Se subestimar Bolsonaro, esquerda e centro vão patrocinar sua reeleição
14 fevereiro 2021 às 00h01

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Se lançar três candidatos a presidente, as esquerdas podem contribuir para a reeleição do outsider. O centro quer mas talvez não consiga romper a polarização
Políticos experimentados sabem que não se deve subestimar nem superestimar adversários. Os subestimados podem organizar uma frente política, para compensar uma relativa debilidade, e se tornarem fortes, surpreendendo o poderoso do momento. Superestimar é um problema, pois corre-se o risco, de alguma maneira, de “parar” a história pela via do conformismo. Adequado, portanto, é que os adversários sejam vistos na sua real dimensão.
Dada sua incultura e os excessos verbais, que sugerem falta de planejamento — mais provável é que seja um tipo de planejamento, ainda que desmedido e tosco —, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro (sem partido), é frequentemente subestimado pelos bem-pensantes.

De fato, na questão da pandemia e da vacinação, no combate ao novo coronavírus, a ação — ou inação — de Bolsonaro impressiona. Tanto pela falta de humanidade quanto pelas informações incorretas que vulgariza. Parece acreditar que o que diz são fatos e que os fatos são falsos. Dada sua linguagem popular, com laivos do machão latino-americano, cria-se uma certa identificação dele com parte da população. É como se ele se apropriasse de certo ressentimento da sociedade contra determinados setores da sociedade — aqueles que, na sugestão do general Eduardo Villas Bôas, defendem o “politicamente correto”. Curiosamente, o ataque à TV Globo — ao Grupo Globo — em nada difere das críticas que, anteriormente, eram feitas à empresa da família Marinho.
Por trás do Bolsonaro boquirroto, que desagrada até aliados, há, digamos, outro Bolsonaro — aquele que, quando precisa, articula com base no mais absoluto realismo. Ao perceber que poderia ter um Congresso hostil, inclusive abrindo uma discussão sobre impeachment — que, mesmo que não ocorresse, contribuiria para paralisar e desgastar o governo —, o presidente saiu do casulo, de uma suposta independência em relação aos políticos, e aliou-se ao Centrão.

A questão nem era conquistar o Congresso, hoje na mão do Centrão, mas evitar que seus opositores usassem a Câmara dos Deputados e o Senado para enfraquecer o governo, deixando-o “sangrar” até outubro de 2022, quando se terá a eleição.
Bolsonaro poderia ter tentado subordinar a realidade aos seus rompantes, ao discurso adequado para as redes sociais, mas não para a realidade. Acabou optando pela realpolitik. Agindo assim, além de se fortalecer, enfraqueceu os adversários, inclusive por dividi-los.
Um pé de apoio do governador de São Paulo, João Agripino da Costa Doria Junior, e do apresentador da TV Globo Luciano Grostein Huck, de 49 anos, para a disputa de 2022 era o partido Democratas. Pois, com o apoio do Centrão — que serve a e se serve de todos os governos —, Bolsonaro conquistou o DEM para a vitoriosa campanha de Arthur Lira para presidente da Câmara dos Deputados e, possivelmente, para sua campanha de reeleição, daqui a um ano e oito meses.

A crise do Democratas tem a ver com a disputa na Câmara, mas também com a disputa de 2022 para presidente e governador dos Estados. A Bahia, onde está baseado o presidente nacional do Democratas, ACM Neto, já foi o reinado de Antônio Carlos Magalhães, o ACM original, e agora é um principado do PT há mais de uma década. Não é fácil vencer o petismo, porque os gestores locais do partido são bem avaliados pela população. São vistos como modernizadores e, ao mesmo tempo, preocupados com a rede de proteção social.
Derrotar os reds da terra de Jorge Amado e Maria Bethânia não será fácil. Portanto, ACM Neto, que pretende ser candidato a governador, vai precisar das forças internas e externas — por exemplo, Bolsonaro. O maior adversário do petismo é o bolsonarismo. Já que não terá o apoio do petismo, que será seu principal adversário local, o ex-prefeito de Salvador espera contar com as forças do bolsonarismo. Seu avô costumava dizer que só é forte na corte quem é forte na província.
Direita bolsonarista e as esquerdas
Há quem aposte que o centro terá espaço na disputa de 2022. Pode até ser. Mas há quem acredite, e possivelmente os líderes do Democratas estejam pensando nisto, que a disputa será, mais uma vez, polarizada entre a direita de Bolsonaro e a esquerda de Fernando Haddad (leia-se Lula da Silva e PT).

