Quando você chega em alguém, você não pode chegar de qualquer jeito. É preciso chegar amansando aquela pessoa. É como se fosse amansar um selvagem, que lhe tem como alguém estranho, porque não é ele. Você é estranho para mim, porque você não sou eu.
As chamadas fakes news, que são as informações falsas, distorcidas ou dados e fotos retirados de contexto sempre existiram. Mas no mundo digital, as mentiras ganharam uma velocidade impossível de acompanhar e proporção ainda desconhecida.
A primeira coisa que me vem à lembrança é o escritor Umberto Eco, que disse uma frase que ficou bastante conhecida, de que o mundo digital deu voz aos idiotas. Me permito a acrescentar que não só deu voz aos idiotas, mas deu a possibilidade de vozes falarem aos idiotas. Os alienados se reproduzem em progressão geométrica, enquanto pessoas com acesso à arte e à ciência, Goethe já dizia: onde não há arte nem ciência, que haja religião. Para segurar o homem.
O mundo digital não só deu voz aos idiotas, como dizia Umberto Eco, mas permitiu aos idiotas ouvir frases, conceitos distorcidos, com conexões falsas. Os idiotas pensam emocionalmente. E emocionalmente fazem conexões falsas e acreditam em um mundo que ainda é cristão, que acredita que existe um diabo à semelhança do homem, que acredita em fantasmas como figuras semelhantes ao homem. O pensamento, no geral e em todas as culturas, ainda é misturado entre pensamento animista, o pensamento religioso e pouquíssimo pensamento científico.
Nós ainda temos no mundo, bastante rigoroso, regendo o pensamento do homem, de um modo geral, o pensamento animista e o pensamento religioso. As fake news, que não são novidade, haja visto que a igreja sempre usou fake news para assustar os fiéis com a ira de Deus. As fake news do [Jair] Bolsonaro (sem partido) e do [Donald] Trump são baseadas em uma situação emocional na qual pensamentos que não fazem conexão totalmente idiossincráticos passam a fazer conexão. As fake news não são bobinhas, são fake news muito bem inventadas.
Além das fake news, como o mundo virtual interfere no processo de frustração e desencadeia ou intensifica problemas psiquiátricos? Como espelhar um desejo de realização se torna problema ao invejar aquilo que o outro publica em fotos nas redes sociais, quando a pessoa passa a ver na vida virtual do outro a realidade que gostaria de desfrutar?
O mundo virtual permite contatos. Permite, mesmo que virtualmente, que seja usado como veículo de comunicação entre seres com uma velocidade e com um filtro muito primitivo. Não há um filtro. Você quando entra em um site de relacionamento, mal se conhece a outra pessoa e já começa a conversar e, muitas vezes, até a namorar como se estivesse ao vivo. O mundo virtual proporciona ao o que o humano já é, que é a possibilidade de se relacionar.
As questões humanas estão presentes. Por trás do mundo virtual há uma pessoa de cá e outra de lá. Mas não há o contato de saber quem é você, de onde você vem, para onde você vai, como você se manifesta. Isso propicia toda variedade de comportamentos e frustrações. No caso da pandemia, a tecnologia foi fundamental para aproximar as pessoas que estão obrigadas a ficar distantes. Mas ao mesmo tempo, o virtual é algo que distancia.
Como é lidar com uma pessoa que gera frustrações existenciais ao ver, por exemplo, no Instagram, que é uma rede social baseada na imagem, uma pessoa que segue a viver uma vida de privilégios, cheia de viagens, registros de compras de itens caros, mas a pessoa espelha um suposto fracasso da vida nas fotos e vídeos de outra pessoa naquele ambiente virtual? Isso pode desencadear um processo de frustração?
Claro. Mas quando a pessoa chega a essa situação é porque já tinha algo antes, como um sentimento de inferioridade. Qualquer comparação que você faça com alguém quase sempre você vai sair perdendo. Quando se faz algum tipo de comparação com a vida de alguém, você não vai se comparar com quem não é páreo para você. Quem você não admira ou não considera plausível de olhar, você não vai fazer comparação.
Quando você se compara com alguém, você olha para a vida da outra pessoa e pensa que aquela vida é um barato, alguma coisa já está comprometida em você. Uma pessoa que supõe que a vida do outro é maravilhosa, é preciso questionar por que a pessoa entra nessa para diminuir-se. “Está vendo? Todo mundo vive bem e eu vivo mal.” Não é “todo mundo vive bem e eu vivo mal”. A pessoa não quer saber que para viver bem houve uma construção, trabalho. Ninguém foi abençoado com o dedinho de Deus para conseguir as coisas.
A pessoa não quer sabe dela, a partir dela, de que na vida para se dar bem tem que ser conquistado. Não basta desejar, tem que ir atrás de conquistar o desejo. Quando a pessoa vê o outro, não vê a conquista do outro, só vê o glamour do outro. Mas o outro que tem o glamour que a pessoa admira, ela sonha que para ter aquilo não é preciso ter trabalho, ter construção.
A pessoa vai evitar ver que o outro teve algum trabalho para conseguir o que ela admira. A pessoa não quer saber disso porque não quer saber de ela mesma ter de trabalhar para conquistar o desejo, tende a fazer uma conexão direta e pensar “o outro está com uma vidona e só eu que fico no tudo muito esforçado e não consigo”. Mas não quer ver o esforço do outro porque não quer saber do próprio esforço.