Ao lado da Bolsa Família, o SUS e o Fundeb fazem parte de um Estado do bem-estar social. Por isso o SUS não pode ser privatizado

Jair Bolsonaro (sem partido), presidente da República, e Paulo Guedes, ministro da Economia: os dois negam ter intenção de privatizar o SUS | Foto: Reprodução

Os Estados Unidos têm 15% de pobres — cerca de 46 milhões de pessoas. A principal dificuldade deles é o acesso a assistência na área de saúde. Mesmo na classe média americana, há milhares de indivíduos com problemas financeiros por terem tomado empréstimos — há casos de pessoas que venderam automóveis e imóveis — para custear o próprio tratamento ou de parentes. Ao contrário do Canadá e do Brasil, o país de Donald Trump e Joe Biden não tem um sistema de saúde que atenda todas as pessoas gratuitamente. O ex-presidente Barack Obama tentou criar um sistema mais social, mas, a rigor, ficou na intenção, talvez por causa das pressões da iniciativa privada.

O Sistema Único de Saúde — SUS — do Brasil é, possivelmente, um dos maiores programas sociais do governo federal. Ainda que não seja visto assim, o SUS “distribui” ou “redistribui” renda, indiretamente, ou talvez até diretamente. Os pobres e parte da classe média — a que não consegue (mais) pagar os planos de saúde — são atendidos, “gratuitamente”, na ampla rede do SUS em todo o País. Ser atendido em postos de saúde e hospitais de qualidade, por médicos categorizados, sem a necessidade de pagar, permite que aqueles menos aquinhoados com recursos financeiros possam investir em outras áreas, como alimentação, pagamento de prestações de um automóvel e/ou de um imóvel.

A palavra “gratuitamente” está entre aspas porque o SUS é bancado pela sociedade que paga impostos. Ao atender todos, e em maior volume os pobres, o SUS é, de alguma maneira, um programa distributivo.

Drauzio Varella: um dos maiores defensores do SUS | Foto: Reprodução

Vários consagrados, como Drauzio Varella e Miguel Srougi (“o SUS é um tremendo sistema de saúde”), estão na linha de frente dos defensores do SUS. O que se comprovou no combate à pandemia do novo coronavírus é que, apesar do sistema não ser perfeito — nada é —, o Sistema Único de Saúde se provou fundamental. Milhares de pessoas foram recuperadas graças à excelência de enfermeiros, fisioterapeutas e médicos do SUS. O sistema revelou alta eficiência e competência para lidar com uma doença nova e difícil de ser vencida. Dá para imaginar o Brasil, na questão da Covid-19, se não tivesse o SUS? Como sugeriu um escritor seria “cada um por si e Deus contra todos”.

Um governo duplo

Há, por assim dizer, dois governos Bolsonaro. Um é representado por Bolsonaro, que, com o apoio de militares e alguns políticos, pode ser caracterizado como “nacionalista”. O segundo é o do ministro da Economia, Paulo Guedes, que deve ser qualificado de liberal ortodoxo.

Paulo Guedes quer privatizar mais do que quer Bolsonaro. Aqui e ali, convence o presidente de que é preciso privatizar, por exemplo, a estatal Correios. Depois, tenta avançar em outras áreas, como a bancária, e aí esbarra no dirigente nacionalista.

Miguel Srougi, médico: “O SUS é um tremendo sistema de saúde” | Foto: Reprodução

O ministro quer “enxugar” o Estado, tornando-o menos dispendioso para a sociedade — o que é uma linha meritória. Mas, como o político é Bolsonaro — o que terá de disputar eleição daqui a um ano e 11 meses, mas a movimentação começa antes, em abril de 2022, daqui a um ano e cinco meses, com as desincompatibilizações —, às vezes há recuos. Mesmo sem dizer, Bolsonaro está sugerindo ao seu ministro: preciso ganhar em 2022, senão o que você pretende fazer irá por água abaixo — o que Paulo Guedes às vezes parece não querer compreender.

Agora mesmo, a equipe de Paulo Guedes bolou um decreto, de nº 10.530, que Bolsonaro assinou, que autorizava estudos para abrir as Unidades Básicas de Saúde (UBS) aos setores privados.

