A presidente Dilma Rousseff pode sofrer impeachment?
07 fevereiro 2015 às 14h13
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O jurista Ives Gandra diz que, dada a corrupção sistêmica na Petrobrás, há condições técnicas para se pedir o impedimento da petista-chefe. Três mestres universitários sugerem que a argumentação do professor da Universidade Mackenzie é mais ideológica do que técnica
Há justificativas plausíveis para o impeachment da presidente da República, Dilma Rousseff, do PT? Há divergências entre juristas. Uns, como Ives Gandra da Silva Martins, professor emérito da Universidade Mackenzie, avaliam que sim. Chegou a produzir, sob encomenda, um parecer a respeito. Outros sugerem que não. A petista-chefe é corrupta? Está de fato comprovado que seu governo, o todo, é venal? Até agora, não há indícios de que a presidente está envolvida em algum ilícito. Não há provas também de que seu governo é inteiramente corrupto. Porém, mesmo não estando envolvida, pode ser apontada como “culpada” por ser a gestora? Pode um governo ser corrupto, mas não a presidente? É um paradoxo que nem juristas gabaritados estão dando conta de explicar.
Num artigo publicado na “Folha de S. Paulo”, Ives Gandra garante que, “à luz de um raciocínio exclusivamente jurídico, há fundamentação para o pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff”.
Ao examinar a Constituição Federal — o artigo 85, inciso 5º, o artigo 37, parágrafo 6º, e o parágrafo 4º do artigo 37 —, o artigo 9º, inciso 3º, da Lei do Impeachment, e os artigos 138, 139 e 142 das Lei das SAs, Ives Gandra concluiu que a possibilidade de se pedir o impeachment, com base legal, não é ilegítima.
O parágrafo 5º do artigo 37 da CF menciona a “imprescritibilidade das ações de ressarcimento que o Estado tem contra o agente público que gerou a lesão por culpa — imprudência, negligência, imperícia e omissão — ou dolo”, anota Ives Gandra. A Lei do Impeachment define: “São crimes de responsabilidade contra a probidade de administração: não tornar efetiva a responsabilidade de seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição”. O parágrafo 4º declara: “Constitui ato de improbidade administrativa que atente contra os princípios da administração pública ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições”.
Ao interpretar o que aponta no parágrafo anterior, Ives Gandra firma que “a culpa é hipótese de improbidade administrativa”. No seu parecer, o jurista refere-se “à destruição da Petrobrás, reduzida a sua expressão nenhuma, nos anos de gestão” de “Dilma Rousseff como presidente do Conselho de Administração e como presidente da República, por corrupção ou concussão, durante oito anos, com desfalque de bilhões de reais, por dinheiro ilicitamente desviado e por operações administrativas desastrosas, que levaram ao seu balanço não poder sequer ser auditado”.
Dilma Rousseff sublinhou que, se tivesse informações mais amplas, não teria aprovado a aquisição da refinaria de Pesadena pela Petrobrás. Para Ives Gandra, “restou”, de parte da presidente, “demonstrada omissão, ou imperícia ou imprudência ou negligência”.
O fato de Dilma Rousseff manter a mesma diretoria (só saiu agora), mesmo com informações indicando seus vários e graves erros, demonstra, na análise de Ives Gandra, “que a improbidade por culpa fica caracterizada, continuando de um mandato ao outro”.
Ives Gandra conclui o parecer apontando que há, “independentemente das apurações dos desvios que estão sendo realizadas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público (hipótese de dolo), fundamentação jurídica para o pedido de impeachment (hipótese de culpa)”. O jurista ressalva que “o julgamento do impeachment pelo Congresso é mais político que jurídico”.
Os juristas Lenio Streck, ex-procurador de Justiça, professor e advogado; Marcelo Cattoni, doutor em Direito e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e Martonio Mont’Alverne Barreto Lima, doutor em Direito e professor da Unifor-CE, contestam, em artigo publicado no portal Consultor Jurídico, a tese de Ives Gandra, chegando a notar um componente ideológico na argumentação. Eles não dizem, mas o jurista é de direita.
Os três juristas assinalam que, ao se discutir o impeachment de um presidente da República, “ou se faz um parecer técnico, suspendendo os seus pré-juízos, ou se elabora uma opinião comprometida ideologicamente. Mas daí tem de assumir que não é técnico. O que não dá para fazer é misturar as duas coisas: sob a aparência da tecnicidade, um parecer comprometido”.
Ao sugerir “que há argumentos jurídicos para sustentar uma tese política”, o jurista Ives Gandra está usando, segundo os professores, “a política como elemento predador do Direito.
