‘Só é forte na corte quem é forte na província.’ — Frase atribuída a Antônio Carlos Magalhães, ACM, que era tido como uma espécie de ‘rei’ da Bahia em plena República

Em 1985, Tancredo Neves foi eleito presidente no Colégio Eleitoral. Porém, como morreu, assumiu o vice, José Sarney, que havia sido um dos homens fortes da ditadura e há quem avalie sua gestão como uma continuidade civil do regime militar — tutelada, aqui e ali, pelo general Leonidas Pires Gonçalves.

Do ponto de vista econômico, sobretudo por causa da inflação — inicialmente controlada por um plano megalômano —, Sarney não fez um grande governo. Porém, em termos de democracia, não há do que se queixar. Sua gestão foi marcada por uma estabilidade democrática inconteste, o que é o grande mérito de José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, que fará 93 anos em abril. Membro da Academia Brasileira de Letras, é imortal.

José Sarney e Tancredo Neves: aliança para derrotar a ditadura civil-militar | Foto: Reprodução

Em 1989, esperava-se que o MDB, dada sua luta contra a ditadura civil-militar, ao menos fosse para o segundo turno. Seu candidato a presidente era Ulysses Guimarães, um ícone da luta contra o regime discricionário. Porém, o líder histórico do emedebismo obteve apenas 4,74% dos votos — ficando atrás de vários outros candidatos, como Mário Covas, do PSDB. No primeiro turno, Fernando Collor, do PRN, conquistou 30,48% — contra 17,19% do segundo colocado, Lula da Silva, do PT. O terceiro foi Leonel Brizola, do PDT, com 16,51% — colado no petista.

Num primeiro momento, parte do MDB articulou a candidatura de Iris Rezende Machado, ex-governador de Goiás e então ministro da Agricultura do governo de Sarney.

Popularíssimo, Iris Rezende era conhecido no país como o “ministro das supersafras”, com reportagens destacadas nos jornais “Estadão”, “Folha de S. Paulo” e “O Globo” e nas revistas “Exame” e “Veja”. O político goiano havia sido cassado pela ditadura e era visto como um gestor eficiente e experimentado, o que Ulysses Guimarães, homem do Parlamento, não era.

No entanto, Iris Rezende não conseguiu pacificar, em torno de seu nome, nem mesmo o MDB de Goiás. O então ministro e o então governador do Estado, Henrique Santillo, pertenciam ao mesmo partido, mas estavam atritados.

Iris Rezende, Henrique Santillo e Mauro Borges: líderes políticos de Goiás | Foto: Reprodução

O fato de Henrique Santillo não apoiar Iris Rezende não foi, a rigor, decisivo para impedir que o goiano disputasse a Presidência da República. Na verdade, o MDB de São Paulo, ao qual pertencia Ulysses Guimarães, articulou para fritá-lo em nível nacional. Mas o pretexto para esvaziá-lo era eficaz: um político que não conseguiu “pacificar” o partido em seu próprio Estado, Goiás, teria condições de “pacificá-lo” em todo o país em torno de seu nome?

Iris Rezende dificilmente seria eleito, mas, dada sua capacidade de articulação, poderia ser mais votado do que Ulysses Guimarães. Em 1989, o país estava conflagrado entre o candidato da direita (ou centro-direita), Fernando Collor, e dois postulantes das esquerdas — Lula da Silva e Leonel Brizola.

A conflagração era tão evidente que, juntos, Lula da Silva e Leonel Brizola obtiveram 33,7 pontos percentuais e o primeiro colocado, Fernando Collor, conquistou 30,48% (3,22 pontos percentuais a menos que os dois integrantes da esquerda). Os três políticos somaram, juntos, 64,18% dos votos válidos.

Lula da Silva e Fernando Collor (mediados por Marília Gabriela), em 1989 | Foto: Reprodução

Fernando Collor foi eleito, no segundo turno, com 53,03% dos votos. Lula da Silva, bem votado, ficou com 46,97%. Poderia ter vencido, se não fosse uma campanha pesada e nada ética dos apoiadores do político de Alagoas. Por sinal, em 1992, o presidente sofreu impeachment e seu vice, Itamar Franco, assumiu o governo e deu início a um novo tempo, inclusive em termos de probidade administrativa e combate à inflação (o político de Minas Gerais criou o Plano Real, o mais eficaz no combate à inflação da história do país).

