Paulo César Gomes: “Desde a redemocratização, Exército foi um ator político que nunca deixou de ter força”
14 março 2021 às 00h00
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Historiador destaca que, a partir do momento e que as Forças Armadas viram um ator institucional no País, militares começam a assumir protagonismo na república brasileira
Pesquisador da ditadura militar que comandou o País de 1964 a 1985, o historiador Paulo César Gomes foi procurado para analisar a repercussão do livro “General Villas Bôas: conversa com o comandante”, publicado por Celso Castro pela FGV Editora. Assim que foi lançado, um trecho das mais de 13 horas com o ex-comandante do Exército brasileiro ganhou destaque no debate público: os tuítes com sinais de pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) na véspera do julgamento do habeas corpus preventivo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em abril de 2018.
O que ocorreu naquele momento todo brasileiro saber de cor. O plenário do STF não concedeu o habeas corpus pelo placar de 6 a 5 e, no mesmo dia, o então juiz federal Sergio Moro expediu o mandado de prisão preventiva contra o petista por condenações em segunda instância pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro ligados ao julgamento do processo do tríplex no Guarujá (SP). 580 dias depois, Lula foi solto em nova votação sobre a prisão após condenação em segunda instância pelo STF.
Na segunda-feira, 8, o ministro Luiz Edson Fachin decidiu que a 13ª Vara Federal de Curitiba (PR), onde Lula foi condenado nos casos do tríplex e do sítio em Atibaia (SP), não tinha competência para analisar os processos porque os supostos crimes não teriam ligação direta com o objeto da Operação Lava Jato, o desvio de recursos da Petrobras. Com isso, as ações penais contra o ex-presidente precisam começar da estaca zero na Justiça Federal do Distrito Federal, onde os acordos dos supostos pagamentos de propina ao petista teriam sido concretizados.
“Desde então, temos toda a crise institucional que vivemos desde a publicação do relatório [da Comissão Nacional da Verdade] em 2014, que culminou em uma série de questões, como o impeachment da Dilma [Rousseff (PT)] e depois a posse de Jair Bolsonaro (sem partido).” De acordo com o autor dos livros “Liberdade vigiada – As relações entre a ditadura militar brasileira e o governo francês: Do golpe à anistia” (Grupo Editorial Record, 2019) e “Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira – A visão da espionagem” (Grupo Editorial Record, 2014), ao ser revelado que o general Villas Bôas teria manifestado no Twitter a ideia do Alto-Comando das Forças Armadas de pressionar o STF no julgamento de Lula, os militares ultrapassaram o papel institucional e reassumiram a postura de atores na política nacional.
“Quando Villas Bôas fala que o tuíte que foi feito às vésperas do julgamento do STF com acordo do Alto-Comando não foi apenas algo que saiu da cabeça do general […] é bastante grave no sentido de que isto representa uma ameaça ao poder civil”, observa Paulo César Gomes, coordenador e criador do site História da Ditadura.
O jornalista Elio Gaspari questionou na coluna “General Villas deu detalhes de uma cena que nunca aconteceu”, de 13 de fevereiro, uma informação do general Eduardo Villas Bôas dada ao autor do livro “General Villas Bôas: conversa com o comandante” (FGV Editora, 2021), Celso Corrêa Pinto De Castro. Gaspari alega que Ulysses Guimarães nunca foi contra a posse de José Sarney como presidente da República em 1985 após a morte de Tancredo Neves. Nas suas pesquisas, o sr. teve acesso a alguma informação que tenha dado a entender que Ulysses teria se negado a apoiar a posse de Sarney?
Não tenho conhecimento sobre este fato.Li a coluna do Gaspari, que também não cita qualquer fonte. Embora o jornalista seja detentor de uma quantidade enorme de fontes, Gaspari liberou algumas quando um dos cinco livros foi lançado e os outros quatro foram reeditados pela Editora Intrínseca. O jornalista liberou alguns documentos em um site. Foi um projeto grande.
