Brasil pode crescer 5% em 2021 se Bolsonaro aderir ao pragmatismo econômico
06 junho 2021 às 00h01
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A economia está crescendo à revelia do presidente. Mas ele pode ajudar se vacinar ao menos 70% dos brasileiros e não brigar com parceiros comerciais, como a China
Celso Furtado, um dos mais brilhantes economistas do país — um “pensador” da linhagem de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Darcy Ribeiro, Raymundo Faoro e Caio Prado Júnior —, sugeriu que, devido ao regime autoritário, a ditadura civil-militar, a economia poderia estagnar. Dado o fato de ser um intérprete notável, respeitado em todo o mundo, o autor do clássico “Formação Econômica do Brasil” estaria fazendo tão-somente combate político? Não se sabe. Num livro, “Modelo Político Brasileiro”, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, examinou tanto as ideias do mestre paraibano quanto a economia real.
Numa análise percuciente, Fernando Henrique Cardoso demonstrou que, ao contrário do que pregava Celso Furtado, era, sim, possível crescer, em termos de economia, sob uma ditadura. Mais: o país estava crescendo e num ritmo acelerado. Não havia nenhuma estagnação.
O presidente Jair Messias Bolsonaro, sem partido, tem vocação autoritária, não há a menor dúvida — por exemplo, não desautorizou o deputado federal Eduardo Bolsonaro, seu filho, quando disse que, para fechar o Supremo Tribunal Federal, “basta um soldado e um cabo”. Porém, paradoxalmente, não faz um governo autoritário. A democracia brasileira permanece incólume nestes dois anos e cinco meses de seu governo. Decisões do STF foram contestadas, com palavras antidemocráticas e grandiloquentes, mas não descumpridas. Há quem postule que, com Arthur Lira, presidente da Câmara do Deputados, e Rodrigo Pacheco, do partido Democratas, o Congresso se tornou mais governista. Mas a CPI da Covid-270 mil indica certa independência, ao menos no Senado. Preocupante, porém, é sua pressão sobre as Forças Armadas.
O ex-presidente Michel Temer, do MDB, legou um país em crescimento a Bolsonaro, com relativa estabilidade. O presidente é errático, mas o ministro da Economia, Paulo Guedes, não o é — apesar de suas declarações tão desastrosas quanto as de seu chefe. Uma certa estabilidade do governo se deve, em larga medida, à experiência do economista Paulo Guedes, que, mais do que Bolsonaro, talvez tenha mesmo um projeto de país. Há, claro, um “choque” entre as perspectivas de cada um.
Paulo Guedes é um liberal de fato. Se dependesse dele, as privatizações estariam mais adiantadas e o custo do governo seria menor. Mas Bolsonaro não é liberal, é um populista de cariz autoritário e estatista, como a maioria dos militares que governaram o país entre 1964 e 1985 (Castello Branco, com Roberto Campos e Otávio Gouveia de Bulhões na linha de frente, talvez tenha sido o único dos presidentes militares que se aproximou do liberalismo). Dada a proximidade das eleições, para atender aliados e agradar determinados setores da sociedade, Bolsonaro procede a certa “gastança”. O chamado “orçamento secreto” (3 bilhões de reais) — ou paralelo — não é, por certo, do agrado do ministro da Economia. Mas foi uma maneira de, burlando a lei, atender “companheiros” políticos. O tratoraço ou bolsolão é uma espécie de mensalão da direita.
O que, de fato, está fazendo Bolsonaro? Política — como fizeram Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, às vésperas da reeleição. E, de política, o presidente entende mais do que Paulo Guedes.
Crescimento e recuperação da economia
Na semana passada, Bolsonaro e Paulo Guedes comemoraram o crescimento de 1,6% da economia no primeiro trimestre do ano. É uma boa notícia, sobretudo porque há a expectativa de o país crescer até 5,5% ao ano em 2021 — o que sinalizaria para um crescimento amplo, ou seja, para uma recuperação.
Mas a pergunta é: neste crescimento há realmente o “dedo” do governo federal, ao menos em certa medida? Certamente que há, em parte. Porque, apesar de todos os problemas, dado o caráter errático do presidente — ao qual falta estatura para ser presidente de um país gigante, com 210 milhões de habitantes e com a 12ª economia do mundo —, a política de ajuste das contas do governo (apesar do orçamento desgovernado) não é das piores. O “presidente” Paulo Guedes às vezes acerta.