(…) O Direito não pode ser reduzido, sem as devidas mediações institucionais, a um mero instrumento à disposição da política. Além disso, há um sério problema de teoria da constituição no argumento do parecerista. Ele talvez compreenda mal o papel da Constituição democrática. Pois se de um ponto de vista sistêmico a Constituição é um acoplamento estrutural entre Direito e política, isso pressupõe, por um lado, uma diferenciação funcional entre Direito e política e, por outro, prestações entre ambos os sistemas, de tal forma que o Direito legitime a política e esta garanta efetividade ao Direito. Assim, a Constituição é parâmetro de validade para o Direito e de legitimidade para a política”.
Para os críticos de Ives Gandra, “a Constituição é uma mediação entre Direito e política. Falar em elementos jurídicos que justificam uma decisão política, nos termos do argumento de Gandra, pressupõe o argumento autoritário de um Direito como instrumento da política. Esse é o busílis do equívoco do professor. Assim, ao invés de mediação, o que ocorre é um curto-circuito entre Direito e política no plano constitucional, chame-se isso de colonização do Direito pela política, corrupção do código do Direito pela política, ação predatória da política no Direito, ilegitimidade política ou, simplesmente, defesa de uma tese inconstitucional!”
Os mestres apontam que um leitor da Consultor Jurídico, com formação jurídica, escreveu, na opinião deles com correção: “O professor [Ives Gandra] mistura lei de improbidade com lei de crimes de responsabilidade. Lança mão do vago artigo 9º, 3, da Lei 1079/50 para justificar seu parecer de que se admite crime de responsabilidade culposo, e, pior, chega a afirmar que o artigo 85, V da CF, seria auto-aplicável! Só que o parágrafo único do mesmo artigo é expresso ao prescrever que ‘esses crimes serão definidos em lei especial, que estabelecerá as normas de processo e julgamento’. A parte final do parecer é assustadora. Quando o professor vai ‘aos fatos’, não consegue disfarçar sua parcialidade, concluindo que está caracterizado crime de responsabilidade culposo, e fundamenta no artigo 11 da Lei de Improbidade! Cria um tertium genus [terceiro elemento ou tipo] com o uso indiscriminado da Lei 1.079 com a Lei 8.429, sem sequer mencionar os entendimentos do STF e do STJ sobre o tema”.
Os três professores usam outro comentário, de outro leitor da Consultor Jurídico, para rebater Ives Gandra: “Os crimes de responsabilidade, de nítida natureza penal, não se presumem culposos, como qualquer outro (artigo 18, parágrafo único do CP), não se podendo inferir negligência, imprudência ou imperícia como pressupostos da improbidade prevista no artigo 4 V da Lei 1.079/50, sob pena de grave afronta a toda teoria geral de direito penal elementar. (…) Não dá para querer interpretar o artigo 85 da CF a partir da Lei 8.429/92, que é lei derivada da Constituição, mas apenas o contrário, o que não leva a conclusão alguma a respeito do cometimento do crime. Concluo que há no douto parecer forte carga ideológica que acaba por sacrificar a técnica jurídica”.
Outro comentarista, que se apresenta como Hélder Braulino, citando jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, indica que “somente os tipos do artigo 10 admitem civilmente a forma culposa. O crime culposo exige previsão na lei e não pode ser implícito. A omissão da Lei 1.079/50 vem seguida do advérbio ‘dolosamente’ e a não responsabilização dos subordinados se dá ‘de forma manifesta’ (artigo 9º, incisos 1 e 3). O que se diz por ‘manifesto’ é incompatível com qualquer das modalidades da culpa (imperícia, negligência ou imprudência). A governanta não os pune mesmo quando atuam de forma ‘manifesta’. O que vem a significar ‘forma manifesta’ afasta a figura culposa”. Portanto, a omissão citada na Lei de improbidade “é, mesmo, dolosa”.
José Carlos Moreira Alves disse que “um processo de impeachment não é o espaço onde tudo é possível”. O ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal é citado pelos três críticos de Ives Gandra.
Postas as posições de Ives Gandra e de seus críticos, pergunta-se: por que a presidente Dilma Rousseff moveu morros, serras e montanhas para tentar impedir a vitória de Eduardo Cunha (PMDB) na disputa pela presidência da Câmara dos Deputados? Porque, como sugere Ives Gandra, o impeachment, por ser uma decisão política, começa no Congresso. E, como sabem todos, o vice da petista-chefe é o jurista Michel Temer, filiado ao PMDB. A história de que o PT arrancou 200 milhões da Petrobrás, e com o ex-tesoureiro do partido sendo conduzido coercitivamente pela Polícia Federal para depor, pode levar a desdobramentos graves, como um pedido de impeachment. Por mais que possam existir problemas no parecer do jurista, a possibilidade de impeachment, por enquanto não cogitada pela maioria dos congressistas, pode vir a ser discutida de maneira ampla — dependendo dos próximos fatos. A se aceitar a tese do eterno retorno, a história às vezes se repete. Fernando Collor caiu, o vice, Itamar Franco, assumiu e não houve crise institucional de nenhuma natureza.
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