Em 1989, aos 40 anos de idade e sem ampla experiência na política nacional — era muito pouco conhecido —, Ronaldo Caiado foi candidato a presidente da República. Não obteve uma votação expressiva. Mas ganhou experiência política e conhecimento do país — que, de tão vasto, não é apenas um país, e sim vários países, ou Estados-países (note-se que São Paulo é mais rico do que a Argentina e o Chile).

Em seguida, o médico ortopedista — formado no Rio de Janeiro e especializado na França — foi eleito deputado federal, senador e governador (para dois mandatos). As duas vitórias de Ronaldo Caiado para governador foram no primeiro turno — fato que era inédito em Goiás.

Paulo Maluf, Mário Covas, Lula da Silva, Ronaldo Caiado e Fernando Collor: candidatos a presidente da República em 1989 (mediados por Marília Gabriela) | Foto: Reprodução

Quando assumiu o governo, no primeiro mandato, em 2019, dizia-se, nos bastidores: “Ronaldo Caiado (União Brasil) fará um governo de conflitos, o que vai derrotá-lo em 2022”. Para a surpresa de muitos, ainda que mantendo posições firmes — a questão da probidade, o zelo com o dinheiro público, está sempre em primeiro lugar —, o governador, longe de criar atritos em sua base política, fortaleceu-a e, ao mesmo tempo, conquistou novos aliados.

Em 2018, disputou o governo contra o então governador José Eliton (terceiro colocado no pleito) e Daniel Vilela (segundo colocado), do MDB. Entre 2021 e 2022, Ronaldo Caiado aproximou-se de Daniel Vilela, presidente do MDB, e, bem cedo, o convidou para ser o seu vice na disputa de 2022.

Ao consolidar Daniel Vilela na vice, com antecedência, bem antes do começo da campanha eleitoral, Ronaldo Caiado mostrou que era um mestre da política. O filho de Maguito Vilela era a esperança da oposição. Acreditava-se que poderia agregar uma frente ampla para disputar contra o governador.

Daniel Vilela e Ronaldo Caiado: aliança de 2022 dinamitou as oposições | Foto: Reprodução

Sem saída, as oposições correram para o lado de um político que, embora não seja amador, também ainda não é um profissional. Gustavo Mendanha (Patriota) não teve disposição para aquilo que sobrava em Ronaldo Caiado: agregar, conquistar apoios novos e empolgar o eleitorado com ideias inovadoras. Ele comportou-se como mais do mesmo: velho num corpo jovem.

Por falta de visão política, Mendanha avaliou, errado, que tinha como enfrentar um profissional, Ronaldo Caiado, sem criar pontes com alguns políticos tradicionais. Isolou-se e virou presa fácil — tanto que obteve apenas 25% dos votos válidos. Ele saiu menor da campanha e sem expectativa de poder, porque não pode disputar mandato de prefeito em Aparecida, por ter sido eleito e reeleito, em 2012 e 2016.

Por ter saído mignon da campanha de 2022, tornando-se um político sem lugar — ou uma ideia fora do lugar —, e percebendo que o governador Ronaldo Caiado estava se aproximando do prefeito de Aparecida de Goiânia, Vilmar Mariano (Patriota), e do deputado federal Professor Alcides (PL), Mendanha começou a enviar uma série de recados para o Palácio das Esmeraldas: queria ser incluído na base governista.

Ronaldo Caiado e Gustavo Mendanha: o ex-prefeito de Aparecida de Goiânia opera aproximação com o governador de Goiás | Foto: Reprodução

De acordo com um auxiliar de Vilmar Mariano, o ex-prefeito teria plantado notas em jornais “revelando” que iria ocupar uma secretaria da gestão de Ronaldo Caiado. Teria chegado a falar na Secretaria de Esporte e Lazer e na presidência da Codego (porque Aparecida tem um distrito industrial considerável). Se plantou ou não as notas, não se sabe. O que se sabe é que as notas foram publicadas.

A rigor, o governador Ronaldo Caiado e o vice-governador Daniel Vilela, que se movem em sintonia fina, não rejeitam a aproximação de Mendanha. Primeiro, porque não se rejeita apoio. Segundo, ambos já estão pensando nas próximas eleições — a de 2024 e a de 2026.

Ronaldo Caiado e Daniel Vilela vão atuar em todo o Estado (aliás, já estão atuando), mas com um olhar mais atento para as cidades maiores, como Goiânia, Aparecida e Anápolis, que, juntas, têm mais de 1,6 milhão de eleitores.