Mas o crescimento se deve muito mais aos agentes econômicos. Na verdade, a economia funciona quase no piloto automático, à revelia do governo federal.
O principal responsável pelo crescimento é o setor agropecuário — que depende, em larga escala, do maior parceiro comercial do Brasil, a China. O que faz Bolsonaro e seus aliados? Atacam a China, como se fosse um inimigo. No intercâmbio comercial, a ideologia, direita contra esquerda, deve ser deixada de lado. O produtor rural de Rio Verde, no Sudoeste goiano, ou do Paraná, ou de qualquer outro Estado, não quer saber de discussões teórico-ideológicas sobre se a China é comunista ou se é capitalista de Estado. O que ele quer é negociar com quem compra e paga preços adequados.
Pois o setor que mais contribuiu com o crescimento da economia foi exatamente aquele que, de maneira indireta — porque não há intenção de prejudicá-lo, quem sabe —, Bolsonaro (quase) atrapalhou. Trata-se da agropecuária (acrescente-se que a China compra outros produtos brasileiros, como ferro). Fica-se com a impressão de que, de certo modo, o presidente não tem uma compreensão precisa de como funciona a economia mundial. Não é fácil um empresário brasileiro — produtor rural ou industrial — se reinventar, adotando procedimentos globais, para vender sua produção no mercado externo, que é exigente na definição de parâmetros. Pois, com uma declaração intempestiva e irracional, Bolsonaro pode pôr tudo a perder — às vezes um trabalho meticuloso (e dispendioso) de décadas — em menos de quatro anos.
Governos ajudam quando não atrapalham o mercado, quando não pensam em Reforma Tributária para escorchar ainda mais os setores produtivos.
O crescimento de 1,6% no trimestre surpreendeu parte do mercado e é, mesmo, uma excelente notícia. Há uma sinalização de que o país poderá crescer de 4% a 5,5%. Esclareça-se: é uma expectativa. A “pressão” de Bolsonaro sobre a China, que não tem sido considerada nas análises publicadas nos jornais, pode “derrubar” a economia brasileira. É um equívoco acreditar que a China depende essencialmente do mercado patropi. Depende, de fato, mas não de maneira ampla. Há outros vendedores de commodities no mercado externo — inclusive os Estados Unidos. Procede que a China prefere diversificar seus fornecedores, tratando alguns, como o Brasil, com luvas de pelica para não se tornar dependente da poderosa economia do país do presidente Joe Biden. À China interessa uma economia transnacional mais diversificada e desconcentrada que contribua para seu fortalecimento, pois o objetivo é desbancar os Estados Unidos nos próximos 30 ou 50 anos. Será difícil, mas nada é impossível para o país de Xi Jinping. As diferenças de PIB — 23 trilhões contra 14 trilhões — é cada vez menor. A China já produz supercomputadores melhores do que os americanos e sua escola de Engenharia é considerada superior à do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Trata-se de uma revolução. A história da China como produtora de bugigangas — dessas que se compra em qualquer camelódromo do país — é coisa do passado. Sua revolução tecnológico-industrial nada fica a dever à americana.
Crise hídrica pode ser uma barreira grave
Economistas — que, ao contrário do Jornal Opção, não citaram o “problema” China; talvez por acreditarem que o realismo vai prevalecer daqui pra frente (o novo ministro das Relações Exteriores é mais pragmático do que o anterior, uma raposa, diria Isaiah Berlin, e não um porco espinho, como Ernesto Araújo) — apontam que há outros drummonds no caminho do crescimento do país, como os efeitos de uma possível terceira onda da pandemia, o ritmo lento da vacinação e a crise energética.
O Goldman Sachs apostava num crescimento de 4,6%, mas já sugere 5,5%. O banco ressalva, porém, que não pode haver cortes no fornecimento de energia em alta escala e postula que é vital vacinar as pessoas, o que permitirá uma maior circulação nas ruas e comércios — o que fortalecerá a área de serviços, que, embora vital para a economia, caiu fortemente nos últimos meses. Está se recuperando, mas muito lentamente. Uma terceira onda, que leve a algum tipo de isolamento social, tende a derrubá-la de vez, em muitos casos, em caráter incontornável (como falência ou recuperação judicial).
