1

A ficção comunista da sociedade perfeita

A sociedade perfeita nunca existiu e nunca existirá. Nem a dita sociedade comunitária, a dos primeiros tempos, era um paraíso. Não era. Pelo contrário, era violenta e desigual.

Os comunistas acreditaram — sim, acreditaram — que era possível construir a sociedade perfeita. Para tanto, em 1917, derrubaram, não o czarismo, ao contrário do que se diz, e sim o governo democrático de Alexander Kerensky e implantaram a ditadura do proletariado.

A intenção dos comunistas era positiva. Porque queriam uma sociedade de iguais — sem pobres e ricos. Todos seriam, por assim dizer, comunistas. Os bens da sociedade seriam comuns, quer dizer, de todos.

Para edificar o comunismo na União Soviética — depois na Alemanha Oriental, Hungria, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Romênia, China, Camboja, Albânia, Cuba e Vietnã—, seus próceres iniciaram uma matança simplesmente espantosa.

Os produtores rurais, que os comunistas apodaram de kulaks, foram massacrados em toda a União Soviética. O governo de Ióssif Stálin, o sucessor de Vladimir Lênin, denunciava que eram refratários à reforma agrária socialista.

Lênin e Stálin: artífices de um dos sistemas repressivos mais brutais do século 20 | Foto: Reprodução

Os homens de Stálin mataram tantos camponeses — que estavam acostumados a produzir com qualidade, dada uma tradição secular — que a produção agrícola caiu substancialmente e a fome grassou. No lugar de apontar a verdadeira culpada, a socialização improdutiva do campo, os stalinistas acusaram os produtores rurais de boicote e até terrorismo. Então, a massacre continuou.

Os líderes comunistas que discordaram, no geral ou pontualmente, das ações stalinistas também foram julgados — por uma Justiça corrompida pelo poder extremo do PCUS —, condenados e, muitas vezes, executados.

Dizia-se, então, que os fins justificavam os meios. Para construir o socialismo, a sociedade de iguais, se podia fazer qualquer coisa — inclusive prender (como o fabuloso poeta Óssip Mandelstam e o escritor Alexander Soljenitsyn) e matar inocentes (como o notável escritor Isaac Bábel e o político Nikolai Bukhárin). Como disse mais tarde o filósofo italiano Norberto Bobbio, os meios podem acabar corrompendo os fins.

Stálin manteve-se no poder de 1924 a 1953, quando morreu. Governou a União Soviética por 29 anos (será superado por Vladimir Putin, que, por certo, terminará mal). Construiu uma sociedade de iguais? Não.

Stálin criou uma sociedade da desconfiança, no qual um Estado totalitário, senhor da vida das pessoas, liquidou a liberdade individual. Ao mesmo tempo, não construiu uma sociedade rica, como a dos Estados Unidos, para ficar numa comparação.

Milovan Djilas foi um dos primeiros a registrar que, ao não forjar uma sociedade igualitária — na verdade, gerou uma ampla pobreza encravada em filas intermináveis por falta de alimentos e bens de consumo —, o socialismo real, digamos assim, erigiu uma nova “classe” social, a dos burocratas do Partido Comunista da União Soviética, que viviam de maneira nababesca (assim como a família de Fidel Castro, em Cuba). Era a chamada Nomenklatura.

Diz-se que o comunismo durou muito tempo na União Soviética — de 1917 a 1991, ou seja, 74 anos. Para os soviéticos — e não apenas para os russos, como comumente se escreve, erroneamente —, a “tragédia” comunista durou muito, pois parecia uma noite eterna. Porém, para a história global dos povos, 74 anos é praticamente nada. O comunismo soviético foi o Titanic da esquerda.

Portanto, uma queda tão “rápida” provou que o comunismo, como sistema econômico e de vida, era frágil e, sobretudo, não foi aprovado por quem vivia debaixo de seu tacão.

