Facebook é um problema que vai muito além da crise gerada pela Cambridge Analytica

25 março 2018 às 00h00

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O “Face” não é do usuário, mas o usuário é do “Face” como consumidor e como produto a ser comercializado com as mais variadas empresas

Está na moda, ante um fato trágico, sugerir que se trata de um atentado contra a democracia (que, desde 1985, permanece sólida, incólume, resistindo aos solavancos e mitos). O impeachment de Dilma Rousseff, petista que havia sido eleita e reeleita presidente da República, é apontado como “golpe”, embora nenhuma instituição tenha sido afetada. Judiciário, Legislativo e Executivo, assim como a Imprensa, continuam funcionando normalmente. O “golpe”, por assim dizer, não é um “trauma” do país, e sim dos petistas. Trata-se de um caso para psicanalistas e, quiçá, psiquiatras. Portanto, um curso sobre algo que não aconteceu — ao contrário do que prega o reitor da Universidade Federal de Goiás, Edward Madureira, um político digno que disputou eleição para deputado federal pelo PT — é gastar dinheiro público inutilmente. Exceto, claro, se o curso for de literatura que discuta o realismo fantástico ou mágico. Na quinta-feira, 22, o Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão que beneficiou o ex-presidente Lula da Silva. Edward Madureira e demais petistas não falaram em “golpe”. É a história de sempre: aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei. Mas e o Facebook e a Cambridge Analytica atentaram ou não contra a democracia?
Antes de tratar especificamente da “relação” do Facebook com a Cambridge Analytica, façamos um comentário sobre o primeiro.
Experimente consultar preços numa loja de sapatos ou numa livraria. Pouco depois, quando acessar o Facebook, você poderá perceber que tais produtos aparecem ao lado, como uma publicidade indireta mas indutiva, como se as empresas, com o apoio da rede social, estivessem lembrando e tentando convencê-lo a comprá-los. É tão comum, portanto naturalizado, que a maioria não percebe que há uma relação — quem sabe promíscua — entre o mercado e o Facebook. Há registros de casos, inclusive em livros, como “O Filtro Invisível — O Que a Internet Está Escondendo de Você” (Zahar, 252 páginas, tradução de Diego Alfaro), de Eli Pariser, de que, colhendo dados de mulheres com mais de 50 anos, o Facebook publica anúncios sobre reposição hormonal. A vida privada, se você está no Facebook, é pública, e não só porque está dialogando abertamente com seus amigos, e sim porque há uma máquina atenta, com informações precisas sobre os usuários — na verdade, clientes e consumidores —, cujo objetivo é vender produtos, com precisão milimétrica.
Mark Zuckerberg, empresário tão inteligente quanto esperto, criou a retórica de que o objetivo do Facebook é criar oportunidade para amigos se encontrarem e baterem papo. O americano tem razão: o Facebook se tornou uma espécie de facilitador do debate público, sobretudo entre amigos ou companheiros de jornada ideológica. Um espaço para tertúlias e confraternização. É uma casa de amigos e, eventualmente, de inimigos (há até quem esteja pedindo ombudsmen para as redes sociais). Mas, acima de tudo, o Facebook se tornou uma loja de departamentos globalizada. Se não fosse assim, Zuckerberg já estaria quebrado e, possivelmente, preso por não pagar suas dívidas. Não há almoço de graça em lugar nenhum, exceto em instituições de caridade, o que o Facebook — valendo bilhões de dólares — não é nem será.
As informações sobre a vida das pessoas — seus gostos e aspirações — não são utilizadas unicamente para fins políticos, ao contrário do que se está discutindo no momento. De maneira direta ou indireta, o Facebook está comercializando os mais íntimos segredos dos que militam — alguns claramente ideologizados, mas às vezes sem perceber que também são usados — nas suas páginas. Não há inocência alguma. O Facebook não é uma instituição benemérita e não tem objetivos acentuadamente filantrópicos. Fala-se comumente “meu Face”. Mas o “Face” não é seu, leitor. Mas você é do “Face”. Você serve ao “Face”, não apenas como consumidor mas também como “produto”. O controle da intimidade pelo mercado — o Grande Irmão está mais presente do que nunca — é uma realidade. Nada de teoria da conspiração. O Facebook é um negócio azeitado, sem nenhuma espécie de romantismo.