Numa entrevista ao “Estadão”, Alessandra Ribeiro, da Tendências, não se mostra pessimista, mas não é excessivamente otimista. A estimativa de crescimento feita pela consultoria salta de 4% para 4,2%. “Temos riscos importantes, como a terceira onda da pandemia e incerteza do ritmo de vacinação mais lento. Nosso cenário-base previa em julho ou agosto com 40% da população adulta vacinada, maio fechou bem abaixo da expectativa”, afirma a economista.
Alessandra Ribeiro destaca que “a maior surpresa do PIB do primeiro trimestre foi a formação bruta de capital fixo (indicador de investimentos), que veio acima do que esperávamos, com 4,6%. Teve um efeito de plataformas de petróleo nestes primeiros meses do ano, mas a performance veio impulsionada por bens de capital, ligados à agropecuária e a transportes, além de construção civil”.
A economista sugere que crise hídrica, que vai elevar o curso da energia, poderá ser menor do que a de 2001. “Teremos uma energia mais cara e riscos de blecautes mais localizados, que limitam [o] crescimento econômico.”
Rodolfo Margato, da XP Investimentos, acrescenta outro fator que contribuiu para o crescimento no primeiro trimestre: “A reposição de estoques na indústria”.
“Pelo lado da demanda, o PIB não teria crescido tanto e poderia ter tido até resultado negativo não fosse essa variação bastante positiva dos estoques. Por outro lado, vale a pena dizer que nos trimestres de 2020 a gente viu o contrário: um consumo de estoques bem rápido que levou a essa necessidade de recomposição”.
Margatto sugere, porém, que “a recomposição de estoques não deve se sustentar nos próximos meses”.
A XP avalia que o país deve crescer 5% em 2021. Antes a previsão era de 4,5%.
Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, sublinha que o resultado do PIB, acima do esperado, foi grandemente influenciado pelo “bom desempenho do agronegócio e pelo investimento. Mas ressalva: “Os investimentos tiveram forte impacto na alta de preços, o que é pontual”.
A previsão do crescimento era, para a MB, de 3,2% — agora subiu para 4,1%. “Temos alguns pontos de preocupação que evitam uma revisão mais otimista. Uma delas é sobre o efeito da terceira onda da pandemia. A crise de energia também tende a trazer restrição de demanda, e, com a inflação ainda em alta, é possível que a Selic (taxa básica de juros) suba para 6,5% ainda este ano, o que tende a afetar a economia”, disse Sergio Vale ao “Estadão”.
A Confederação Nacional do Comércio, menos otimista do que a maioria dos economistas e do que o governo Bolsonaro, aposta num crescimento, em 2021, de 3,8%. Antes, porém, falava em 3,2%. “O impacto da segunda onda da pandemia sobre o nível de atividade foi menos acentuado que o da primeira, mas neste primeiro trimestre o consumo das famílias já caiu um pouco — 0,1%. Isso mostra que há, sim, um resultado negativo da pandemia sobre a atividade econômica”, postula Fábio Bentes, economista da CNC, ao “Estadão”. Na sua opinião, a agropecuária, a âncora verde, é a responsável por “salvar” a economia.
João Leal, economista da Rio Bravo Investimentos, diz que “os resultados da agropecuária, da indústria e dos investimentos vieram acima do esperado, mas o consumo das famílias também foi surpresa positiva”.
“No começo do ano esperávamos uma recessão técnica para os dois primeiros trimestres e isso mudou completamente. Mesmo com a queda mais intensa do varejo, o consumo das famílias se manteve e tudo isso deixa um carrego muito positivo. Esperávamos 0,2% no segundo trimestre, estamos mais otimistas que o mercado em geral”, pontua João Leal. A projeção da Bravo saltou de 4,5% para 5,4% Um maior incentivo à vacinação pode ser decisivo para o crescimento, sugere o economista. Sobretudo porque tende a fortalecer o setor de serviços, que é seminal para a formatação do PIB.
João Leal diz que o desemprego, a inflação elevada e a recuperação desigual da economia são o que se pode chamar de “tempestade perfeita”.