No entanto, sob pressão da sociedade e inclusive de aliados — que talvez tenham percebido a “armadilha” eleitoral —, Bolsonaro recuou: “O pessoal falou que era privatizar, eu revoguei o decreto. Deixa. Quando tiver o entendimento do que a gente, de verdade, quer fazer, talvez eu reedite o decreto. Enquanto isso, vamos ter mais de 4 mil unidades abandonadas, jogadas no lixo sem atender uma pessoa sequer”. A rigor, não é bem assim. O sistema tem deficiências, mas a pessoa acaba, no geral, sendo atendida.

Fernando Pigatto: “Não aceitamos a arbitrariedade.. É uma proposta antiga defendida por Paulo Guedes, que agora entra forte na tentativa de privatizar | Foto: Reprodução

Bolsonaro acrescentou: “Lamentavelmente, o pessoal da esquerda critica, essa imprensa critica, e eu estava virando um monstro. Então, eu revoguei o decreto, sem problema nenhum. Eu tenho um bom atendimento médico, agora o povo tem quer ter também”. O presidente tem razão, em parte. Porém, é melhor ter algum atendimento do que nenhum. Ressalve-se que o governo sustenta que, mesmo com UBSs operadas pela iniciativa privada, as pessoas não teriam de pagar pelo atendimento.

Por uma questão de justiça, é preciso divulgar a posição de Paulo Guedes: “O objetivo do decreto não era privatizar o sistema ou atacar o SUS. Quem é maluco de acabar com o acesso universal no SUS? Seria uma insanidade falar nisso. A luta é para aumentar o acesso”. O ministro postula que, com a mudança, o atendimento ao público poderia ser melhorado.

Médicos e especialistas em saúde estranharam o Ministério da Saúde não ter sido consultado na elaboração do decreto. Mais, há aqueles que suspeitam que a mudança na UBS, inclusive na sua operação, poderia, sim, ser uma porta aberta para — adiante — uma privatização mais ampla do SUS. Seria mais ou menos assim: deu certo nas UBSs, agora vamos partir para privatizar todo o sistema. É o receio e a suspeita dos profissionais e dos especialistas em saúde.

Gulnar Azevedo: “Cerca de 90% do atendimento da atenção primária é feita pelo setor público. O decreto abre as portas do SUS para a entrada do setor privado, para planos de saúde” | Foto: Reprodução

O País tem 44 mil UBSs, que são apontadas pelos médicos como “a porta de entrada do SUS”. Os postos seriam responsáveis pelo atendimento de 80% a 90% dos problemas de saúde da população, funcionando como uma espécie de controle, o que evitaria mais gastos do governo.

O presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Fernando Pigatto, reagiu mal ao decreto: “Não aceitamos a arbitrariedade do presidente da República. É uma proposta antiga defendida por Paulo Guedes, que agora entra forte na tentativa de privatizar. Se isso acontecer com as UBSs, podemos perder o controle sobre outras privatizações”. Fica o registro do contraditório: o ministro admite que seria uma “insanidade” privatizar o SUS.

As UBSs, no dizer da presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Gulnar Azevedo, “são o coração do SUS, são o diferencial na Estratégia Saúde da Família. Ela tem atendimento multiprofissional e acompanha a evolução dos pacientes por toda a atenção primária”.

Gulnar Azevedo corrobora a preocupação de Fernando Pigatto: a mudança nas UBSs, se fosse efetivada, poderia acabar sendo o “primeiro passo para privatizações ainda mais profundas no sistema público de saúde. Cerca de 90% do atendimento da atenção primária é feita pelo setor público. Esse decreto abre as portas do SUS para a entrada do setor privado, para planos de saúde”.

Ana Maria Malik: “Não pode ser só para se livrar (da gestão das unidades de saúde) ou para reduzir custos. Não se trata de gastar menos, porque a gente gasta menos do que deveria na saúde. E tentar gastar melhor” | Foto: Reprodução

Com a mudança proposta, na interpretação de Gulnar Azevedo, “perde-se a integralidade porque uma operadora de saúde não trabalha do mesmo jeito que outra. Não teremos mais a regulação do gestor público”.

