“Queimar” o PT pra “salvar” o PMDB e parte do PSDB não fortalece as instituições e a democracia
02 abril 2016 às 12h16
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Nenhuma sociedade pode ficar se depurando o tempo inteiro, mas a conciliação pelo alto, apontada por Raymundo Faoro, tem impedido mudanças sólidas do ponto de vista institucional
Não é possível virar o mundo de ponta-cabeça e começar tudo de novo — do zero. O novo é filho do velho e incorpora parte de sua “pele”. Por vezes, o novo fica velho assim que nasce e, não raro, morre antes que possamos celebrá-lo como algo cristalizado. No romance “O Gattopardo”, do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa, há um momento epifânico: o jovem Tancredi Falconeri diz ao tio, o príncipe Fabrizio de Salina: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”. O livro trata da decadência da nobreza e da ascensão da burguesia italianas. A nobreza, representada por dom Fabrizio, é bela, sofisticada, bon vivant. Mas sua hegemonia chegou ao fim, com os nobres vivos, mas sem dinheiro para dar continuidade à boa figura de seus personagens. Resta intercambiar as classes sociais — casando o nobre Tancredi com Angelica Sedara, a filha de um burguês, cuja família é desajeitada, grosseira, mas tem dinheiro. O objetivo, afinal, é mudar para não mudar. A nobreza perde o poder financeiro, mas, de alguma maneira, sobrevive nos novos ricos, nos emergentes. A burguesia quando se refina sugere que se tornou uma espécie de nobreza do dinheiro (sem deixar de ser,, frequentemente, arrivista — daí a ostentação e a falta de naturalidade no uso e exposição de bens recém-adquiridos). Recomenda-se aos interessados que leiam a notável tradução de Marina Colasanti e veja o esplêndido “O Leopardo”, filme de Luchino Visconti, com interpretação magnífica de Alain Delon, Burt Lancaster e Claudia Cardinale.
Há períodos da história em que a sociedade avança muito rápido, o que gera desconforto e desamparo na maioria dos indivíduos — e provoca crises de vários matizes (sanitárias, espirituais). Há momentos em que a sociedade parece “parada”, embora esteja em movimento. As sociedades democráticas, sobretudo as mais sólidas, avançam lentamente. Porque, quanto mais democrática, mais uma sociedade é tolerante, inclusive com a dificuldade de as pessoas mudarem e se adaptarem a novas regras. O Brasil vive um momento turbulento, mas felizmente a democracia não está ameaçada. Não há possibilidade de golpes — à direita ou à esquerda. As forças políticas, quando democráticas, se contêm.
Os brasileiros querem mudar o Brasil de maneira estrutural — corrigindo todas as mazelas, sintetizadas na palavra corrupção, de uma vez. Não estão errados. O país precisa mesmo mudar. Precisa ser mais institucional e constitucional. Todos devem respeitar as instituições — assim como as instituições, por meio de seus integrantes, precisam se fazer respeitadas. Todos precisam respeitar as leis. Se são ruins devem ser mudadas, mas, enquanto não são modificadas, é vital acatá-las. As leis, boas ou más, não devem servir só para os vizinhos, e sim para todos nós. Mas nenhuma nação, se democrática, muda tudo de uma vez só e por intermédio de uma canetada. Os que esperam mudanças radicais, que se tornem permanentes, são os que mais se decepcionam e, depois, se tornam céticos e, até, cínicos. Desesperançados, enfim. A Revolução Francesa de 1789 caiu rápido porque os jacobinos acreditavam que era possível “zerar” uma sociedade, a dos nobres, constituindo uma nova sociedade, a dos burgueses. Deu tudo errado e, como Saturno fez com os próprios filhos, os jacobinos começaram a se canibalizar. A guilhotina que cortou o pescoço dos nobres acabou cortando a cabeça dos burgueses da Revolução.