Marconi Perillo e Vanderlan Cardoso: juntos em Goiânia? Não dá para saber | Foto: Reprodução

Goiânia, por enquanto, é uma incógnita. O prefeito Rogério Cruz (Republicanos) está mal avaliado pelos eleitores, o que tende a fortalecer o candidato que se apresentar como oposição à sua gestão. No momento quem está se colocando, de maneira mais articulada, é o senador Vanderlan Cardoso, do PSD. Se for eleito, fortalece as oposições, quem sabe o senador Wilder Morais, que planeja disputar o governo do Estado em 2026, contra Daniel Vilela (que poderá ter Pedro Sales como vice).

A tendência é que a base do governador Ronaldo Caiado opere com o objetivo de isolar Vanderlan Cardoso em Goiânia — deixando-o só, solamente só, ou apenas com apoio de Wilder Morais (há uma operação em curso para lançar Ana Paula Rezende, filha de Iris Rezende, para prefeita da capital pelo MDB). Ressalve-se que o senador do PL pode acabar apoiando o possível candidato de seu partido — o deputado federal Gustavo Gayer — para prefeito. Gayer, por sinal, é adversário ferrenho do senador do PSD e tende a combatê-lo, duramente, na pré-campanha (aliás, já está combatendo) e na campanha.

Iris Rezende e Ana Paula Rezende: o capital político-eleitoral é forte | Foto: Instagram

Se Vanderlan Cardoso for derrotado, seu candidato a governador em 2026 — Wilder Morais ou outro (há quem postule que o senador do PSD pode disputar o governo, mesmo se tiver perdido na capital) — não terá força política equivalente ao postulante bancado por Ronaldo Caiado.

Então, há uma operação política em curso — para se transformar em operação eleitoral — com o objetivo de “minar” as oposições desde já. Aí entra a operação de aceitar Mendanha na base governista — assim como Vilmar Mariano e Professor Alcides. De alguma maneira, e ainda que se admita que tenha perdido energia, Mendanha, se tornando um integrante do governismo, contribui para fortalecer a base de Ronaldo Caiado em Aparecida, cidade conurbada a Goiânia. Noutras palavras, a operação enfraquece a oposição, inclusive Vanderlan Cardoso, que não terá o apoio do mendanhismo no município vizinho.

Conexões nacional e local de Ronaldo Caiado

Há duas outras questões, que têm a ver com 2026. Primeiro, o projeto de continuidade da base do governador Ronaldo Caiado. Segundo, a possível candidatura do governador a presidente da República.

Tarcísio de Freitas: tendência é que dispute a reeleição em São Paulo | Foto: Wilson Dias/Agência Brasil

Não se vai discutir de maneira extensiva o processo eleitoral de 2026 em Goiás. O que se pode dizer é que, desde já, o governador Ronaldo Caiado está operando para formatar uma frente para facilitar a vitória de seu candidato. Primeiro, trabalha para fortalecê-lo. Segundo, opera para enfraquecer as oposições — dinamitando-as. Poucos políticos têm uma visão tática e estratégica tão bem conectada quanto o gestor estadual. Ele pensa longe e opera para tornar prática aquilo que teorizou. Espera-se que Daniel Vilela entenda isto, ou seja, que o governador está operando a ampliação de sua base para robustecê-lo no pleito seguinte.

Trinta e quatros anos depois de 1989, Ronaldo Caiado é um político encorpado. Tornou-se conhecido, em todo o país, graças à sua atividade na Câmara dos Deputados e no Senado. Nas duas casas, ficou conhecido por sua defesa do liberalismo, da legalidade democrática e da probidade administrativa.

Romeu Zema: gestor eficiente, mas sempre tropeça na “língua” | Foto: O Tempo

Mas sua consolidação como político, com estatura suficiente para disputar a Presidência da República, em 2026, tem mais a ver com seu governo. Primeiro, porque, apesar da crise e da pandemia — que paralisou o Brasil —, tem o que exibir ao país: um Estado com uma economia avançada, que cresce mais do que a do país. Segundo, embora seja um político de cariz liberal, é responsável pela criação de uma rede de proteção social que, para além da assistência, se tornou inclusiva. A educação, que, em si, é um programa social, tem sido um dos pontos fortes do governo.

