Ao contrário do presidente e seus aliados radicais, políticos pesam riscos. O governador está fazendo a lição de casa

Presidente Jair Bolsonaro e governador Ronaldo Caiado: o primeiro precisa mais do segundo do que vice-versa | Foto: Isac Nóbrega / PR

Se tem algo que Iris Rezende Machado deixou como legado ao próprio partido foi o tamanho e a estrutura do MDB em Goiás. Sua figura e o fascínio que ela exerceu durante toda sua vida pública tiveram como consequência, ao longo das décadas, o fato indiscutível de o partido ter a musculatura mais avantajada no que diz respeito a levar com vigor sua mensagem eleitoral mesmo aos municípios mais longínquos e relativamente isolados.

Iris e o MDB goiano formaram uma história indissociável, uma trajetória inseparável. Na política brasileira, raros são os líderes que foram fiéis à mesma sigla partidária do início ao fim da carreira. Iris é uma dessas raridades, à semelhança de Ulysses Guimarães – a referência maior em termos nacionais –, o que faz uma diferença enorme quanto à respeitabilidade nesse percurso. A diferença de Iris Rezende para o “Pai da Constituinte” é que nem ele nem ninguém no partido conseguiu ter a projeção e a importância em seu próprio Estado que o ex-vereador e ex-prefeito de Goiânia, ex-deputado, ex-governador, ex-senador e ex-ministro alcançou por aqui.

Da criação do Movimento Democrático Brasileiro pelo bipartidarismo imposto pela ditadura militar, até sua morte, neste novembro de 2021, o goiano de Cristianópolis fez do partido a extensão de sua casa. Se antes havia sido eleito pelo PTB (vereador por Goiânia, em 1959) e pelo PSD (deputado estadual, em 1962), Iris, a partir do surgimento do MDB como partido de oposição ao regime, em 1965, se tornaria a própria identidade da sigla em Goiás.

Pode-se dizer que não há, em toda a história do partido, nenhum nome que tenha conquistado tamanha confiança de seus correligionários. Desde que voltou à disputa das urnas, em 1982, ao vencer a eleição para o governo, tudo no então PMDB em Goiás passou a girar em torno de Iris, de modo tal que ele condicionava as decisões e, ao mesmo tempo, era condicionado pelos desejos dos pares. Quem olhasse “de fora” poderia pensar – e muitos pensavam de fato – que candidaturas seguidas de Iris para governador ou prefeito, diante de tantos nomes possíveis, eram apenas uma mostra da sede de poder dele próprio.

Pelo contrário, ainda que todo político anseie pelo poder – essa é a razão de existir do político e da própria política institucional, ressalte-se –, o desejo era tanto maior de seus companheiros de partido. Uma chapa com Iris em Goiânia era certeza de sucesso; candidatos a vereador, mesmo de outros partidos e coligações, faziam questão de dizer, durante as andanças de campanha, no contato com os eleitores, que estavam no “santinho” ao lado de algum candidato rival apenas por questão de legislação eleitoral, mas que quem apoiavam mesmo era o emedebista – quantas e quantas vezes isso não aconteceu?

Da mesma forma, nas eleições fora da capital, Iris era o nome conhecido e reconhecido em todos os municípios do Estado, e conquistar seu apoio para uma chapa à prefeitura local era o mapa do tesouro para a vitória nas urnas. O mesmo valia para vereadores e deputados em geral.

Que ninguém acredite que esse poderio do MDB no Estado está acabado ou perdeu significância com a morte de seu líder. Não foi à toa que o governador Ronaldo Caiado procurou, com habilidade e “timing”, trazer o partido para sua base, mesmo estando Iris já aposentado e, no momento da concretização da aliança, já hospitalizado em São Paulo. Daniel Vilela, já no comando pleno das ações, mais do que aval, teve recomendação do próprio Iris para levar a sigla para a base aliada, em um movimento com relativas poucas baixas – e baixas, diga-se, inevitáveis para o contexto.

O enredo da saga de Iris e MDB é inimitável, mas Ronaldo Caiado tem uma história construída com base na coerência político-ideológica e na fidelidade partidária. É isso que o torna esteio e referência do DEM em todo o País. Está na sigla há mais de um quarto de século – ou seja, viveu mais tempo no partido como PFL do que com a nomenclatura atual, essa também já prestes a se alterar, pela fusão com o PSL, surgindo a União Brasil.

Caiado tornou-se não só o maior líder no Estado, mas também um dos “capas pretas” do DEM nacional. Se o partido fosse lançar um candidato a presidente da República – o que não está descartado pela nova estrutura –, com certeza seria um dos primeiros nomes a serem cogitados. Seja qual for, porém, a decisão que vá tomar o novo partido, o governador de Goiás será uma de suas vozes mais influentes.

Em meio a essa conjuntura, surge a necessidade de pensar na montagem do palanque eleitoral para o próximo ano. E as negociações não podem se restringir à situação regional, até pela importância que Caiado assumiu na política do País, a partir de sua liderança entre os governadores durante o transcorrer da pandemia, sempre pautando suas decisões pela ciência, conciliando a circunstância inevitavelmente delicada para a economia com o momento ainda mais grave em relação ao risco à saúde.

