Nenhuma sociedade pode ficar se depurando o tempo inteiro, mas a conciliação pelo alto, apontada por Raymundo Faoro, tem impedido mudanças sólidas do ponto de vista institucional

Burt Lancaster, como dom Fabrizio de Salina (de costas), Alain Delon, como Tancredi Falconeri, ambos nobres, e Claudia Cardinale, como a burguesa Angelica Sedara: classes sociais intercambiando — uma  para não morrer totalmente, a nobreza, e outra em busca de afirmação e sofisticação, a burguesia
Burt Lancaster, como dom Fabrizio de Salina (de costas), Alain Delon, como Tancredi Falconeri, ambos nobres, e Claudia Cardinale, como a burguesa Angelica Sedara: classes sociais intercambiando — uma para não morrer totalmente, a nobreza, e outra em busca de afirmação e sofisticação, a burguesia | Foto: Divulgação

Não é possível virar o mundo de ponta-cabeça e começar tudo de novo — do zero. O novo é filho do velho e incorpora parte de sua “pele”. Por vezes, o novo fica velho assim que nasce e, não raro, morre antes que possamos celebrá-lo como algo cristalizado. No romance “O Gattopardo”, do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, há um momento epifânico: o jovem Tancredi Falconeri diz ao tio, o príncipe Fabrizio de Salina: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”. O livro trata da decadência da nobreza e da ascensão da burguesia italianas. A nobreza, representada por dom Fabrizio, é bela, sofisticada, bon vivant. Mas sua hegemonia chegou ao fim, com os nobres vivos, mas sem dinheiro para dar continuidade à boa figura de seus personagens. Resta intercambiar as classes sociais — casando o nobre Tancredi com Angelica Sedara, a filha de um burguês, cuja família é desajeitada, grosseira, mas tem dinheiro. O objetivo, afinal, é mudar para não mudar. A nobreza perde o poder financeiro, mas, de alguma maneira, sobrevive nos novos ricos, nos emergentes. A burguesia quando se refina sugere que se tornou uma espécie de nobreza do dinheiro (sem deixar de ser,, frequentemente, arrivista — daí a ostentação e a falta de naturalidade no uso e exposição de bens recém-adquiridos). Recomenda-se aos interessados que leiam a notável tradução de Marina Colasanti e veja o esplêndido “O Leopardo”, filme de Luchino Visconti, com interpretação magnífica de Alain Delon, Burt Lancaster e Claudia Cardinale.

Há períodos da história em que a sociedade avança muito rápido, o que gera desconforto e desamparo na maioria dos indivíduos — e provoca crises de vários matizes (sanitárias, espirituais). Há momentos em que a sociedade parece “parada”, embora esteja em movimento. As sociedades democráticas, sobretudo as mais sólidas, avançam lentamente. Porque, quanto mais democrática, mais uma sociedade é tolerante, inclusive com a dificuldade de as pessoas mudarem e se adaptarem a novas regras. O Brasil vive um momento turbulento, mas felizmente a democracia não está ameaçada. Não há possibilidade de golpes — à direita ou à esquerda. As forças políticas, quando democráticas, se contêm.

Os brasileiros querem mudar o Brasil de maneira estrutural — corrigindo todas as mazelas, sintetizadas na palavra corrupção, de uma vez. Não estão errados. O país precisa mesmo mudar. Precisa ser mais institucional e constitucional. Todos devem respeitar as instituições — assim como as instituições, por meio de seus integrantes, precisam se fazer respeitadas. Todos precisam respeitar as leis. Se são ruins devem ser mudadas, mas, enquanto não são modificadas, é vital acatá-las. As leis, boas ou más, não devem servir só para os vizinhos, e sim para todos nós. Mas nenhuma nação, se democrática, muda tudo de uma vez só e por intermédio de uma canetada. Os que esperam mudanças radicais, que se tornem permanentes, são os que mais se decepcionam e, depois, se tornam céticos e, até, cínicos. Deses­pe­ran­ça­dos, enfim. A Revolução Francesa de 1789 caiu rápido porque os jacobinos acreditavam que era possível “zerar” uma sociedade, a dos no­bres, constituindo uma nova sociedade, a dos burgueses. Deu tudo errado e, como Saturno fez com os próprios filhos, os jacobinos começaram a se canibalizar. A gui­lhotina que cortou o pescoço dos nobres acabou cortando a cabeça dos burgueses da Revolução.

