Sob a pandemia da Covid-460 mil, o Brasil precisa de presidente e não de um candidato a presidente
30 maio 2021 às 00h00
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Com quase meio milhão de mortos, o país clama por um presidente proativo. Mas Bolsonaro não sai do palanque de 2022. Quartelada não agrada Forças Armadas
O presidente Jair Bolsonaro parece ter mais apetite pela política do que pelo governo. Por vezes, fica-se com a impressão de que sua gestão funciona no piloto automático, entre os “rigores” do ministro da Economia, Paulo Guedes — o mais centrado de seus auxiliares —, e as “bondades” (como o “orçamento secreto”) do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho. Parece que, quando se irrita, o chefe do Executivo governa, imitando Luís XIV: “L’État c’est moi”. Quando está “numa boa”, porém, sugere que desgoverna, e aí todos mandam, inclusive Ricardo “Peroba” Salles, o titular do Ministério dos Madeireiros.
Se há um parlamentarismo às vezes presidencialista, com um gestor caótico, há, por outro lado, um político que, embora pareça desatento e influenciável, é mais astuto do que se pensa. Bolsonaro está “assustado” com a ascensão de Lula da Silva, do PT, que assumiu a liderança nas pesquisas de intenção de voto. Em todas. Até o economista Delfim Netto, mais experimentado do que Paulo Guedes, está dizendo, em entrevistas, que o postulante do PT pode ganhar no primeiro turno.
O grupo que apoia Bolsonaro avalia que o jogo pode ser “virado”, porque os times ainda não estão em campo. Começar “ganhando” antes do início da partida pode ser perigoso. Porque, começada a campanha — com a retomada de denúncias contra Lula da Silva —, o quadro pode mudar, ao menos em parte. Muitos eleitores que haviam abandonado o presidente, dada a barbárie articulada de seu governo em relação à pandemia — afinal, são 460 mil mortos pela Covid-19 —, podem voltar a bancá-lo contra Lula da Silva. Como alternativa ao centro, a tendência é que, fugindo do petismo, sufraguem Bolsonaro.
Para tentar conter o crescimento de Lula da Silva, que pode se cristalizar, Bolsonaro está visitando cidades de vários Estados, em comícios antecipados. O presidente, uma raposa felpuda, está se colocando no palco nacional com dois objetivos. Primeiro, mantém o contencioso com o PT, mostrando que, além de ser candidato à reeleição, é a alternativa à “bandalheira” das gestões do petismo. Segundo, fortalece a ideia de que a alternativa ao PT é ele, e não o centro (que, gandula a política, não consegue se colocar em campo). Então, o presidente opera para Lula não se distanciar, na sua frente, como um Usain Bolt, e para evitar a ascensão do centro.
Um crescimento “excessivo” de Lula da Silva pode desidratar Bolsonaro a tal ponto que, de repente, um postulante de centro, como Eduardo Leite ou João Doria, ou de centro-esquerda, como Ciro Gomes, pode crescer e ameaçar a segunda colocação do presidente.
Assim como Lula da Silva, Bolsonaro é mais inteligente do que parece à primeira vista (o que não é o mesmo que a cultura altamente letrada e sofisticada de um Fernando Henrique Cardoso). Por isso, não se deve subestimá-lo. Por mais que se comporte como caubói de Marlboro — o homão que nem precisa se vacinar —, o presidente sabe que seu destino político depende da vacinação em massa dos brasileiros e da recuperação da economia. No caso, recuperação da economia é muito mais do que o salvamento de empresas e empregos. Os pobres querem comida no prato e a classe média quer retomar o seu poder de consumo. Nos bastidores, o presidente estaria dizendo a Paulo Guedes, o chicago-boy da contenção, ninguém se reelege apenas fazendo cortes. Por isso o investimento no social tende a crescer — assim com o governo vai liberar mais recursos para o setor de infraestrutura, o que gera crescimento e, daí, empregos.
A eleição de outubro de 2022, daqui a um ano e quatro meses, não será decidida agora. Certo, não será. Mas, de algum modo, começa a ser decidida neste momento. Porque um desgaste transformado em pedra pode se tornar insuperável. Cabe a Bolsonaro sugerir se quer disputar pau a pau com Lula da Silva ou se quer se transformar num fantasma político.