Os donos do poder
Uma pausa para falar de Raymundo Faoro e seu livraço “Os Donos do Poder” — uma verdadeira bíblia sobre o poder e as elites patropis. Nos últimos anos, o diretor de redação da revista “CartaCapital”, o notável lulopetista (não é filiado ao PT) Mino Carta, parece ter se tornado “dono” das ideias do jurista e sociólogo. Intelectuais ricos como o citado podem ser apropriados, de várias maneiras, para justificar determinadas ideias. Com sua formação rigorosa e com sua decência inflexível, Raymundo Faoro, se vivo, certamente estaria escandalizado com a Corruptobrás criada pelo PT e pelos partidos aliados, como o PMDB, o PR e o PP, entre outras legendas amébicas.
Raymundo Faoro notou que as elites brasileiras não caem e sobrevivem por meio de arranjos, de conciliações pelo alto. Nos momentos de crise, quando se espera o parto, para o nascimento de uma sociedade “nova”, o que nasce é um híbrido — metade novo, metade velho. Veja-se a consolidação da Abertura em 1985. O PMDB e o PT representavam o novo. Mas Tancredo Neves, o “novo” (o burguês, a namorada do príncipe Tancredi), percebeu que sua sustentação, mesmo no Colégio Eleitoral, precisava de parte do “velho”, o grupo que bancava José Sarney (Tancredi, o de “O Gattopardo”) — um político cevado pela ditadura e que acabou se tornando uma espécie de “general civil” —, para se contrapor ao “velho estabelecido”, o regime civil-militar. Em pouco tempo, com a morte de Tancredo Neves, o “velho”, com José Sarney, foi alçado ao poder, quer dizer, manteve-se no poder. Tudo mudou para (quase) nada mudar. As elites são sobreviventes e, como tais, se protegem. A sua força advém de instituições fragilizadas. Mas agora as instituições estão funcionando — não importa se 70% ou 100% —, embora com marchas e contramarchas. Veja-se: Lula não tem foro privilegiado e, por isso, não deve ser “avaliado”, num primeiro momento, pelo Supremo Tribunal Federal, e sim por um magistrado de primeira instância, como Sergio Moro, de Curitiba. Porém, a avaliação é de que, se a lei não foi respeitada de maneira integral, o STF pode interferir, como o fez o ministro Teori Zavascki — um magistrado decente e legalista —, contendo “excessos” do competente e eficiente Sergio Moro.
A Operação Lava Jato, um “combinado” de instituições — Polícia Federal, Ministério Público Federal e Justiça Federal —, acuou parte das elites políticas e empresariais, corruptas e corruptoras (ambas, na verdade, visceralmente corruptas). Porém, quando uma operação de limpeza chega muito “alto” ou se horizontaliza — “colhendo” quem estiver na frente —, há reações de amplo espectro, com táticas variadas, cuja estratégia é garantir a sobrevivência das elites (não só do dinheiro, frise-se). Costuma-se, ante uma crise que afeta as elites como um todo, jogar uma parte das elites aos leões — no caso o PT e aliados mais enlameados — e tentar salvar a outra parte, igual ou menos contaminadas.
Quando o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, mostrou-se assustado com os peemedebistas que romperam com o governo, numa conversa privada (mas gravada, como quase sempre ocorre nos tempos modernos), e sugeriu que não são uma alternativa de credibilidade ao petismo no poder, muitos ficaram escandalizados (mesmo sabendo que nenhum cidadão é neutro, nem mesmo magistrados). Mas, de uma forma ou de outra, está ecoando Raymundo Faoro — ainda que com mais suspanto (mas estupidade), diria Mário de Andrade, do que com reflexão, racionalidade. Uma velha elite corrompida, envolvida até a medula com a elite corrompida que está no poder, está “tentando” convencer a sociedade de que pode substituir a outra (os empresários, numa crise desmedida, estão aceitando qualquer coisa — menos o PT, que não tem salvação). Mas, se parte dos que estão apoiando o impeachment da presidente Dilma Rousseff, com o objetivo de queimar um partido, o PT — como se fosse o único responsável pela corrupção sistêmica e endêmica —, cristalizar-se no poder, numa coalizão do PMDB com o PSDB e as rémoras de sempre, o que dirá a sociedade, os indivíduos que estão indo às ruas com frequência acreditando que é possível eliminar toda a gangrena do corpo, e não apenas os locais mais