Os donos do poder

Uma pausa para falar de Raymundo Faoro e seu livraço “Os Donos do Poder” — uma verdadeira bíblia sobre o poder e as elites patropis. Nos últimos anos, o diretor de redação da revista “CartaCapital”, o notável lulopetista (não é filiado ao PT) Mino Carta, parece ter se tornado “dono” das ideias do jurista e sociólogo. Intelectuais ricos como o citado podem ser apropriados, de várias maneiras, para justificar determinadas ideias. Com sua formação rigorosa e com sua decência inflexível, Raymundo Faoro, se vivo, certamente estaria escandalizado com a Corruptobrás criada pelo PT e pelos partidos aliados, como o PMDB, o PR e o PP, entre outras legendas amébicas.

Raymundo Faoro notou que as elites brasileiras não caem e sobrevivem por meio de arranjos, de conciliações pelo alto. Nos momentos de crise, quando se espera o parto, para o nascimento de uma sociedade “nova”, o que nasce é um híbrido — metade novo, metade velho. Veja-se a consolidação da Abertura em 1985. O PMDB e o PT representavam o novo. Mas Tancredo Neves, o “novo” (o burguês, a namorada do príncipe Tancredi), percebeu que sua sustentação, mesmo no Colégio Eleitoral, precisava de parte do “velho”, o grupo que bancava José Sarney (Tancredi, o de “O Gattopardo”) — um político cevado pela ditadura e que acabou se tornando uma espécie de “general civil” —, para se contrapor ao “velho estabelecido”, o regime civil-militar. Em pouco tempo, com a morte de Tancredo Neves, o “velho”, com José Sarney, foi alçado ao poder, quer dizer, manteve-se no poder. Tudo mudou para (quase) nada mudar. As elites são sobreviventes e, como tais, se protegem. A sua força advém de instituições fragilizadas. Mas agora as instituições estão funcionando — não importa se 70% ou 100% —, embora com marchas e contramarchas. Veja-se: Lula não tem foro privilegiado e, por isso, não deve ser “avaliado”, num primeiro momento, pelo Supremo Tribunal Federal, e sim por um magistrado de primeira instância, como Sergio Moro, de Curitiba. Porém, a avaliação é de que, se a lei não foi respeitada de maneira integral, o STF pode interferir, como o fez o ministro Teori Zavascki — um magistrado decente e legalista —, contendo “excessos” do competente e eficiente Sergio Moro.

A Operação Lava Jato, um “combinado” de instituições — Polícia Federal, Ministério Público Federal e Justiça Federal —, acuou parte das elites políticas e empresariais, corruptas e corruptoras (ambas, na verdade, visceralmente corruptas). Porém, quando uma operação de limpeza chega muito “alto” ou se horizontaliza — “colhendo” quem estiver na frente —, há reações de amplo espectro, com táticas variadas, cuja estratégia é garantir a sobrevivência das elites (não só do dinheiro, frise-se). Costuma-se, ante uma crise que afeta as elites como um todo, jogar uma parte das elites aos leões — no caso o PT e aliados mais enlameados — e tentar salvar a outra parte, igual ou menos contaminadas.