Numa polarização radicalizada, a tendência é que os eleitores prestem atenção tão-somente a dois candidatos — os antípodas. Ou seja, Bolsonaro e Fernando Haddad.
Há forças de esquerda tentando quebrar a polarização. O PSB, que pode se fundir com o PC do B, pode lançar um candidato — talvez Luciano Huck. O apresentador da TV Globo poderia agregar parte da esquerda e parte do centro — produzindo um candidato de centro-esquerda. Sua missão seria “retirar” do jogo exatamente o candidato mais forte da esquerda e impor o seu. Avalia-se que Fernando Haddad vai se aproximar de Bolsonaro, dada a força eleitoral da esquerda, mas que tende a não suplantar o postulante da direita — dado o desgaste moral do PT (também tido como responsável por uma grave crise econômica, sob o governo de Dilma Rousseff). Há quem postule que o bolsonarismo está “clamando” por uma disputa contra o lulopetismo. Porque teria um discurso “armado” para atacar e contra-atacar.
Há o indefectível Ciro Gomes, do PDT, que representa o centro e parte da esquerda. É visto no geral como o Bolsonaro da esquerda. Noutras palavras, o espaço que que planeja ocupar, o do “brabão” que sabe resolver tudo, já está ocupado, e exatamente por Bolsonaro. Os dois são parecidos — inclusive na falta de “classe”. O vocabulário difere um tantinho, pois o de Ciro Gomes, que não “alisa” ninguém, é um pouco mais sofisticado — é, quem sabe, a porção Bélgica da Belíndia amoral de Bolsonaro.

Ciro Gomes tem um discurso afiado e convence parte do eleitorado de esquerda, sobretudo aquele que não quer o retorno do PT ao poder. Entretanto, se a esquerda apresentar três candidatos, Ciro Gomes, Fernando Haddad e Luciano Huck (que, mesmo não sendo de esquerda, pode disputar pelo PSB ou pelo Cidadania), contra Bolsonaro — que talvez seja mais forte do que sugerem as pesquisas da circunstância — e um candidato de centro, pode acabar fora do segundo turno. Talvez duas chapas da esquerda sejam até razoáveis, mas não há eleitorado para um trio.
João Doria e a luta pelo centro
João Doria, quando fala com o povo, parece que toma um banho de loja, com suas roupas bem cortadas e, às vezes, muito justas. Quando, indo para as ruas, deveria tomar um banho de povão.
Entretanto, o governador de São Paulo mostrou força na questão da vacinação e ficou com a imagem — não se sabe se cristalizada — de anti-Bolsonaro. Porque o líder do PSDB quer exatamente ocupar o lugar do PT na disputa de 2022 — polarizando contra Bolsonaro. Seria o centro, no lugar esquerda, contra a direita.