Mas existe esta característica do trabalho do Gaspari – sem desmerecer, porque é um trabalho de peso, importantíssimo para o conhecimento histórico do período da ditadura –, mas, para os historiadores, existe um problemas bastante significativo que é a inacessibilidade das fontes que o Gaspari usa. A não ser este número reduzido que o jornalista liberou no site que fazia a promoção do livro. Não sei dizer se o site ainda está no ar.
Claro que o Gaspari é uma grande autoridade no assunto, mas não cita na coluna qualquer documento. Não temos como utilizar a coluna como uma comprovação. Fica, como a questão está posta, uma disputa de memórias. Não posso dizer que o general Villas Bôas esteja intencionalmente mentindo, mas sabemos que quem lida com a memória como fonte tem noção de que a memória se modifica ao longo do tempo. Muitas vezes a pessoa memoriza algumas questões não exatamente relacionadas como os fatos ocorreram.
A não ser que haja um documento, que eventualmente o próprio Gaspari possa ter, é bastante difícil falar de maneira muito segura de que isto tenha ocorrido. Embora eu nunca tenha visto nada específico sobre o caso específico do Ulysses e a posse de Sarney nos estudos que tenho feito sobre ditadura, tendo a achar que o Gaspari tenha razão na posição de que Ulysses nunca teria agido contra o nome de Sarney como sucessor de Tancredo. Ao mesmo tempo, não existe um documento que nos possibilite fazer afirmações históricas com segurança e nos permita comprovar o que é dito pelo Gaspari.
Assim que o livro, feito a partir de 13 horas de entrevistas com Villas Bôas, foi publicado, começou-se a discutir a condição de saúde do general pela doença degenerativa, a esclerose lateral amiotrófica (ELA), se a enfermidade poderia afetar a memória do ex-comandante do Exército. O autor do livro afirma que Villas Bôas garante que sua memória estaria preservada e que as entrevistas foram concedidas em condições de lucidez. É possível questionar se a memória do general foi afetada pela doença e que Villas Bôas possa ter confundido detalhes da história contada sobre Ulysses Guimarães?
Diria que não. Primeiro, porque as entrevistas foram feitas há mais tempo, entre 2015 e 2019. Celso Castro é um pesquisador extremamente experiente. Não à toa, coordena do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), que é um dos centros de referência sobre história contemporânea. Dificilmente Celso Castro cometeria um erro tão iniciante.
Agora, a questão da memória independe… Ir pelo caminho da doença é um pouco problemático. As idas e vindas da memória acontecem, inclusive, com pessoas saudáveis. Quando estudamos pessoas que usam memória como fonte, vemos que muitas vezes a memória vai sendo reconstruída ao longo do tempo. E muitas vezes os fatos são reinterpretados. Os esquecimentos também fazem parte destas reconstruções de memória. É uma questão teórica com a qual os historiadores costumam lidar.
Celso Castro é um pesquisador extremamente experiente, que certamente não iria publicar um livro com este tipo de descuido. E não é um caminho válido para trilhar. Mesmo porque me parece um caminho bastante preconceituoso com relação a uma questão de saúde. Muito mais me parece um movimento intrínseco às construções e reconstruções de memória do que propriamente relacionado à doença. Mesmo porque quando produzimos um trabalho sério de história pretensamente científico, sempre que usamos a memória como fonte, buscamos ter o cuidado de comparar este tipo de fonte com outros tipos.
É muito difícil usar a fonte de memória como a única fonte. A não ser que seja a única possível. E é sempre preciso fazer o adendo de que foi feito a partir da memória de tal pessoa. Eu, por exemplo, ou qualquer historiador profissional quando faz qualquer tipo de afirmação em uma publicação, é preciso que nos asseguremos por meio de fontes variáveis antes de fazer uma afirmação muito taxativa sobre o que quer que seja no campo da história.
