Eram quase 2 horas da madrugada da sexta-feira, 30, quando finalmente terminou o debate dos presidenciáveis. No ofício de escrever uma análise sobre o que tinha se passado nos últimos 200 minutos, o que consolava era não estar na pele de William Bonner neste momento.

O número 1 do telejornalismo da Rede Globo teve de usar toda sua experiência como âncora – não duvido que também como monge budista nas horas vagas – para conseguir contornar as crises provocadas por um candidato desconhecido, mas imposto pela lei eleitoral por seu partido ter cadeiras suficientes no Congresso para impor sua presença.

Menos um político do que um personagem, Kelmon Luis da Silva Sousa, de 45 anos, é reconhecido como padre ortodoxo não no Brasil, mas no Peru. Ganhou a condição de candidato a presidente como estepe do presidiário Roberto Jefferson, cacique de seu partido, o PTB. Tem um vice pastor, sobre o qual não compensa atrasar a publicação nesta madrugada para procurar o nome.

Kelmon começou e terminou o debate querendo respeito pelo fato de ser padre. Passou as horas cortando a fala de todos os seus interlocutores e sempre desobedecendo ao que estava no acordo do debate. Chegou ao ponto de Bonner ter de parar o roteiro para passar um sermão no religioso. Estava o evento político transformado na sala de aula do Professor Girafales, em que o menino Chaves não consegue ficar sem interromper a fala do mestre.

Como o padre tomou toda a cena, até o primeiro piloto do time da extrema-direita, Jair Bolsonaro (PL), ficou ofuscado. O presidente começou muito nervoso, pedindo direito de resposta ao direito de resposta que cedia ao agredir nominalmente o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Quando pôde escolher perguntar ao petista, optou pelo candidato do Novo, Luiz Felipe D’ávila, com quem também montou dobradinha no debate. Coube ao padre, em seguida, perguntar a Lula. E aí aconteceu o caos.

Lula, enquanto respondia, foi interrompido por Kelmon. E Lula reagiu, partindo para o bate-boca aberto. Mesmo sob os apelos de William Bonner, os dois continuaram a discutir feio por quase um minuto. Foi o auge da “Escolinha do Professor Girafales” na emissora concorrente.  

Ao mesmo tempo em que interrompia, o padre se fazia de vítima. “Ninguém tem paciência comigo”, parecia dizer. Fazendo tudo errado, ele se achava o desrespeitado, por ser… padre. É duro ter de perder linhas de texto e horas de sono depois de um debate político para escrever o óbvio: Kelmon não estava ali como padre, mas candidato à Presidência.

Soraya Thronicke (UB) se destacou novamente por tentar encaixar frases de efeito, como ao chamar Bolsonaro de “candidato nem-nem, nem trabalha nem estuda”, mas o presidente lhe deu uma invertida ao revelar que ela lhe pediu cargos no governo. A senadora teve três inacreditáveis embates com Kelmon – a quem chamou de “Kelson”, “Kelvis”, “candidato padre” e, por fim, de “padre de festa junina” –, o qual considerou que Soraya o estava mandando para o inferno ao lhe questionar, apenas, se ele não tinha medo da condenação eterna por desdenhar das mortes por Covid-19.

Felipe D’Ávila, se fosse uma redação do Enem, tiraria zero por fugir do tema ‘cotas raciais’

O acaso deu a D’Ávila, do Novo um constrangimento: ter de perguntar sobre cotas raciais ao ex-presidente Lula. E o que fez? Citou o tema, as cotas, mas perguntou sobre corrupção. Se fosse uma redação do Enem, tiraria zero por fugir do tema – mas a fuga, a gente sabe, foi pelo total desapreço dos ultraliberais por políticas afirmativas. No mais, boas dobradinhas com Bolsonaro e Simone Tebet (MDB): com o primeiro, para atacar Lula; com a segunda, para falar de privatizações.

Tebet, aliás, foi novamente uma grande jogadora: fugiu da armadilha do presidente, que a questionou sobre uma suposta acusação de sua vice, Mara Gabrilli (PSDB), a Lula, de ser o mentor intelectual da morte do prefeito de Santo André, Celso Daniel. A senadora se indignou e disse que faltava a Bolsonaro a coragem de perguntar diretamente ao ex-presidente, que afinal estava ali presente. Em outros momentos, a emedebista mostrou muita assertividade, como ao falar de meio ambiente, e saiu ganhando pontos – possivelmente suficientes para superar Ciro Gomes (PDT) na hora da abertura das urnas.

E o próprio Ciro? Sempre com seu discurso ágil e de palavras rebuscadas, atacou Lula e também Bolsonaro – embora este embate tenha terminado com sorrisos do presidente. No fim, novamente parece ter sido entendido pelos especialistas, mas não ter conseguido passar sua mensagem para as pessoas comuns. O pedetista tem uma sina: ganhar debate sem ganhar votos.

Lula e Bolsonaro podem não ter perdido votos, porque seus eleitorados estão bastante consolidados, mas também nada ganharam. Bolsonaro teve a chance de fazer o aguardado confronto com o petista no terceiro bloco, quando preferiu perguntar ao candidato do Novo. Outro ponto é que a explícita parceria com o padre pode ter pegado mal.

Mas a discussão de boteco com Padre Kelmon também não foi boa para Lula. Passou uma imagem de descontrole, o que pode ser compensado pelo contexto insólito e pela própria figura de preposto de Bolsonaro que foi assumida pelo sacerdote.

No fim, vendo ali alguém totalmente despreparado para um debate civilizatório, como Padre Kelmon, não fosse o conhecimento de todos os outros regimes políticos, a tentação seria discordar do ícone da política Winston Churchill, primeiro-ministro britânico durante a Segunda Guerra: a democracia seria mesmo o menos pior de todos, sir?

Seria, sim. É. Continua sendo. Continuará sendo. Apesar do Padre Kelmon e de todos os que atentam contra ela. O que é preciso, no caso, é pontual: atuar sobre o formato. É preciso reconsiderar a existência como tal dos debates. Ou pelo menos, seu formato, se há necessidade de haver questionamento de candidato para candidato em que o que se extrai não são propostas, mas entretenimento de qualidade questionável. Talvez o aprimoramento das sabatinas sejam o futuro. A própria Globo, se no Jornal Nacional tivesse dado oportunidade iguais para todos os nomes – e não apenas os quatro mais bem colocados – teria usado melhor seu tempo de grade do que naquelas mais de três horas intermináveis.

Enfim, o que se viu no horário nobre – bem além dele, na verdade, já em altas horas – foi um capítulo da tragicomédia da democracia brasileira. Não é culpa sua, Bonner. Durma bem.