Daniel Vilela, Ronaldo Caiado e Iris Rezende: o trio provou que o diálogo constrói e que a política vencedora é, antes de tudo, pragmática | Foto: Jackson Rodrigues

Por conta da proximidade com Jair Bolsonaro (sem partido) nas eleições de 2018, quando foi um dos apoiadores de primeira hora do então deputado candidato, é natural que se questione como ficará essa relação para o próximo ano. Até tempos atrás, mesmo com as discordâncias em relação às questões sanitárias da Covid-19, seria impensável abrir mão do apoio do presidente para uma recondução ao Palácio das Esmeraldas.

Muita coisa mudou, principalmente nos últimos meses, e elas estão distanciando cada vez mais os antigos aliados de direita. Primeiramente, porque ao, contrário de Bolsonaro, Caiado está, como se diz em um provérbio antigo, “ciscando para dentro”, buscando compor uma frente ampla para um eventual segundo mandato. Disso, não há indício mais evidente do que a aliança fechada com os emedebistas.

O presidente da República, de modo inverso, nem partido escolheu – ainda que na carreira política tenha frequentado nove siglas até deixar o PSL. A cada semana, espanta aliados, seja pelas declarações que exterioriza, seja pela perspectiva econômico-social em que está colocando o País com um governo lento, confuso e reativo, seja também pela demora em algo pragmático na política: exatamente definir por qual sigla será candidato. Some-se a isso as restritivas exigências ideológicas que faz para se filiar e o que temos é um nome com apoio popular ainda considerável – cerca de 25% do eleitorado –, mas que traz um grau altíssimo de incerteza e insegurança a seus possíveis aliados em um partido ou uma coligação.

Embora tenha sido no sentido de condução da gestão que Caiado fez uma crítica direta a Bolsonaro em sua entrevista à Rede Globo, no programa “Conversa com Bial” – ao dizer que “governar é convergir” –, isso obviamente vale também para as alianças eleitorais. A direita ligada diretamente ao presidente em Goiás, puxada pelo deputado Major Vitor Hugo (PSL), diz, nas últimas semanas, que não é possível apoiar um governador que critica Bolsonaro. É do jogo, pois também é um jeito de dizer que será necessário ter um candidato próprio para as pautas “conservadoras”.

Mas é mais do que isso: essa mesma direita autoproclamada “conservadora” não aceita, em Goiás ou outros Estados, se unir numa coligação a partidos que consideram de esquerda. Ora, que sentido faz poder ter o apoio local de um partido estruturado como, por puro exemplo, o PSB, mas se recusar simplesmente para poder ter Bolsonaro no palanque?

Dados objetivos também não ajudam a postulação dessa direita: a recente pesquisa eleitoral Genial/Qaest – por sinal, uma das mais detalhadas dos últimos tempos – mostrou que a rejeição de Bolsonaro está subindo em todo o Pais e, no Centro-Oeste, chegou a 54%. Nunca foi tão alta na região. Em outras palavras: não é o melhor momento para fazer exigências a possíveis aliados, principalmente quando estes têm outras opções.

Ao contrário de Bolsonaro e seu círculo próximo – filhos, ministros da ala ideológica e apoiadores incondicionais –, políticos colocam números como esses na mesa e medem perdas e ganhos. Como, em outro exemplo, Caiado pesou o quanto afetaria a própria base consolidada a vinda do MDB para seu lado com direito a tapete vermelho estendido – leia-se candidatura a vice na chapa garantida a Daniel Vilela. O saldo da apuração diretório por diretório do MDB nos municípios mostrou que o grande partido do Estado em termos de capilaridade viria de bom grado para compor a aliança. O risco valia a pena.

Em 2020, em um domingo de protestos na Praça Cívica, com a tensão provocada pela chegada da pandemia a Goiás, Caiado saiu de seus aposentos no palácio para conversar diretamente aos radicais que se colocavam contra as medidas sanitárias necessárias naquele momento. Uma quase totalidade de bolsonaristas, que exigiam apoio incondicional do governador à política temerária do presidente em relação à Covid-19 e usavam seus votos nas eleições de 2018 como forma de chantageá-lo. A resposta de Caiado, diante do absurdo daquela discussão, foi de que não precisava daquele tipo de apoio. E foi o que ele repetiu a Pedro Bial na entrevista: “Levaram o presidente a criar o falso dilema entre economia e saúde. Não existe esse dilema. Já deixei claro que não troco vidas por votos.”

Hoje, mais do que nunca, diante de todo o cenário posto em Goiás e em Brasília, está nítido que é Bolsonaro quem precisa mais de Caiado do que o contrário. E, quanto mais radical e mais demorado em tomar decisões o presidente se colocar, mais difícil ficará sua condição à reeleição diante de todos os governadores. Todos os que também a buscam em seus Estados estão montando seu palanque da melhor e mais pragmática forma. Caiado está fazendo a lição de casa e o “casamento” com o MDB é a maior prova disso. Já Bolsonaro, mau aluno, está escolhendo a noiva perfeita que não aparecerá.