Quando o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, mostrou-se assustado com os peemedebistas que romperam com o governo, numa conversa privada (mas gravada, como quase sempre ocorre nos tempos modernos), e sugeriu que não são uma alternativa de credibilidade ao petismo no poder, muitos ficaram escandalizados (mesmo sabendo que nenhum cidadão é neutro, nem mesmo magistrados). Mas, de uma forma ou de outra, está ecoando Raymundo Faoro — ainda que com mais suspanto (mas estupidade), diria Mário de Andrade, do que com reflexão, racionalidade. Uma velha elite corrompida, envolvida até a medula com a elite corrompida que está no poder, está “tentando” convencer a sociedade de que pode substituir a outra (os empresários, numa crise desmedida, estão aceitando qualquer coisa — menos o PT, que não tem salvação). Mas, se parte dos que estão apoiando o impeachment da presidente Dilma Rousseff, com o objetivo de queimar um partido, o PT — como se fosse o único responsável pela corrupção sistêmica e endêmica —, cristalizar-se no poder, numa coalizão do PMDB com o PSDB e as rémoras de sempre, o que dirá a sociedade, os indivíduos que estão indo às ruas com frequência acreditando que é possível eliminar toda a gangrena do corpo, e não apenas os locais mais purulentos? É provável que, se o PMDB e o PSDB conciliarem pelo alto, tentando excluir a sociedade civil — que pressiona nas ruas — e ignorando a vitalidade da Imprensa e das instituições, poderão ter uma surpresa. A sociedade pode convulsionar-se perigosamente. Porque, no caso da queda de Dilma Rousseff e ascensão de Michel Temer a presidente da República, duas ruas poderão se concentrar, numa união disparatada, para pressionar o governo do peemedebista. As ruas dos manifestantes que pressionam contra todos e quaisquer corruptos — do PT, do PMDB, do PP, do PR e do PSDB — e as ruas dirigidas pelo petismo. As duas ruas, aliadas às instituições, manterão o governo sob foco e, daí, Michel Temer possivelmente não conseguirá governar. É um engano avaliá-lo, por ser um jurista experimentado, como uma espécie de segundo Itamar Franco. Os dois homens e as quadras políticas são diferentes, até muito diferentes. Em 1992, havia um consenso de que a parte podre era a de Fernando Collor e, por isso, não foi difícil extirpá-la. PMDB e PSDB, ao menos na época, tiveram o apoio da sociedade para estabelecer um novo pacto político que, em seguida, levou à criação do Plano Real, que estabilizou a moeda e controlou a inflação. A sociedade sentiu que, se não era o paraíso, era o adequado a se fazer — tanto que elegeu e reelegeu Fernando Henrique Cardoso, em 1994 e 1998, para presidente da República. FHC era o pai ou padrasto do Plano Real.

Michel Temer, vice-presidente, e Dilma Rousseff, presidente da República: aliados, ganharam duas eleições seguidas, mas agora, na possibilidade de a segunda sofrer impeachment, o primeiro quer cair fora e salvar a própria pele, escapando do abraço dos afogados | Foto: Lula Marques/Agência PT
Michel Temer, vice-presidente, e Dilma Rousseff, presidente da República: aliados, ganharam duas eleições seguidas, mas agora, na possibilidade de a segunda sofrer impeachment, o primeiro quer cair fora e salvar a própria pele, escapando do abraço dos afogados | Foto: Lula Marques/Agência PT

Agora, como se disse acima, o quadro é outro. A contaminação é mais geral e “queimar” apenas o PT, tentando salvar os próceres do PMDB — como Michel Temer, Eduardo Cunha, Renan Calheiros, Jader Barbalho e Romero Jucá, para citar apenas cinco nomes —, é brincar com a sociedade e com as instituições. Se embarcar nesta arca de Noé dos sujos e dos mal lavados, o PSDB tende a se afundar junto. A sociedade civil e as instituições por certo não vão tolerar tal pacto. O impeachment da presidente Dilma Rousseff é uma necessidade para que o país volte a crescer e para que as investigações sejam concluídas e os responsáveis pela corrupção — sem proteção de nenhum político e empresário — sejam penalizados. Mas articular o impedimento da presidente para substitui-la por políticos que estão envolvidos nos esquemas venais dos governos petistas é um contrassenso — até em termos legais. Pensava-se que a saída do PMDB do governo Dilma Rousseff — uma saída que não é integral, dado o eterno fisiologismo do partido — seria a pá de cal. Parado­xal­men­te, não ocorreu exatamente isto. Fi­cou-se com a sensação de que uma parte “suja”, até mais “suja”, deixou o governo da petista-chefe. A tese do impeachment teria enfraquecido? Tudo indica que não, mas a sociedade cobra que parte daqueles que querem o impeachment, especialmente integrantes do PMDB, também deve ser corresponsabilizada pelas falcatruas. Há “impeachmentistas” tão “su­jos” quanto os petistas e aliados.

Desenha-se um quadro complicado, que, mais uma vez, remete ao romance do siciliano Tomasi di Lampedusa e ao ensaio histórico de Raymundo Faoro. Muitos querem crucificar o PT, jogando a culpa de todas as mazelas da corrupção em suas costas, para livrarem suas próprias imagens, histórias e espaços de poder. “Sujar” exclusivamente o PT, mais do que já está sujo — e não há dúvida de que o partido estruturou uma quadrilha no “interior” do Estado, pondo-o a serviço do poder político, não da sociedade —, é uma maneira mais esperta do que inteligente de “limpar” outras correntes políticas. O objetivo é, diria Raymundo Faoro, controlar a mudança, impedir que se torne de fato uma mudança — que tornaria o país obediente às leis e, portanto, às instituições. A ressalva é que a sociedade civil, robustecida pelo conhecimento de que tem poder, tende a sair às ruas e se manifestar nas redes sociais, pressionando todos, inclusive os integrantes das instituições — como policiais federais, procuradores federais, juízes federais e ministros do Supremo Tribunal Federal. A sociedade e instituições podem travar o pacto que porventura possa ser criado pelo PMDB e pelo PSDB para “queimar” alguns, notadamente petistas, e “salvar” muitos, basicamente peemedebistas e alguns tucanos, como o senador mineiro Aécio Neves.