A estimativa do Bradesco para o crescimento é de 4,8%; anteriormente, era de 3,3%. O economista-chefe do banco, Fernando Honorato, sustenta que “as famílias e as empresas aprenderam a lidar com a pandemia. Houve mais mortes na segunda onda, mas o impacto econômico foi bem menor, como reflexo desse aprendizado. A mobilidade caiu menos também”.
Fernando Honorato destaca, numa entrevista, que “o ciclo de alta no preço de commodities e a alta nas contratações no mercado formal ajudam a dar impulso econômico ao país, especialmente em setores ligados ao agronegócio”. Como outros economistas, ele teme uma crise energética acentuada.
Um ponto fora da curva é a interpretação do economista Claudio Considera, da Fundação Getúlio Vargas. A FGV apostou num crescimento maior no primeiro trimestre — de 1,7%, e não, como ocorreu, de 1,6%.
Mais conservadora, a FGV avalia que o Brasil tende a crescer 3,5% em 2021. “Enquanto não tivermos pelo menos 70% da população vacinada, vai ser assim: os governos relaxam as medidas restritivas, a economia melhora, mais pessoas morrem, aí aumentam as restrições, a economia piora. Esse ainda é um crescimento sobre uma base muito fraca, não vejo muita vantagem. Mesmo que o país cresça 4% este ano, como algumas projeções sugerem, vai apenas recuperar os 4,1% que perdeu no ano passado”, analisa Claudio Considera.
O Itaú Unibanco esperava um crescimento menor no primeiro trimestre — de 0,6% — e aposta num crescimento anual de 5%. “Achamos que a agropecuária pode cair no segundo trimestre, para quando esperamos um PIB com alta mais fraca, de 0,2%. Para os dois últimos trimestres, nossa expectativa é de alta de 1% em média”, avalia Luka Barbosa, economista do banco.
Luka Barbosa acrescenta uma informação não apresentada pelo demais economistas: “O desempenho do PIB ainda não tem relação com uma política econômica sustentável”. A “mão invisível” do mercado tem sido mais forte do que a “mão visível” do Estado. “É uma recuperação cíclica depois da queda que aconteceu no auge da pandemia. Está só voltando para o nível pré-crise. O crescimento nos próximos meses está condicionando ao avanço da vacinação e ao retorno da política fiscal do teto de gastos”, explicitou ao “Estadão”.
O economista Marcelo Azevedo, da Confederação Nacional da Indústria (CNI), diz que o setor está preocupado “com a regularização no fornecimento de insumos como semicondutores, o que ainda não ocorreu”. A General Motors e a Volkswagen paralisaram a produção por falta de suprimentos. “A indústria de transformação já teve queda no primeiro trimestre por causa disso. Construção e serviços de utilidade pública também sofrem impacto da falta de insumos. Ainda não é um quadro preocupante, mas merece alguma atenção.”
Marcelo Azevedo, como os demais economistas citados acima, frisa que a recuperação da economia depende da vacinação. “O mercado de trabalho, especialmente o informal, depende demais da vacinação porque é muito ligado a serviços e à abertura da economia. Se a renda não se recupera e o comércio tiver atividade limitada com a eventual piora da pandemia, isso impacta negativamente a indústria”, enfatiza o economista. Na verdade, impacta toda a economia, que é absolutamente conectada.
Bolsonaro precisa ser pragmático
Se quiser ajudar, e certamente quer, a economia a crescer pelo menos 5%, o que indicará uma recuperação relativamente ampla, Bolsonaro deve fazer quatro coisas: investir de maneira racional em infraestrutura — em obras que contribuam para dinamizar e impulsionar a economia —, conter a gastança desnecessária (como o “orçamento secreto”), vacinar a maioria dos brasileiros (acima de 70%) e melhorar as relações com os parceiros externos, como a China. Detalhe: não é nada difícil fazer isto. Basta trocar a ideologização improdutiva pela razão e o pragmatismo.
Bolsonaro está nas ruas fazendo política, quase copiando as caravanas de tempos idos de Lula da Silva. Mas seu capital eleitoral será mais forte se o governo vacinar a população e contribuir para a recuperação da economia. Ele não vai conquistar eleitores “novos” brigando com políticos e jornalistas. Bolsonaro parece não entender que é o presidente de todos os brasileiros, não apenas de seus “escolhidos”. Um pouco de acatamento à liturgia do poder — ao estilo de Juscelino Kubitschek — faria um bem imenso ao presidente e, claro, ao país.