O trecho do livro que mais despertou o debate público foi o que o general Villas Bôas fala sobre o tuíte de abril de 2018, quando o militar pressiona o Supremo Tribunal Federal (STU) às vésperas do julgamento do habeas corpus preventivo apresentado pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Na publicação, Villas Bôas revela que o que foi escrito na rede social teria sido discutido com o Alto-Comando das Forças Armadas. Que tipo de preocupação esta revelação trás? Qual é a identidade possível de interpretar a respeito das Forças Armadas a partir da fala do Villas Bôas?
A questão do Exército ao longo da história brasileira já foi bastante estudada. O Exército, desde o momento em que se tornou um ator institucional importante, depois da Guerra do Paraguai (1864-1870), surge como protagonista da política brasileira a partir da proclamação da República (1889), com os dois primeiros presidentes militares na chamada República da Espada, com Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto.
A partir do momento em que o Exército vira um ator institucional, começa a assumir certo protagonismo na república brasileira. Existe um cientista político norte-americano, Alfred Stepan, que criou um conceito, o padrão moderador. Em diversos momentos de crise da república, o Exército interferiu construindo uma espécie de padrão moderador na república brasileira. O que ocorreu diversas vezes, como a história republicana mostra.
No golpe de 1964, muitas pessoas, que depois iriam se contrapor ao regime que se instalou posteriormente, apoiaram porque realmente acreditaram que seria uma intervenção pontual, como já tinha ocorrido outras vezes. A partir do momento em que a ditadura vai tomando corpo, que as ações repressivas vão crescendo, mesmo antes do AI-5, as pessoas que apoiaram o golpe vão se afastando. Inclusive pessoas de direita, como Carlos Lacerda e Adhemar de Barros, que sofreram perseguições por parte do regime que ajudaram a construir.
Desde o período da redemocratização, embora o Exército tenha perdido o protagonismo que teve durante a ditadura, foi um ator político que nunca deixou de ter força. Tanto que nenhum dos presidentes civis da chamada Nova República realmente conseguiu enfrentar a grande mácula da história brasileira, que é a ditadura militar.
O primeiro governo – precisamos lembrar que não foi uma iniciativa individual, mas resultado de uma condenação na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – a discutir o assunto foi durante a gestão da presidente Dilma Rousseff (PT). Mas não foi uma criação individual da Dilma a Comissão Nacional da Verdade.
Foi a primeira vez na política brasileira na Nova República em que foi feita uma comissão do Estado brasileiro e que, no final dos trabalhos, foi publicado um relatório em que figura importantes do Exército foram nominalmente apontadas como violadoras dos direitos humanos, não apenas no que geralmente chamamos erradamente de “porões da ditadura”, mas nas cadeias de comando. Pessoas que não necessariamente toturaram, mas que tinham conhecimento das violações que foram praticadas.
Esta questão vem sendo estudada, embora ainda em um período inicial, mas já temos alguma produção sobre como a Comissão Nacional da Verdade foi importante para que as Forças Armadas de maneira geral, não só o Exército, tenham se unido em torno de um ideal comum, que é a defesa da própria instituição. As desavenças, que são naturais em qualquer instituição – não existe uma instituição que seja totalmente homogênea –, acabaram por representar uma questão menor frente à oposição que precisou ser construída àquilo que foi interpretado como um ataque às Forças Armadas, que foi a publicação do relatório da Comissão Nacional da Verdade.
Desde então, temos toda a crise institucional que vivemos desde a publicação do relatório em 2014, que culminou em uma série de questões, como o impeachment da Dilma e depois a posse de Jair Bolsonaro. A posse de Bolsonaro foi o momento em que, pela primeira vez na Nova República, os militares começaram a assumir um protagonismo na política brasileira. Embora haja um esforço do Villas Bôas em falar de política, mas ao mesmo tempo dizer que é importante a instituição não se posicionar politicamente, gera certa contradição.