No segundo governo, Ronaldo Caiado planeja radicalizar o investimento no social (em habitação, por exemplo) — em inclusão real — e na recuperação e ampliação da infraestrutura rodoviária de Goiás. A estrutura mais ampla e dinamizada é uma maneira de fortalecer a economia. O social — que também inspira o presidente Lula da Silva, do PT — certamente, se os resultados foram vistosos, atrairá os olhos do país para o Estado.

Por que o Ronaldo Caiado de 2026 é bem diferente do político de 1989? Primeiro, porque amadureceu. Segundo, porque conhece mais o seu país, suas diversidades regionais e políticas. Terceiro, hoje entende que não dá para ser radical e, por isso, é preciso aglutinar forças políticas díspares.

Michelle e Jair Bolsonaro: Isabelita (ou Evita) Péron e Domingo Péron do Brasil? | Foto: Reprodução

Há outro fator crucial, que tende a fortalecer Ronaldo Caiado. Há no país um eleitorado de direita consolidado, por isso Jair Bolsonaro recebeu 58 milhões de votos — contra 60 milhões dados a Lula da Silva.

Com o PT no poder e com Bolsonaro fora do país — aparentemente, acovardado, com receio de ser preso ao pisar em solo brasileiro —, o eleitorado de direita se sente órfão. Quem poderá aglutiná-lo daqui a três anos e seis meses?

Dada a distância, ainda não se sabe quem será o político que herdará o eleitorado de direita. Pode ser Ronaldo Caiado. Pode ser Tarcísio de Freitas, governador de São Paulo. Pode ser Romeu Zema, governador de Minas Gerais. Ou pode ser o próprio Bolsonaro, se conseguir se livrar dos tentáculos poderosos do Ministério Público e da Justiça. Há a possibilidade, nada remota, de que o ex-presidente se torne inelegível por oito anos. E há o problema de que sua imagem de político “honesto” está sendo corroída diariamente, ainda mais agora com a história dos diamantes da Arábia Saudita. Mas é preciso admitir que não está politicamente morto. Está, no máximo, “baleado”. E há, claro, sua Isabelita Perón — a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.

Romeu Zema não é bobo, apesar da fala “abobada” — ele diz “eu ouvo” e não sabia (agora sabe) quem é a poeta Adélia Prado, uma espécie de Carlos Drummond de Andrade de saia de Minas Gerais —, mas parece não ter sintonia com o país. É visto como “mineiro” demais e talvez por isso não consiga formular um discurso para o Sudeste e, sobretudo, para o Nordeste (que deu a vitória a Lula da Silva e derrotou Bolsonaro).

Tarcísio de Freitas, pelo contrário, está demonstrando habilidade, articulando com várias correntes políticas, e inclusive se dando bem com Lula da Silva. Talvez dada sua formação intelectual — Bolsonaro não tinha nenhuma —, o governador de São Paulo parece ter percebido que, se não aglutinar, vai se queimar política e administrativamente.

Entretanto, de todos os citados aquele que tem mais cancha política é Ronaldo Caiado. Ele agrega e tem discurso amplo para a sociedade. O governador sabe que o próximo presidente da República tende a ser aquele que, embora busque os votos dos eleitores de direita — os que apoiaram Bolsonaro —, precisa conquistar votos no centro e na centro-direita, e talvez até em parte da esquerda descontente com Lula da Silva.

O candidato a presidente que formular um discurso “inclusivo” para o país, crítico mas não radicalizado, poderá adquirir musculatura suficiente para derrotar Lula da Silva (não se está sugerindo que será fácil, e sim que será possível). Ronaldo Caiado parece ser o político que tem uma percepção mais aguçada do momento que o país vive — daí sua moderação, sua abertura ao diálogo, inclusive com o PT do presidente da República.

E, voltando à discussão inicial deste texto, Ronaldo Caiado mantém agrupada (e pacificada) sua base política no Estado, e, sobretudo, está ampliando-a (o que Iris Rezende não conseguiu fazer em 1989 e, por isso, acabou atropelado por Ulysses Guimarães. É provável que a crise com Santillo em 1989 tenha sido a “preliminar” da debacle política que levou Marconi Perillo, pupilo do político de Anápolis, a derrotar Iris Rezende em 1998, nove anos depois).

A coesão em Goiás tende a fortalecer Ronaldo Caiado no país. Por incrível que possa parecer, hoje o governador goiano tem mais a ver com Tancredo Neves (moderado) do que com Carlos Lacerda (radical).