São Paulo pôde enfrentar Brasília, ou seja, Bolsonaro, porque o Estado é o terceiro “país” mais rico da América Latina, ficando atrás apenas do Brasil (líder) e México (segundo colocado) e na frente da Argentina, da Venezuela, da Colômbia e do Chile. Se fosse um país, ficaria entre os 30 mais ricos do mundo. Daí a força de João Doria.
Na questão do combate à pandemia do novo coronavírus, João Doria ganhou um papel relevante, ao se postar ao lado da ciência, pondo-se contra o negacionismo primário e irresponsável de Bolsonaro.
O problema de João Doria é que precisa se tornar mais “político”, no sentido de se aproximar do eleitor comum, e, ao mesmo tempo, deve se desespa26 ulistanizar ao menos um pouco. Assim como José Serra e Geraldo Alckmin, que foram derrotados por Lula da Silva e Dilma Rousseff, o tucano é demasiadamente paulista. Bolsonaro, ao contrário, é de todos os lugares, conectando-se, em termos de comunicação, com todo o Brasil.
Uma facção do PSDB quer bancar o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Figueiredo Cavalheiro Leite, de 35 anos, para presidente. É jovem, bonito e um quadro novo, que, com estrutura e discurso renovado, poderia chamar a atenção do país. Na quinta-feira, 11, num encontro com aliados tucanos, o líder gaúcho disse: “O Brasil não se resume a São Paulo”. Acrescentou que “Presidência é destino”. É um recado para João Doria — que, sem ouvir o partido, já se apresenta como “o” candidato, e não como “um” dos postulantes.
O tucanato, que parecia unido em torno de João Doria, demonstra que não está. Daí a fala de Eduardo Leite, que conta com apoio de políticos de outros Estados. O deputado federal Paulo Abi-Ackel, do PSDB de Minas Gerais, posicionou-se: “Eduardo Leite é aquele que mais agrada à bancada federal”.
Ao contrário de João Doria, que está se posicionando como o anti-Bolsonaro, por representar um Estado-quase-país, com um PIB fabuloso, os demais Estados precisam da caixa-forte do governo federal. Quebram sem os recursos e o apoio da União — ainda mais em tempos de pandemia, com a economia se recuperando aos trancos e barrancos. Daí Eduardo Leite afirmar, contra a ação política do governador de São Paulo, que é preciso postergar o debate sucessório.
A vitalidade do Centrão
Há um preconceito conta o Centrão — que, no fundo, representa a média da sociedade brasileira, senão seus deputados e senadores não estariam no Congresso. Por mais fisiológicos que possam ser, os membros do grupo são legalistas e democratas. Bolsonaro, ao se aproximar dele, criando uma relação de dependência mútua — na política ninguém engana ninguém; deixa-se, por vezes, se enganar —, demonstra que fez uma opção pela política, e não pelo golpismo. Então, o que parece um retrocesso, é um avanço.

O Centrão não é adepto de fantasias. Seus integrantes são apóstolos radicais do realismo. Um de seus cérebros, o senador Ciro Nogueira, presidente nacional do Progressistas, disse, numa entrevista, que não está nada preocupado com os números das pesquisas atuais: a aprovação de Bolsonaro é de 31% e a rejeição é de 40%, segundo o instituto Datafolha. “Isso não me preocupa em nada. O presidente que vai ser eleito é o de 2022, ninguém vai votar lembrando como estava a situação em 2021. O presidente agora tem de aprovar as medidas para chegar bem em 2022. Eu, que sou um aliado e vou votar com ele de qualquer forma, não tenho essa preocupação. Quem elege o presidente da República é a economia”, afirma.
Ciro Nogueira frisa que é preciso observar que há “um paradigma do Brasil”: todos os presidentes que disputaram a reeleição ganharam.
Por mais que não se aprecie o que diz Ciro Nogueira, não se pode negar o realismo de suas palavras. O senador sugere que Bolsonaro também vai avançar no campo social, criando mais identidade entre a sociedade — os pobres — e a figura do presidente. Talvez como, noutra perspectiva ideológica, fez Lula da Silva. Por mais que provoque estranhamento, é possível sugerir que o modelo que está sendo desenvolvido pelo presidente não é tão diferente do da esquerda. Até a aproximação com o Centrão faz parte da mesma lógica. As ações políticas são parecidas — o que difere, isto sim, é o ideário ideológico.
De resto, vale sugerir que o futuro “não” existe, “é” uma ficção. O que existem, de fato, são o passado e o presente. Por isso, o futuro, se se pode dizer assim, já “chegou”. Daí as “brigas” dos grupos políticos, inclusive entre aliados. Porque quem não ocupar espaço agora, no presente, não terá espaço… no, digamos assim, futuro.