Mas hoje em dia, não só em cargos do primeiro escalão, mas os levantamentos feitos pelo jornalismo de boa qualidade têm apontado a quantidade de militares que têm ocupado cargos púbicos comissionados como nunca ocorreu na chamada Nova República. O que podemos dizer é que há de fato uma atuação política dos militares bastante forte, como nunca houve, não apenas no primeiro escalão, mas em cargos administrativos – é algo que parece irrelevante, mas existe a presença dos militares no governo Bolsonaro em vários níveis.
Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais.
— General Villas Boas (@Gen_VillasBoas) April 3, 2018
Quando Villas Bôas fala que o tuíte que foi feito às vésperas do julgamento do STF com acordo do Alto-Comando, não foi apenas algo que saiu da cabeça do general – não foi um pensamento individual… O que é sempre bastante complicado dizer: o que é individual e o que é representação da instituição vinda de uma figura pública como Villas Bôas. Afirmar isto é bastante grave no sentido de que isto representa uma ameaça ao poder civil.
É o resultado de um processo político de pelo menos 32 anos, desde a promulgação da nova Constituição Federal, no qual o poder civil nunca conseguiu de fato domar as Forças Armadas e coloca-la no papel que deveria ter, que é simplesmente cuidar das questões de segurança do território nacional e não se envolver na política civil. Foi um limite que ficou sempre muito borrado ao longo da Nova República.
Nunca houve um limite muito claro. Tanto que em relação às pesquisas da ditadura, que é a nossa mácula histórica mais recente, as Forças Armadas se negaram a fornecer dados, documentos que até hoje são desconhecidos dos pesquisadores. E não se pôde fazer nada contra esta decisão. A preponderância da voz das Forças Armadas prevaleceu. Mesmo neste período em que a comissão tinha poder, evidentemente não punitivo, mas de investigação. Trabalhei na Comissão da Verdade. Diversos pedidos feitos às Forças Armadas – sobretudo ao Exército, que foi quem teve o protagonismo durante a ditadura – foram negados. Muito pouco pôde ter sido feito com relação a esta questão.
“A posse de Bolsonaro foi o momento em que, pela primeira vez na Nova República, os militares começaram a assumir um protagonismo na política brasileira”
Quando o sr. diz que pode ser interpretado um tom de ameaça das Forças Armadas ao STF no tuíte do Villas Bôas de 2018, me remete à pesquisa do professor João Cezar de Castro Rocha (UERJ) sobre a guerra cultural bolsonarista, que se tornou o livro “Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político” (Caminhos, 2021), no qual o docente entende que os militares fazem uma leitura revanchista da história recente do Brasil. Ao olhar para os militares, principalmente os que fazem parte do governo Bolsonaro, a leitura destas pessoas para a ditadura seria avessa à real história do período?
Sim. Não tenho a menor dúvida. É muito difícil pensar as Forças Armadas, sobretudo as três forças, como uma entidade homogênea. Lógico que há disputas. Durante a Nova República, percebeu-se certa preocupação, principalmente dos militares mais jovens, com sua própria profissionalização na carreira do que propriamente o envolvimento com questões políticas. Mas são pessoas que passam por uma formação comum que tem uma continuidade. Com a redemocratização, não houve exatamente uma ruptura no funcionamento das Forças Armadas.
Concordo com o professor João Cezar de Castro Rocha. Claro que o “Orvil” tem um peso, mas muito mais do ponto de vista contemporâneo. Criou-se um livro, um aglomerado de documentos, em contraposição ao “Brasil: Nunca Mais”. Se pensarmos em uma temporalidade mais ampla, chegaremos a esta mistura ideológica que constitui o Exército, sobretudo no pós-Segunda Guerra Mundial, que é uma mistura de ideologias.
