O equívoco de Demétrio Magnoli e o nascimento de um novo partido de esquerda
01 maio 2015 às 12h31
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O doutor em geografia erra ao avaliar que o PT deixou de ser um partido de esquerda e a fusão do PSB-PPS sinaliza que parte da esquerda já quer ocupar o espaço do petismo
O doutor em geografia Demétrio Magnoli, um dos mais inquiridores intelectuais públicos do país — autor do excelente “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial” (Contexto, 400 páginas), que demole uma série de mitos —, concedeu uma entrevista polêmica ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura. Quase tudo que expôs tem lógica, mas fica-se com a impressão de que mantém a pose da maioria dos intelectuais patropis — que, mesmo quando não são mais de esquerda, sentem-se compelidos a se apresentarem como integrantes da esquerda, senão como militantes, pelo menos como adeptos de seu ideário (a igualdade, por exemplo). O fato é que, embora diga o contrário, Magnoli está cada vez mais próximo da direita moderada, mas afiança que permanece de esquerda — quem sabe na picada aberta pelo historiador britânico Tony Judt, um dos mais contundentes críticos da esquerda, mas que não bandeou para a direita.
Porém, quanto à posição pessoal de Magnoli, nada se tem a dizer. Se se admite que a democracia é o regime adequado, as escolhas individuais devem ser respeitadas — o que não é o mesmo que acatadas. Portanto, se o doutor da USP afirma que é de esquerda, apesar de admitir todos os males cometidos por Stálin e Mao Tsé-tung, não há o que discutir. Trata-se, para resumir, de um esquerdista respeitável, como o falecido Tony Judt. A questão que se quer apresentar é, na verdade, outra.
Magnoli disse, e isto empolgou muita gente, que o PT não é mais de esquerda. O pressuposto deste tipo de argumento é mais ou menos o seguinte: a esquerda não comete erros. Quando um grupo (ou um indivíduo) de esquerda comete erros — ou “equívocos”, como a turma de Stálin preferia —, deixa de ser de esquerda, tornando-se de direita. Assim, segundo esta interpretação enviesada da história — que uma filósofa atenta como Hannah Arendt, atenta às filigranas da política, não endossaria —, quem comete erros é a direita. Esta é o vilã eterna da história contada pelos intelectuais da esquerda.
Por que o PT se tornou um partido de direita? Primeiro, porque aliou-se à direita — políticos da estirpe de José Sarney, Romero Jucá, Eduardo Cunha (este, embora não queiram ver, de uma direita fundamentalista e antiliberal), Michel Temer, Renan Calheiros (filho do PC do B). Segundo, porque, ao assumir o governo, o petismo criou a política dos empresários campeões para incentivar a expansão capitalista nos mercados interno e externo.
O que se dá?, perguntariam Karl Marx e Gramsci (tão apreciado pela esquerda universitária, porque lhe deu um novo vade mecum para a ação política e intelectual). Signos trocados ou em rotação, diria o brilhante pensador e poeta mexicano Octavio Paz. Pelo ponto de vista de Magnoli, depreende-se que a direita subordinou o PT e, com isso, transformou-o numa legenda de direita. Ora, é preciso ver a floresta e as árvores.
O PT, que continua de esquerda — por isso não rompe com Venezuela, Cuba, Equador, Bolívia e sempre planeja regular a mídia —, subordinou, às vezes com habilidade, às vezes aos trancos e barrancos, daí o mensalão e o petrolão, as elites conservadores estaduais. Pode-se falar num pacto faustiano: as elites conservadores, e mesmo as moderadas, ficam com o poder regional, e o PT cuida do mandonismo no plano nacional, com a hegemonia na Presidência da República, que controla a maior parte dos recursos financeiros do país. Pode-se falar, até, que o PT corrompeu ainda mais os defensores do conservantismo com o único objetivo de manter a hegemonia em termos de governo federal.
Ao mesmo tempo em que critica a ligação do PT com a Venezuela de Nicolás Maduro, a Bolívia de Evo Morales e a Cuba de Raúl Castro, Magnoli admite que o PT, no poder, não mostra pendores bolivarianos. Para ser mais preciso, talvez seja possível sugerir que a prática não é bolivariana, mas o ideário às vezes é — num confronto entre teoria e prática, não se constituindo, pois, uma práxis.