Especialistas em saúde pública sugerem que, sabendo que mexeria num vespeiro, Paulo Guedes foi sutil, atacando o coração do SUS, que são as UBSs, mas não, de uma só vez, o corpo do sistema. Porém, passando um boi, para usar uma linguagem bolsonarista, logo poderia passar uma boiada. Especialistas frisam que a assistência gratuita está garantida pela Constituição em vigor. “A Constituição diz que a saúde pública deve ser regulada pelo SUS, diferente dessa proposta”, sublinha Gulnar Azevedo.

Ana Maria Malik, coordenadora do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão da Saúde da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), frisa que, embora não enfatize a questão da privatização do sistema, o decreto é vago e, por isso, gera a interpretação de que o governo estaria criando brechas para, em seguida, mudar todo o sistema — que setores do governo avaliam como muito dispendioso.

A especialista da FGV afirma que a entrada de organizações sociais no comando de hospitais — cita-se o Hospital do Subúrbio, em Salvador (o governador da Bahia é filiado ao PT) — não significou a privatização do sistema. O atendimento permanece dentro dos marcos do SUS e tem funcionado bem na Bahia e em Goiás (já houve problemas, mas o governo atual está conseguindo equacioná-los).

À BBC News Brasil, Ana Maria Malik disse que “não pode ser só para se livrar (da gestão das unidades de saúde) ou para reduzir custos. Não se trata de gastar menos, porque a gente gasta menos do que deveria na saúde. E tentar gastar melhor”.

Reportagem da BBC Brasil destaca que “um estudo de outubro de 2019 do Instituto de Estudos para Polícias de Saúde (Ieps) estima que os gastos com saúde em 2060 precisarão chegar a 12,8% do PIB, contra 9,1% que foram gastos em 2015”.

A impressão que se tem é que, se Bolsonaro permitir, Guedes privatiza tudo ou quase tudo que é estatal. Ele tem razão em alguns setores. Mas, na área de saúde, não funciona bem. O caso dos Estados Unidos, nação mais rica do mundo, é um exemplo, aliás, um mau exemplo.

Fundeb e Bolsa Família

Há quem diga, por ser liberal da linhagem Chicago boy, que não se deve dar o peixe às pessoas, e sim ensiná-las a pescar. De fato, parece ser uma boa ideia. Mas há pessoas que não conseguem “pescar” sozinhas e o Estado tem o dever de cuidar delas. Por isso, a Bolsa Família — ou Renda Cidadã, o nome não importa — é vital. Na verdade, no geral, não corrige injustiças histórias e, sem o acompanhamento de outros programas, como o de qualificação profissional — negligenciado, quase sempre —, acaba por não ser inclusivo de maneira integral. Mas só o fato de permitir uma renda mínima para garantir a alimentação básica das famílias já lhe confere uma imensa importância. No início deste Editorial comentou-se sobre a existência de pobreza nos Estados Unidos. Portanto, a pobreza pode ser reduzida, mas não acaba inteiramente. E, enquanto existir, o Estado tem a obrigação de cuidar das pessoas. É um traço humanista do Estado brasileiro — que a sociedade aplaude.

Outro programa social, dos mais inclusivos, é o Fundeb. O fundo da Educação permite que filhos dos pobres e da classe média — que empobreceu ainda mais com a crise econômica provocada pela pandemia do novo coronavírus — possam estudar nas escolas públicas, que têm melhorado nos últimos anos. O Fundeb garante o pagamento em dia dos salários dos professores — o que tem atraído quadros mais qualificados.

Pode-se dizer que, com o SUS, o Fundeb e a Bolsa Família, o Brasil tem um Estado do bem-estar funcionando — e independentemente se o governo é de esquerda, como o do PT, ou de direita, como o de Bolsonaro. São políticas de Estado com as quais, mesmo que façam críticas pontuais, todos concordam. Representam um avanço imenso. Os brasileiros são positivamente críticos, e às vezes querem perfeição — que não existe nem nos países nórdicos —, mas uma coisa devem reconhecer: o SUS, o Fundeb e o Bolsa Família são acertos dos homens que governaram o Brasil nos últimos 30 anos. Eles finalmente entenderam o que são políticas de Estado e souberam distingui-las das políticas de (um) governo.