purulentos? É provável que, se o PMDB e o PSDB conciliarem pelo alto, tentando excluir a sociedade civil — que pressiona nas ruas — e ignorando a vitalidade da Imprensa e das instituições, poderão ter uma surpresa. A sociedade pode convulsionar-se perigosamente. Porque, no caso da queda de Dilma Rousseff e ascensão de Michel Temer a presidente da República, duas ruas poderão se concentrar, numa união disparatada, para pressionar o governo do peemedebista. As ruas dos manifestantes que pressionam contra todos e quaisquer corruptos — do PT, do PMDB, do PP, do PR e do PSDB — e as ruas dirigidas pelo petismo. As duas ruas, aliadas às instituições, manterão o governo sob foco e, daí, Michel Temer possivelmente não conseguirá governar. É um engano avaliá-lo, por ser um jurista experimentado, como uma espécie de segundo Itamar Franco. Os dois homens e as quadras políticas são diferentes, até muito diferentes. Em 1992, havia um consenso de que a parte podre era a de Fernando Collor e, por isso, não foi difícil extirpá-la. PMDB e PSDB, ao menos na época, tiveram o apoio da sociedade para estabelecer um novo pacto político que, em seguida, levou à criação do Plano Real, que estabilizou a moeda e controlou a inflação. A sociedade sentiu que, se não era o paraíso, era o adequado a se fazer — tanto que elegeu e reelegeu Fernando Henrique Cardoso, em 1994 e 1998, para presidente da República. FHC era o pai ou padrasto do Plano Real.
Agora, como se disse acima, o quadro é outro. A contaminação é mais geral e “queimar” apenas o PT, tentando salvar os próceres do PMDB — como Michel Temer, Eduardo Cunha, Renan Calheiros, Jader Barbalho e Romero Jucá, para citar apenas cinco nomes —, é brincar com a sociedade e com as instituições. Se embarcar nesta arca de Noé dos sujos e dos mal lavados, o PSDB tende a se afundar junto. A sociedade civil e as instituições por certo não vão tolerar tal pacto. O impeachment da presidente Dilma Rousseff é uma necessidade para que o país volte a crescer e para que as investigações sejam concluídas e os responsáveis pela corrupção — sem proteção de nenhum político e empresário — sejam penalizados. Mas articular o impedimento da presidente para substitui-la por políticos que estão envolvidos nos esquemas venais dos governos petistas é um contrassenso — até em termos legais. Pensava-se que a saída do PMDB do governo Dilma Rousseff — uma saída que não é integral, dado o eterno fisiologismo do partido — seria a pá de cal. Paradoxalmente, não ocorreu exatamente isto. Ficou-se com a sensação de que uma parte “suja”, até mais “suja”, deixou o governo da petista-chefe. A tese do impeachment teria enfraquecido? Tudo indica que não, mas a sociedade cobra que parte daqueles que querem o impeachment, especialmente integrantes do PMDB, também deve ser corresponsabilizada pelas falcatruas. Há “impeachmentistas” tão “sujos” quanto os petistas e aliados.
Desenha-se um quadro complicado, que, mais uma vez, remete ao romance do siciliano Tomasi di Lampedusa e ao ensaio histórico de Raymundo Faoro. Muitos querem crucificar o PT, jogando a culpa de todas as mazelas da corrupção em suas costas, para livrarem suas próprias imagens, histórias e espaços de poder. “Sujar” exclusivamente o PT, mais do que já está sujo — e não há dúvida de que o partido estruturou uma quadrilha no “interior” do Estado, pondo-o a serviço do poder político, não da sociedade —, é uma maneira mais esperta do que inteligente de “limpar” outras correntes políticas. O objetivo é, diria Raymundo Faoro, controlar a mudança, impedir que se torne de fato uma mudança — que tornaria o país obediente às leis e, portanto, às instituições. A ressalva é que a sociedade civil, robustecida pelo conhecimento de que tem poder, tende a sair às ruas e se manifestar nas redes sociais, pressionando todos, inclusive os integrantes das instituições — como policiais federais, procuradores federais, juízes federais e ministros do Supremo Tribunal Federal. A sociedade e instituições podem travar o pacto que porventura possa ser criado pelo PMDB e pelo PSDB para “queimar” alguns, notadamente petistas, e “salvar” muitos, basicamente peemedebistas e alguns tucanos, como o senador mineiro Aécio Neves.