Poderíamos apontar principalmente duas. Uma é a doutrina de segurança nacional herdada dos Estados Unidos. Mas também outra que vem sendo falada, mas ainda não tem o destaque que merecia – a doutrina de segurança nacional acabou por ficar muito mais popular, digamos assim –, que é a doutrina da guerra revolucionária francesa. Este mix de perspectivas ideológicas acabou por fundamentar uma ideologia militar brasileira. E envolve todas as questões de construção do inimigo interno, que vai da perspectiva do ponto de vista mais ideológico até as práticas mesmo de tortura que foram aprendidas com militares, sobretudo norte-americanos e franceses.
Mas hoje em dia já há pessoas que pesquisam a influência inclusive britânica no Exército brasileiro, tanto na ideologia quanto nas práticas repressivas stricto sensu. De fato, o “Orvil” tem uma importância, mas é preciso ir um pouco atrás para entender também a própria intenção de constituir o “Orvil” e o que este livro representou.
Muitas vezes, quando se tenta sintetizar o gênesis do bolsonarismo vista refletido nos apoiadores do governo Bolsonaro e na própria figura do presidente da República e dos filhos Eduardo, Carlos e Flávio, fala-se em uma herança da linha dura da ditadura militar ligada ao pensamento do general Sylvio Frota. De fato, é possível compreender Bolsonaro e os generais que fazem parte do primeiro escalão do Palácio do Planalto como herdeiros do pensamento do general Sylvio Frota, que era contrário à transição para a reabertura?
Em certa medida sim, mas é preciso ter um pouco de cuidado ao fazer este tipo de afirmação. Porque é óbvio que existe uma ligação histórica entre estes tipos de interpretação do mundo que temos chamado de bolsonarismo. Mas o bolsonarismo acabou por ter heranças um pouco mais complexas que têm uma expressão mais tosca, empobrecida, do que foi até mesmo a linha dura. E, ao mesmo tempo, práticas que lembram períodos anteriores à ditatura.
Recentemente foi lançado um livro, também pela FGV, de dois pesquisadores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Odilon Caldeira Neto e Leandro Pereira Gonçalves – “O Fascismo em Camisas Verdes: do integralismo ao neointegralismo” (FGV Editora, 2020) –, que buscam heranças na questão do integralismo e das práticas integralistas, com algumas semelhanças entre as práticas do próprio bolsonarismo.
É inegável que há uma ligação com a linha dura, embora exista toda especificidade do Bolsonaro ser considerado como um mau militar, uma pessoa que chegou a ser expulsa do Exército, história que agora tem sido mais explorada, até pela posição que ocupa hoje. As heranças acabam por ser um pouco mais complexas do que simplesmente do que enxergar como herdeiro da linha dura.
Mesmo porque pesquisas mais recentes de um dos que considero um dos maiores especialistas em estudos militares no Brasil, que é o professor aposentado da Universidade de São Carlos (UFSCar) João Roberto Martins Filho, apontam para a dicotomia que costumamos usar de maneira mais simples da linha dura e da linha moderada era um pouco mais complexa. Havia mais diversidade neste pensamento do que propriamente esta dicotomia.
Embora, de uma maneira que facilite a compreensão, costumamos entender a linha dura como o grupo que, como você mesmo disse, resistia à redemocratização – tem toda a questão dos atentados, como o do Riocentro (1981), com bombas –, e, ao longo de toda a ditadura, pedia por mais repressão. Até determinado momento, conseguiram impor a sua agenda. O que acabou por ser vetado com a chegada do general Ernesto Geisel (1974-1979) ao poder.
Não que Geisel fosse um general democrático, como fontes mais recentes, inclusive a encontrada pelo pesquisador Matias Spektor, demonstrou. Mas Geisel, de fato, conseguiu frear este ímpeto extremamente autoritário da chamada linha dura, inclusive o próprio Sylvio Frota.