É certo que nenhuma sociedade pode ficar se depurando o tempo inteiro, porque não há economia que resista a isto — paralisa-se quase tudo e cria-se um psiquismo pró-crise —, mas não se pode depurar a política, liquidando o PT e sugerindo que os outros são “salváveis”. O momento de travar a corrupção sistêmica, estendendo a investigação a peemedebistas que querem escapar e a determinados tucanos, é agora. Senão dentro de pouco tempo, talvez questão de meses, o país estará conflagrado mais uma vez, cobrando o impeachment, por exemplo, de Michel Temer. Por isso talvez o mais saudável para a democracia seja a cassação da chapa Dilma Rousseff/PT-Michel Temer/PMDB pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Pode-se dizer que o possível afastamento da petista e do peemedebista “zera” o processo? Não se “zera” nenhuma sociedade, como dissemos acima, mas abriria espaço para novas oportunidades.

Ofensiva política

A força-tarefa da Operação Lava Jato sugere que parte das forças políticas, sobretudo as mais vinculadas ao PMDB e ao PT, trabalha para conter as ações da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e da Justiça Federal. Não é papo de policial, de procurador e de juiz. Aposta-se, entre os que estão investigando, denunciando e condenando políticos e empresários que construíram uma estrutura de ramificações amplas para assaltar os cofres dos governo federal e de suas empresas, como a Petrobrás — o Petrolão e outras mazelas —, que, no caso de impeachment de Dilma Rousseff, setores do PMDB, com o apoio de setores do PSDB (de olho em 2018) e, supreendentemente, até do PT podem promover alterações legislativas com o objetivo de levar ao enfraquecimento do poder de atuação sobretudo do Ministério Público.

Procuradores de justiça dizem que a retaliação já está em curso — não é coisa para o futuro. Tramita na Câmara um projeto do deputado Wadih Damous, do PT do Rio de Janeiro, que propõe a alteração da delação premiada e penaliza os responsáveis por vazamentos de informações sob sigilo. Noutras palavras, querem fazer o que as elites políticas fizeram na Itália, obstruindo a Operação Mãos Limpas [leia a respeito na página 26]. O presidente da Câ­ma­ra dos deputados, Eduardo Cunha, réu por corrupção e lavagem de dinheiro na Lava Jato, encaminhou o projeto que propõe uma ampla reforma do Código de Processo Penal. Se o Congresso aprovar o pacote de 10 medidas contra a corrupção, articulado pelo Ministério Público Federal com a participação da sociedade, o combate às falcatruas estaria garantido. Será aprovado? Se não é impossível, é muito difícil. Mas fica explícito que a sociedade — como os procuradores — sabe o que quer e, sobretudo, pressiona.

Mas, de fato, um acordão, inclusive com a participação do PSDB, ou ao menos com a participação de alguns de seus quadros, pode reduzir a força — a independência — daqueles que investigam, de maneira legal e ampla, a corrupção sistêmica. Afinal, conciliar pelo alto, preservando determinadas camadas da sociedade, é uma praxe no Brasil. Mas a história pode não se repetir — dependendo, é claro, da energia da sociedade. Se os cidadãos se “esconderem”, se se tornarem mais niilistas do que céticos (ceticismo não é defeito, desde que não leve à paralisia da ação — tornando-se meramente um conforto ao espírito), o país estará entregue àqueles que adotam a tese do romance de Tomasi di Lampedusa: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”. Noutras palavras, muito do que está em jogo depende de você, leitor, que está lendo este longo Editorial. Este breve ensaio não é apenas sobre elites, sobre corruptos e corruptores — é também sobre você, leitor, que, como indivíduo e cidadão, tem mais força do que imagina. Sua ida às ruas e suas movimentações e debates nas redes sociais incomodam muita gente, mexem com o coro dos contentes e acordam todo mundo — inclusive você. O destino do Brasil está nas mãos, em parte, de nós — o povo.