2

China se tornou uma Singapura de esquerda

Mas e a China? A China é uma ditadura cruenta, uma das piores da história. Sob Mao Tsé-tung, o regime comunista assassinou cerca de 70 milhões de indivíduos (podia-se ser preso por ter um piano). Vale a leitura da extraordinária biografia “Mao — A História Desconhecida” (Companhia das Letras, tradução de Pedro Maia Soares, 954 páginas), de Jung Chang e Jon Halliday.

Entretanto, uma vez no poder, Deng Xiaoping percebeu que, se não fizesse mudanças amplas na economia dirigida, o comunismo chinês naufragaria. Então, pôs-se em contato com o “inventor” da Singapura moderna, Lee Kuan Yew (um político interessantíssimo), que estudou na London School of Economics e em Cambridge.

Lee Kuan Yew e Deng Xiaoping: aliança capitalista-comunista | Foto: Reprodução

Deng Xiaoping percebeu que só as “qualidades” de um sistema poderiam salvar o comunismo da China. Sim, trata-se do capitalismo. Então, inventou um sistema híbrido: economicamente capitalista — ou bem próximo do capitalismo, com o Estado anabolizado — e politicamente comunista. Deu certo? Deu, sobretudo do ponto de vista econômico. Tanto que o sistema — o novo sistema — manteve o comunismo no poder. A ditadura persiste e não há oposição. As cadeias permanecem lotadas de cidadãos que rejeitam, parcial ou inteiramente, o regime totalitário. Não têm nem mesmo direito a uma defesa justa.

Em suma, a ideia de uma sociedade-paraíso — quiçá derivada do cristianismo (a igualdade), do iluminismo (a crítica e a luta orgânica) e do positivismo (a ideia de progresso — o fim da história seria o comunismo) — deu, para usar uma linguagem popular, com os burros n’água.

3

Sergio Moro e a ilusão da sociedade sem corruptos

A ideia da utopia da sociedade perfeita — sem corrupção, por exemplo — não é propriedade dos comunistas. Entendendo que as diferenças movem os indivíduos e, portanto, as sociedades, liberais, os verdadeiros, não acreditam em sociedades sem fissuras, sem imperfeições variadas. Realistas, assim como céticos, creem numa sociedade possível, com problemas e soluções medianas. Mas não sugerem que haja solução para tudo. Nem soluções ditas estruturais e definitivas.

Há solução para acabar com a miséria e a corrupção? Liberais não acreditam nisto, por certo. Mas apostam, talvez, numa sociedade mais justa — como as nórdicas — e menos corrupta. Em que creem? Na força e na singularidade dos indivíduos — com um Estado menos intervencionista. Porque Estado não intervencionista não existe, nem mesmo em pátrias ditas liberais.

Deltan Dallagnol e Sergio Moro: faltou maturidade existencial e filosófica à dupla | Foto: Divulgação

Mas e os conservadores? Liberais não são conservadores e estes não são aqueles. Mas, claro, há liberais que se aproximam dos conservadores, sobretudo em termos de alianças políticas contra a esquerda. Assim, como no caso do economista liberal Paulo Guedes, acabam por se subordinar aos conservadores. Como presidente, Jair Bolsonaro, um conservador não liberal, não queria um Estado menos intervencionista, embora, aqui e ali, comprasse o discurso do Posto que, de Ipiranga, acabou por se tornar Tabajara.

Ao pretender dar um golpe de Estado, Bolsonaro comportou-se, não como liberal, e sim como o conservador que é — dos mais reacionários e retardatários. Ele quer a constituição de um Estado forte, quer dizer, de um Poder Executivo acima do Poder Judiciário e do Poder Legislativo.

O que dizer a respeito do senador e ex-magistrado Sergio Fernando Moro e do ex-procurador da República Deltan Dallagnol? Como juiz e procurador, eram isentos?

O juiz deve ser isento e o procurador de justiça não precisa? Todos precisam respeitar as leis. É seminal. Mas, mesmo a lei, com seu rigor e aparente precisão, não é necessariamente “imparcial”. Sobretudo, ao ser aplicada, pode mudar, ante os ditames da realidade, de “conteúdo”, digamos assim.