O ministro do STF, Luiz Edson Fachin, se manifestou logo após a imprensa divulgar o trecho do livro “General Villas Bôas: conversa com o comandante” sobre a participação do Alto-Comando das Forças Armadas na elaboração do conteúdo do tuíte publicado às vésperas do julgamento do habeas corpus preventivo da defesa de Lula da Silva no STF. O magistrado disse que era inaceitável. E o perfil do Villas Bôas no Twitter ironizou que o ministro só se pronunciou sobre o caso três anos depois. O que motivou uma resposta do ministro Gilmar Mendes a Villas Bôas: “A harmonia institucional e o respeito à separação dos poderes são valores fundamentais da nossa república. Ao deboche daqueles que deveriam dar o exemplo responda-se com firmeza e senso histórico: Ditadura nunca mais!”. Quando vemos as releituras que são feitas, equivocadas ou não, do período da ditadura, que tipo de ferida esta discussão pode trazer para a história recente do Brasil?
Observo que vem sendo discutido ultimamente e percebo a partir das minhas próprias pesquisas não só esta evidente crise institucional que vivemos, não só um desequilíbrio e instabilidade que já existiam, mas que foi bastante radicalizada com a questão da pandemia, o que gerou junto o fortalecimento de uma crise econômica. Vivemos um momento político bastante instável. Mas propriamente a questão da ditadura não é exatamente uma novidade.
Se pensarmos especificamente no Bolsonaro, que foi sempre um defensor de práticas autoritárias ao longo de toda sua atuação como deputado federal por quase 30 anos, é uma ferida que está muito relacionada – é quase um consenso na historiografia e nas ciências sociais – com o nosso processo de transição. Uma transição que tem como palavra-chave a conciliação. Existem, logicamente, desacordos interpretativos entre os especialistas. Mas se há alguma questão que gera certo consenso é a conciliação.
Foi uma transição extremamente conciliada, em grande medida conduzida pelos próprios militares, pelo Alto-Comando, mas que deixou muitas marcas deste período que não foram resolvidas. Marcas, inclusive, institucionais. Quando pensamos em permanências, como a própria Lei de Segurança Nacional, que ainda está vigente e é, como costumamos dizer, um entulho da ditadura. Um entulho autoritário.
De fato, a ditadura para o Brasil não é uma questão resolvida. É uma ferida ainda aberta. E que se a maior parte das pessoas entendia o período pré-Bolsonaro como uma democracia relativamente consolidada, a ditadura é uma ferida que voltou a ser remexida com o novo governo, com o tema de volta à tona com tanta força. Esta ferida foi sendo volvida de forma cada vez mais profunda desde a Comissão Nacional da Verdade. E está extremamente relacionada ao modo da nossa transição pactuada, com a ausência de punição dos violadores de direitos humanos.
Porque existe uma falácia das Forças Armadas, sobretudo quando se referem à Comissão Nacional da Verdade – que é nosso mecanismo de justiça de transição mais recente, embora tenha aviso outros, como a Comissão da Anistia e a Comissão de Mortos e Desaparecidos, mas que tiveram impacto muito menor e muito menos midiatizados à época –, ao dizer que a Comissão da Verdade teria ouvido apenas um dos lados da história.
E por que é uma grande falácia? Porque uma Comissão da Verdade implementada por qualquer Estado, o que podemos pensar no âmbito transnacional, ou seja, todos os países que passaram por ditaduras, regimes autoritários, e que posteriormente tiveram comissões da verdade, como a África do Sul, Colômbia, Chile e Argentina, objetivaram apurar os crimes cometidos por agentes do Estado.
Não faz o menor sentido dizer que uma Comissão da Verdade tem de ouvir os dois lados da história, porque não existem dois lados. Existe um órgão estatal criado para investigar – a comissão brasileira não tinha poder punitivo, mas algumas têm – os crimes cometidos por agentes do Estado brasileiro. E os militares, desta forma, eram agentes do Estado brasileiro agindo em nome do Estado brasileiro. A Comissão da Verdade, no caso brasileiro, não tinha poder punitivo por conta da Lei de Anistia, que ainda permanece. Esta ferida está bastante relacionada com a nossa transição e a ausência de punição dos violadores de direitos humanos.