É certo que nenhuma sociedade pode ficar se depurando o tempo inteiro, porque não há economia que resista a isto — paralisa-se quase tudo e cria-se um psiquismo pró-crise —, mas não se pode depurar a política, liquidando o PT e sugerindo que os outros são “salváveis”. O momento de travar a corrupção sistêmica, estendendo a investigação a peemedebistas que querem escapar e a determinados tucanos, é agora. Senão dentro de pouco tempo, talvez questão de meses, o país estará conflagrado mais uma vez, cobrando o impeachment, por exemplo, de Michel Temer. Por isso talvez o mais saudável para a democracia seja a cassação da chapa Dilma Rousseff/PT-Michel Temer/PMDB pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Pode-se dizer que o possível afastamento da petista e do peemedebista “zera” o processo? Não se “zera” nenhuma sociedade, como dissemos acima, mas abriria espaço para novas oportunidades.
Ofensiva política
A força-tarefa da Operação Lava Jato sugere que parte das forças políticas, sobretudo as mais vinculadas ao PMDB e ao PT, trabalha para conter as ações da Polícia Federal, do Ministério Público Federal e da Justiça Federal. Não é papo de policial, de procurador e de juiz. Aposta-se, entre os que estão investigando, denunciando e condenando políticos e empresários que construíram uma estrutura de ramificações amplas para assaltar os cofres dos governo federal e de suas empresas, como a Petrobrás — o Petrolão e outras mazelas —, que, no caso de impeachment de Dilma Rousseff, setores do PMDB, com o apoio de setores do PSDB (de olho em 2018) e, supreendentemente, até do PT podem promover alterações legislativas com o objetivo de levar ao enfraquecimento do poder de atuação sobretudo do Ministério Público.
Procuradores de justiça dizem que a retaliação já está em curso — não é coisa para o futuro. Tramita na Câmara um projeto do deputado Wadih Damous, do PT do Rio de Janeiro, que propõe a alteração da delação premiada e penaliza os responsáveis por vazamentos de informações sob sigilo. Noutras palavras, querem fazer o que as elites políticas fizeram na Itália, obstruindo a Operação Mãos Limpas [leia a respeito na página 26]. O presidente da Câmara dos deputados, Eduardo Cunha, réu por corrupção e lavagem de dinheiro na Lava Jato, encaminhou o projeto que propõe uma ampla reforma do Código de Processo Penal. Se o Congresso aprovar o pacote de 10 medidas contra a corrupção, articulado pelo Ministério Público Federal com a participação da sociedade, o combate às falcatruas estaria garantido. Será aprovado? Se não é impossível, é muito difícil. Mas fica explícito que a sociedade — como os procuradores — sabe o que quer e, sobretudo, pressiona.
Mas, de fato, um acordão, inclusive com a participação do PSDB, ou ao menos com a participação de alguns de seus quadros, pode reduzir a força — a independência — daqueles que investigam, de maneira legal e ampla, a corrupção sistêmica. Afinal, conciliar pelo alto, preservando determinadas camadas da sociedade, é uma praxe no Brasil. Mas a história pode não se repetir — dependendo, é claro, da energia da sociedade. Se os cidadãos se “esconderem”, se se tornarem mais niilistas do que céticos (ceticismo não é defeito, desde que não leve à paralisia da ação — tornando-se meramente um conforto ao espírito), o país estará entregue àqueles que adotam a tese do romance de Tomasi di Lampedusa: “Se queremos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude”. Noutras palavras, muito do que está em jogo depende de você, leitor, que está lendo este longo Editorial. Este breve ensaio não é apenas sobre elites, sobre corruptos e corruptores — é também sobre você, leitor, que, como indivíduo e cidadão, tem mais força do que imagina. Sua ida às ruas e suas movimentações e debates nas redes sociais incomodam muita gente, mexem com o coro dos contentes e acordam todo mundo — inclusive você. O destino do Brasil está nas mãos, em parte, de nós — o povo.