Sapateando no túmulo de 460 mil mortos
Ao fazer comícios pelo país, expondo-se, tentando ser simpático àqueles que o apoiam — firmando uma espécie de resistência —, Bolsonaro incorre, porém, a um equívoco. Talvez não esteja conquistando eleitorado “novo”; pelo contrário, ao andar sem máscara, como se estivesse a debochar dos 460 mil mortos, pisoteando simbolicamente em seus túmulos, pode estar criando também antipatia.
Mas o uso da palavra resistência, no parágrafo anterior, não é aleatório. Bolsonaro está convocando o seu eleitorado para sair às ruas e dizer que o apoia, com o objetivo, quiçá, de atrair mais eleitores que, mesmo o apreciando, não anda lá muito satisfeito por causa de sua ineficácia no combate à Covid-460 mil.
O que Bolsonaro está sugerindo — porque não há uma formulação explícita — é o seguinte: estou aqui e, se vocês não me apoiarem, o PT e a corrupção voltarão. Ele está clamando por uma reação de seus eleitores, quem sabe, para que trabalhem por sua permanência.
Há outra ação de Bolsonaro, e menos implícita do que parece. No “comício” do Rio de Janeiro, numa campanha eleitoral explícita e extemporânea, o presidente fez questão de levar um general, o ex-ministro Eduardo Pazuello — que parece um meninão crescido e sem identidade. Trata-se de um general que, ante Bolsonaro, se comporta como cabo.
Mas Eduardo Pazuello só tem importância por ser general da ativa — e militares da ativa, como sabem Bolsonaro e o ex-ministro, não podem participar de atos políticos. O oficial estava lá como um símbolo de que alguém do Exército — um general — está com o presidente.
No comício, havia faixas pedindo intervenção militar. Parece coisa de aloprado, mas, com um general da ativa no palanque, não era e não é. Bolsonaro, mais do que Eduardo Pazuello, sabe disso mais do que todos.
O presidente está assustado com a possibilidade de Lula da Silva e o PT voltarem ao poder. Não só porque deixará o governo. Bolsonaro sabe que, descomprimidas, as instituições tenderão a ser mais duras — sinônimo de corretas e livres — com alguns de seus filhos e aliados. A Procuradoria-Geral da República, por exemplo, não se comportará como uma “defensoria” da família Bolsonaro e seus parceiros. A Polícia Federal — instituição de Estado e não meramente de um governo — poderá investigar livremente as prováveis estripulias dos “meninos” Bolsonaro e ministros como Ricardo “Peroba” Salles.
O susto com Lula da Silva se traduz de duas formas. Primeiro, Bolsonaro pensa na via eleitoral, na possibilidade de, adiante, superar o petista. Por isso está se reapresentando ao país — como seus motocomícios ou motorreatas. Ao mesmo tempo, está tentando fortalecer os laços com o Centrão.
Em 2022, Bolsonaro tende a se apresentar não como um candidato de direita, e sim como de centro-direita. Para tanto, pode-se filiar ao partido Progressistas, presidido pelo senador Ciro Nogueira, um dos participantes-bolsonaristas da CPI da Pandemia
Segundo, ao se apresentar com um oficial a tiracolo — um general que obedece a um ex-capitão, quando deveria obedecer ao comandante do Exército, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira (democrata convicto e homem da maior integridade) —, Bolsonaro sugere, mais do que diz, que há, para evitar a volta de Lula da Silva, a possibilidade de uma quartelada.
Mas há mesmo a possibilidade de uma quartelada — um golpe político? Tudo indica que não.
Se não há, por que Bolsonaro parece sinalizar que há? Os dirigentes da Marinha, da Aeronáutica e do Exército, oficiais modernos que nada têm a ver com a ditadura civil-militar de 1964, não querem saber de golpe, muito menos de golpe liderado por um capitão reformado. Toleram Bolsonaro, até apoiam sua reeleição — porque não têm simpatia pelo PT, que associam à corrupção —, mas não comungam de suas ideias golpistas.
Generais, brigadeiros e almirantes sabem que, depois que a ditadura acaba — um dia ela cai —, o desgaste fica para as instituições, como o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Hoje, as Forças Armadas são respeitadas, e um dos motivos do respeito é seu senso democrático. Por isso, as três forças não vão se sacrificar em defesa de um golpe para beneficiar Bolsonaro e um grupo restrito de aliados.