“Existe uma falácia das Forças Armadas ao dizer que a Comissão da Verdade teria ouvido apenas um dos lados da história”
Desde o dia 16 de fevereiro, muito se falou sobre a Lei de Segurança Nacional, que foi utilizada pelo ministro Alexandre de Moraes, e confirmada em unanimidade pelo plenário do STF, para prender em flagrante o deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ). Aqui veio a detenção de um parlamentar democraticamente eleito, mas que usa suas prerrogativas de congressista para ameaçar os poderes, inclusive os ministros do Supremo. A legislação da ditadura também foi usada pelo ministro da Justiça e da Segurança Pública, André Mendonça, para pedir a prisão do colunista Hélio Schwartsman, da Folha, que disse torcer pela morte de Bolsonaro para conter a pandemia no Brasil (“Por que torço para que Bolsonaro morra”, publicada em 17 de julho de 2020). Quando conseguiremos entender o que está ocorrendo em meio a toda esta confusão?
Difícil esta pergunta. Com relação à questão jurídica, posso contribuir muito pouco, porque realmente não entendo muito destes meandros. Tentei acompanhar o posicionamento de especialistas para tentar entender até que ponto a prisão foi legal ou não. Vimos defesas para os dois lados, tanto dos que dizem que a prisão foi legal e justa como outros que defendem a ilegalidade pela proteção parlamentar que goza um deputado.
Mas e a contradição que está posta, com o uso da Lei de Segurança Nacional de um lado, depois a mesma regra sendo aplicada contra aqueles que evocam a Lei de Segurança Nacional contra opositores ou críticos ao governo?
Existe este problema jurídico brasileiro que, inclusive, envolve a própria Lei de Anistia – embora a Lei de Anistia tenha sido efetivamente reafirmada pelo STF em 2010 naquela arguição de descumprimento de prefeito fundamental (ADPF). Com relação à Lei de Segurança Nacional, existe toda uma questão que é muito mais interpretativa: quais são as leis que foram acolhidas pela Constituição Federal de 1988 e quais não seriam? Imagino que a resposta viria muito mais de um debate jurídico do que propriamente histórico.
Deveria ter havido uma reforma, acompanhada da Constituição de 1988, para verificar quais leis foram objetivamente acolhidas e quais não foram, o que não ocorreu com a Lei de Segurança Nacional. E também pensar no caráter autoritário que está intrínseco na política brasileira, independente da vertente política que está no poder, mais à esquerda ou mais à direita, embora no Brasil tenhamos até dificuldade em falar sobre estas divisões. Agora está mais fácil porque temos uma política de extrema direita. Mas quando trilha pelo centro, temos certa dificuldade. PSDB, que era considerado um partido mais à direita, hoje é condenado pelo bolsonarismo. É uma confusão pensar nesta discussão dentro de caixas.
É importante ressaltar a questão do autoritarismo que permeia a política brasileira independente da vertente política que está predominante no poder, sobretudo no Executivo. Se pensarmos no governo Dilma Rousseff (PT), foi a ex-presidente quem referendou a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), regra que foi utilizada para reprimir movimentos social, que são, pelo menos na origem, a base de sustentação do Partido dos Trabalhadores. Podemos observar que o caráter de autoritarismo e de violência permeia a política brasileira independente da vertente que está no poder.
Como temos pela primeira vez na Nova República um governo de extrema direita no Poder Executivo, esta questão fica muito mais evidente. Porque não se trata de um caso específico, mas de toda uma política baseada em extremo autoritarismo, com vários ataques aos pilares da democracia, como o voto livre e secreto e a imprensa. Os jornalistas talvez sejam o grupo profissional que mais tem sofrido ataques, ao menos abertos, da Presidência da República. Isto fica mais evidente. O que não significa que práticas autoritárias não sejam implementadas em governos mais à esquerda.