A discussão mais ampla é sobre a conexão política, haja vista que informações obtidas no Facebook foram utilizadas nas eleições dos Estados Unidos e noutros lugares, e é o que se vai discutir a seguir. Mas é preciso ressaltar que o Facebook faz com seus usuários, do ponto de vista comercial, basicamente o mesmo que a Cambridge Analytica faz com seus negócios políticos. Teria como sobreviver se não o fizesse? Talvez sim, mas com menos pompa. O Facebook vale bilhões, portanto é cobiçada nas bolsas mais poderosas do mundo, porque é uma fábrica de produzir bilhões. O discurso de Zuckerberg tem face humana, de fato, mas suas ações, na prática, são de uma selvageria dos tempos do capitalismo dito selvagem.
Por que, no básico, o Facebook não vai mudar? Porque não se muda, exceto para ganhar mais, aquilo que está rendendo bilhões de dólares. A mudança do modelo comercial prejudicaria, à larga, os negócios de Zuckerberg. Sua cara de anjo barroco, de rapaz descolado, esconde um capitalista tão voraz quando poderoso. Se você crê em Curupira e fadas, tudo bem: continue acreditando que Zuckerberg e o Facebook vão, daqui pra frente, protegê-lo — logo eles que ganham exatamente com a falta de proteção que “oferecem” aos usuários. Só os governos nacionais — com Judiciário, Legislativo e Executivo agindo de maneira conjunta — podem, ao menos parcialmente, proteger os usuários.
Cambridge Analytica
Descobriu-se recentemente que informações de 50 milhões de usuários do Facebook — pode ter sido muito mais, é claro — vazaram, e não de maneira aleatória. Os dados, obtidos pela Cambridge Analytica, foram utilizados na campanha de Donald Trump. Quer dizer, houve mesmo manipulação nas eleições dos Estados Unidos, inclusive no ataque coordenado, por uma espécie de terrorismo cibernético, contra a democrata Hillary Clinton.
Acossado pela Imprensa e pelo Congresso americano — onde terá de depor — e devido à queda no valor das ações do Facebook, Zuckerberg decidiu aparecer, apresentar explicações e um sistema para tentar conter o uso de dados dos usuários (o que é uma missão difícil, quase impossível, dado o poder invasivo das novas tecnologias).
Zuckerberg disse que já estão em atividade 15 mudanças tecnológicas e de procedimentos para preservar a segurança dos dados dos usuários e admitiu que houve uma quebra de confiança entre os indivíduos e o Facebook. O empresário contrapõe que apenas um número de insignificante de usuários deletou suas contas. Mesmo assim, ele assustou-se: “Se as pessoas excluem o aplicativo ou simplesmente não se sentem bem em usar o Facebook esse é um grande problema que acho que temos a responsabilidade de corrigir”.
Com sua onipotência típica, talvez posando de bom samaritano da aldeia global, Zuckerberg disse à CNN que “fará o que for necessário” para impedir que o Facebook seja utilizado para manipular eleições no Brasil e em outros lugares. “Nós temos um trabalho pesado a fazer para impedir a interferência de países como a Rússia nas eleições.” Frise-se que, em cinco dias — contando a partir do início da revelação do escândalo da Cambridge Analytica —, o Facebook foi desvalorizado em 50 bilhões de dólares. A perda financeira é o principal motivo que levou o empresário a se prontificar a “garantir” mais segurança para os usuários — que, é seminal sublinhar, jamais será integral (ele próprio admitiu que o mercado é sofisticado tecnologicamente e costuma encontrar formas de burlar sistemas de segurança).
Uma empresa brasileira, a Ponte Estratégia, havia feito um convênio com a Cambridge Analytica para as eleições presidenciais deste ano. Ante o escândalo, seu presidente, André Torreta, garante que encerrou o contrato de parceria. Entretanto, mesmo sem a participação direta da Cambridge Analytica, alguém vai mesmo renunciar àquilo que funciona em termos de interferir no processo eleitoral? É provável que não. Como sugeriu Zuckerberg, o mais provável é que os métodos de burla, para influenciar o eleitorado, sejam tão-somente aperfeiçoados.
Os jornais publicam com frequência a preocupação da Justiça Eleitoral com fake news. Mas é provável que a Justiça não tenha técnicos altamente qualificados e, sobretudo, sistemas de detecção avançados para coibir abusos que, de tão sofisticados, não são apresentados e assimilados como notícias falsas e armações para influenciar os eleitores. A manipulação de informações — a Cambridge Analytica usava até psicólogos —, com o objetivo de formatar um tipo de público-eleitor, vai além das fakes news pura e simplesmente.
Posta a questão, deve-se concluir que as redes sociais são ruins? Não. São positivas e, de fato, abrem espaço tanto para a comunicação direta entre as pessoas quanto para que os usuários apresentem suas opiniões e, até, versões dos fatos. l