Magnoli gostaria que o PT fosse de esquerda? Seu raciocínio ainda é turvo. No poder, o PT, longe de se tornar de direita, deixando de ser de esquerda, tornou-se, isto sim, realista. A realpolitik do PT de fato assusta. Porque, apesar do discurso — que persiste socialista, às vezes socialdemocrata (há mesmo ganhos sociais) — sua gestão é pró-capitalismo. A política dos campeões — meio chinesa — é absolutamente capitalista, mas parte de uma visão de esquerda, com o Estado indutor do crescimento. A tese é mais ou menos a seguinte: induzindo ao crescimento, à expansão das empresas nacionais, a médio ou longo prazo, o Estado vai contribuir para o desenvolvimento do país. Quer dizer, os ganhos do crescimento seriam repartidos com a sociedade. Magnoli queria que, ao contrário, o PT implantasse o socialismo, à fórceps, para configurar-se como de esquerda? O PT pelo menos é realista e entendeu que chegou ao poder, eleito por uma sociedade democrática, para reger a economia de um país capitalista.
A socialdemocracia europeia, apreciada por Magnoli, não faz muito diferente do PT. A diferença é o problema da corrupção. Na Suécia, um político destruiu sua carreira porque levou a namorada para morar com ele num apartamento pago pelo Estado; ela deveria pagar aluguel, mas não pagou. Os filhos dos deputados só moram sem pagar nos apartamentos funcionais até os 12 anos de idade. O ex-primeiro-ministro do país, Fredrik Reinfeldt, era obrigado a lavar suas xícaras, a passar suas roupas e ainda fazia a faxina de sua casa. A história pode ser verificada no livro “Um País Sem Excelências e Mordomias”, da jornalista Cláudia Wallin.
Há corrupção na Suécia? Há, mas, descoberta, a penalização é exemplar.
O PT, para manter o poder, corrompeu quem queria se corromper e — evidenciando que os fins podem corromper os meios, como sugeriu Norberto Bobbio — se corrompeu. Ao mesmo tempo, não trabalha com eficiência para resolver a crise econômica. O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, é um liberal que foi chamado para consertar aquilo que a visão socialdemocrática — a postulada por Magnoli — não está conseguindo resolver. O PT é, no fundo, o PSDB mais popular. Assim como PSDB é o PT aristocrata. Os dois partidos não diferem muito — são de esquerda e, apesar dos rompantes autoritários do PT, são moderados.
Enfim, o PT continua de esquerda. E, como se sabe, a esquerda erra tanto quanto a direita e o centro político. O que não se esperava era a corrupção deslavada do petismo.
Fusão do PSB com o PPS
A fusão do PTB com o DEM é estranha, mas, se ocorrer, mostra como a sociedade brasileira é complexa e surpreendente. A antecessora do DEM, a UDN, passou anos tentando derrubar os presidentes Getúlio Vargas e João Goulart — levando um ao suicídio e depondo o segundo —, ambos do PTB. DEM e PTB, teoricamente, são água e óleo — não se misturam. Porém, fatores conjunturais — o PTB tentando fazer oposição ao governo do PT planeja livrar-se dos aliados que querem continuar governistas e o DEM, para sobreviver, precisa de oxigênio externo — podem levar os dois partidos a se unirem. Ideologicamente, são mesmo muito diversos. O PTB é mais socialdemocrata — a rigor, um parceiro de jornada do PT — e o DEM é liberal.
No caso do PSB com o PPS, a distância, noutros tempos, seria abissal, mas hoje não é. Historicamente, socialistas, de partidos moderados como o PSB — que chegou a ser comandado por Miguel Arraes, um dos primeiros coronéis da esquerda patropi —, e comunistas, de partidos como PCB (moderado em relação ao stalinista PC do B, durante determinado período), pai do PPS, não se uniam, exceto em conflitos acirrados contra a direita, como na Guerra Civil Espanhola, entre 1936 e 1939. Mas hoje o quadro mudou. PSB e PPS não têm muita diferença — não são partidos radicais e, se querem avanços sociais (crescimento econômico mas com desenvolvimento acoplado), não são contrários ao modo de produção capitalista. Só não querem um capitalismo radicalizado — ou, como se dizia há algum tempo, “selvagem”.
Por que PPS e PSB estão se fundindo? Não é, claro, apenas por motivos ideológicos ou porque querem ter mais força política no Congresso Nacional. Os líderes do PPS e do PSB vislumbram que, com a crise do PT, o espaço para um partido de esquerda moderada — supostamente avesso à corrupção, e com possibilidade de chegar à Presidência da República — pode estar se tornando realidade. O espaço ainda não está vazio, pois é preciso que se tenha mais uma eleição — para verificar se o PT se tornou uma ruína ou não —, mas há mesmo uma possibilidade de vácuo de poder. PSB e PPS, unindo-se, querem ocupar o espaço que, se ainda é do PT, porque ainda não saiu do poder, amanhã pode não ser mais. PSB-PPS querem ser o PT amanhã, mas sem o mesmo desgaste. Mas terão pela frente o PSDB de Aécio Neves, Geraldo Alckmin e Marconi Perillo. O futuro está batendo à porta. Quem chegar primeiro — convencendo a sociedade de que é diferente do PT e de seus aliados — possivelmente encontrará a chave para abri-la.