Com todos os ingredientes que o sr. citou, vivemos um problema no debate público, principalmente na espera política. A política está em tudo na vida, mas a sociedade tende a entender a política como aqueles que estão eleitos e governam. Como poderemos quebrar a lógica da radicalização da polarização, que tem, cada vez mais, impossibilidade a discussão de ideias? É possível romper a barreira das bolhas virtuais do discurso confortável e fazer com que diferentes pensamentos dialoguem?
Não tenho uma resposta objetiva para este problema. Por estudos mais recentes que tenho feito sobre a história digital e os mecanismos digitais, no qual coordeno um projeto – História da Ditadura, um site voltado para a divulgação do conhecimento histórico –, vejo que é bastante pensar a questão da polarização, que discutimos desde 2013. É um processo que foi recrudescendo ao longo destes últimos anos e agora talvez estejamos vivendo um momento bastante radical.
Não consigo pensar nesta questão sem trazer para o debate o ambiente digital, que é alimentado por nós usuários destes sistemas, porque são mecanismos que nos devolvem respostas. São mecanismos programados para que as nossas – existem vários teóricos da tecnologia que estudam este fenômeno, gosto bastante do bielorrusso Evgeny Morozov – bolhas sejam reforçadas. Reforçar que tendamos a ver, a ter acesso, aquilo que já faz parte das características da nossa bolha.
É difícil desassociar esta discussão da lógica de que estes mecanismos são empresas. E são empresas que obviamente têm como objetivo o lucro. A política acaba por entrar nesta lógica porque os robôs, os algoritmos, são programados para mostrar para nós o que já faz parte das nossas características nas bolhas em que estamos inseridos, não só com o intuito de reforçar a comunidade de pertencimento, mas também com o intuito de vender produtos que sejam voltados especificamente para esta comunidade.
Obviamente, se estou navegando na internet, o que vai aparecer para mim como propaganda é algo que está voltado para mim, porque a sofisticação destes mecanismos é muito grande. E cada vez mais. É bastante difícil pensar em uma forma de combater a polarização sem passar pela questão da tecnologia. Conheço do assunto muito mais por leitura do que por pesquisa, mas é inevitável passar pelo mundo digital para pensar, não sei como – não tenho uma solução –, por algum tipo de regulamentação de como estas empresas atuam na política, que muitas vezes desestabilizam democracias e países, como vimos ocorrer nos Estados Unidos recentemente.
Sempre que se propõe a regulamentação de determinada atividade, a reação imediata de parte da sociedade é de que isto seria uma tentativa de censura. É possível quebrar a barreira da ideia de que regulamentar não significa censurar? Ou regulamentar seria de fato uma forma de censura?
No caso específico do Brasil, existe uma herança da ditadura – muito mais com relação à esquerda, o que talvez nem seja tão válido para hoje – de que tudo que é regulamentação traz à tona a memória da censura. Discutiu-se bastante isto quando houve a tentativa de regulamentar a atividade profissional da imprensa. Ao mesmo tempo, não tem como existir um tipo de liberdade plena sem regras para que haja a garantia mínima da convivência civilizada entre os indivíduos, os cidadãos.
É preciso muita educação, educação política, para que as pessoas entendam que regulamentar não necessariamente significa censurar ou oprimir, mas criar regras para uma boa convivência. Porque é bastante difícil romper esta polarização, principalmente ligada aos mecanismos digitais, das grandes empresas do Vale do Silício, se não pensarmos em formas de criar regras mínimas de convivência. Porque acaba que o público fica refém de alguns grupos privados. Hoje podemos falar claramente de Google, Amazon, Facebook e outros, que acabam por controlar a política de forma transnacional.
Quando o comandante do Exército saiu da institucionalidade da caserna para impedir Lula de ser candidato