Mesmo assim, Bolsonaro “usa” as Forças Armadas como dique para tentar evitar o retorno de Lula da Silva e do PT ao poder. Os militares são usados como ameaça. Mas os chefes das três forças não pensam o mesmo que o presidente. O Brasil tem Forças Armadas modernas e democráticas, quer dizer, cumpridoras da Constituição. Tanto que nenhum general, brigadeiro e almirante apareceu em público para dizer que pode participar de um golpe e do fechamento de alguma instituição, como o Supremo Tribunal Federal.
Os oficiais não se empolgam com uma possível volta de Lula da Silva ao poder. É fato. Mas não se empolgam muito mais com o retorno de um regime discricionário. Porque Bolsonaro passará, mas a imagem ruim, se houver apoio a um golpe, ficará para as instituições militares.
Entretanto, ao se aliar ao Centrão, fica evidente que Bolsonaro ainda está optando pela política. Noutras palavras, ainda acredita que poderá derrotar Lula da Silva eleitoralmente. Por isso está se movimentando pelo país, tentando reforçar os laços com os apoiadores, buscando agregá-los. Seu objetivo é aumentar a sua aprovação e, por consequência, reforçar a rejeição de Lula da Silva.
CPI da Pandemia e o massacre de Pazuelo
O ambiente de uma CPI da Pandemia é inquisitorial, portanto massacrante. Por vezes, os depoentes — testemunhas, e não réus (e até réus podem se defender) — são ameaçados de prisão. Há momentos em que estão tentando se explicar, o que é um direito — mesmo quando estão enrolando e tergiversando —, e são interrompidos. A tendência é torcer pelo inquisidor, mas uma sociedade democrática cobra mais respeito às diferenças de posições políticas e ideológicas. Às vezes, não é tão-somente Bolsonaro que é autoritário. Dito isto, é preciso acrescentar que a função da CPI da Morte é mesmo arrancar aquilo que se pode chamar de verdade factual. Há sempre gente mentindo? Sim, por vezes. Mas há nuances na verdade ou verdades.
A CPI da Covid-460 mil certamente concluirá que Bolsonaro, como presidente, foi omisso. De fato, é o grande culpado. Porque, se fosse um gestor mais proativo, mais preocupado com todos os brasileiros, se não se disfarçasse o tempo inteiro de caubói de Marlboro — de machão latino-americano, ainda que não um latin lover —, o presidente já teria contribuído para se ter vacinado ao menos 50% da população. Até sexta-feira, 28, o Brasil não havia vacinado nem 22% de sua população de 210 milhões de habitantes com a primeira dose. Com a primeira e a segunda dose não chegam a 10%.
Então, se há um culpado, todos, desde que não bolsonaristas radicais ou cabeças de alfinete, sabem quem é: Bolsonaro. Seus ministros e outros auxiliares, como a dita Capitã Cloroquina, são personagens menores, coadjuvantes do Mensageiro da Morte.
De que adianta a volta de Eduardo Pazuello à CPI da Covid-460 mil? Vão arrancar a verdade do ex-ministro, se a verdade, para ele, não é mesma verdade de alguns senadores da Comissão Parlamentar de Inquérito? Certamente que não e o ministro certamente insistirá na apresentação de sua versão.
A CPI quer prender Eduardo Pazuello, para mostrar força e sugerir que todos são iguais perante a lei? Pode até ser.
Mas o realismo político, ao qual aderem as pessoas que são realmente maduras, sugere que a CPI não tente pisotear num militar do alto oficialato. Eduardo Pazuello pode não ser muito bem-visto, depois de sua passagem dita “desastrosa” pelo Ministério da Saúde — a rigor, o verdadeiro ministro era Bolsonaro sênior —, por setores das Forças Armadas. Entretanto, como general da ativa, pode ganhar o apoio corporativo ao menos do Exército.
Convém sugerir aos senadores mais inquisitivos, mesmerizados pelos holofotes da mídia — se tornaram estrelas (o senador Omar Aziz é uma figura estelar, e com justiça, dadas sua moderação e sua temperança) —, que fiquem de olho na história. O filósofo britânico John Gray sugere que há recuos históricos quando menos se espera. O passado, quando volta, sempre retorna piorado. Vale recordar e recitar a famosa frase do escritor americano William Faulkner: “O passado nunca está morto. Nem sequer é passado”.
Portanto, “pisotear” Eduardo Pazuello, criando uma “vítima dos políticos”, pode ser excelente para um provável projeto autoritário de Bolsonaro e péssimo para os que acreditam que a democracia é um jardim que precisa ser regado todos os dias para manter seu frescor, sua vida.