Mas o que, com a Operação Lava Jato, queriam Sergio Moro e Deltan Dallagnol? Vale um quase parêntese. Quando a operação começou, com o objetivo de investigar e denunciar a corrupção nos governos do PT, Jair Bolsonaro ainda não era cotado para disputar a Presidência da República.

Dias Toffoli: decisões do ministro pode influenciar o pleito em 2026 | Foto: Reprodução

Pode-se sugerir, portanto, que a Lava Jato não tinha a intenção de inventar um candidato a presidente, e muito menos Jair Bolsonaro.

Se a intenção inicial da Lava Jato não era partidária, pois aparentemente não se pensava em “inventar” um grupo político para substituir o PT no poder, qual era a intenção de Sergio Moro, Deltan Dallagnol e de outros magistrados e procuradores?

O mais provável é que Sergio Moro e Deltan Dallagnol — uma pessoa difícil de ser explicada, porque parece meio fundamentalista, messiânica — acreditassem que, denunciando e penalizando os corruptos, poderiam contribuir para a construção de uma sociedade, se não inteiramente perfeita, ao menos de não-corruptos.

A ideia de corrigir o homem, reinventando-o pela força, como queriam Lênin e Stálin, ou pela pressão da Justiça, como queriam Sergio Moro e Deltan Dallagnol, é, sim, totalitária.

Ao acreditarem fanaticamente na força das leis, como criadora de uma nova moral — a dos puros, dos limpos —, Sergio Moro e Deltan Dallagnol ajudaram a derrubar um “Sistema”, que havia sido construído pelo PT do presidente Lula da Silva desde 2003, chegando até 2016 — com o impeachment da presidente Dilma Rousseff —, mas, como na Itália, não havia nada de substancioso para colocar no seu lugar.

Marcelo Odebrecht: o empreiteiro de repente virou santo? | Foto: EBC

Não há a menor dúvida de que havia corrupção no governo do PT — abraçado por empreiteiras venais. Mas, ao derrubar o Sistema PT, símbolo da corrupção, a Lava Jato contribuiu para se gerar um vazio de poder. Com a esquerda no chão — Lula da Silva chegou a ser preso — e com o centro e a direita democrática sem alternativas políticas, a direita, ou extrema-direita, aproveitou a brecha e bancou Jair Bolsonaro, espécie de Silvio Berlusconi dos trópicos.

É possível sugerir, então, que Jair Bolsonaro é filho tanto da crise do PT — gestada pela corrupção dos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff — quanto, talvez por vias indiretas, da Lava Jato.

Mas, afinal, qual foi o erro de Sergio Moro e Deltan Dallagnol? Senhores das leis, mas imaturos em termos políticos e filosóficos, os dois jovens acreditaram que seriam corretores da sociedade brasileira. Equivocaram-se, ampla e olimpicamente.

Lula e Bolsonaro fundo eleitoral
Lula da Silva e Jair Bolsonaro: liquidação da Lava Jato pode prejudicar o primeiro | Fotos: Agência Brasil.

Tanto que a sociedade investigada e penalizada pela Lava Jato, a liderada pelas elites políticas e empresariais, acabou por engoli-los, sob a liderança de tais elites — com o apoio das elites judiciais. Aqueles que investigaram, denunciaram e penalizaram a corrupção dançaram e estão dançando. Quem não roubou se tornou culpado por não ter roubado. Quem roubou acabou “perdoado” porque foi vítima do excesso dos homens das leis. Mas para “agarrar” máfias, que são solidamente articuladas, não se pode usar luvas de pelica. O uso de certa delicadeza é o que estão a exigir de Sergio Moro, Deltan Dallagnol e outros.

O modo como as elites brasileiras detonaram a Java Jato, com o apoio do Supremo Tribunal Federal (por último, via ministro Dias Toffoli, beneficiou Marcelo Odebrecht), tende a fortalecer o discurso da direita na disputa presidencial de 2026. Tais elites estão pondo, de grátis, um discurso nas mãos da direita. Será que a esquerda não percebe que pode estar caminhando para uma espécie de suicídio político?