Ao contrário do que diz Economist, o país precisa mais de investimento no social do que de liberalismo
13 junho 2021 às 00h00
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A revista critica tanto o governo de Bolsonaro quanto os do PT. Mas o que o país precisa é de homens de Estado que saibam investir para reduzir as desigualdades sociais
“The Economist”, revista britânica de cariz liberal, examina o Brasil com relativa frequência e relativa percuciência — às vezes mais, e não raro de maneira redutora e, até, anedótica. A publicação recente, com o Brasil destacado na capa, sob o título geral de “A década sombria do Brasil”, mesmerizou parte da esquerda, inclusive a de Lula da Silva (PT), e incomodou a direita do presidente Jair Bolsonaro. Aparentemente, as leituras, de ambos os espectros políticos, não foram precisas. Pelo contrário, sugerem que são tão, no básico, simplistas quanto certas abordagens da publicação da terra de William Shakespeare, o Machado de Assis da pérfida Albion.
O que “Economist” cobra do Brasil, de maneira enfática, é mais liberalismo e menos estatismo. Tese que, a rigor, não agrada nem Lula da Silva, que não é liberal — pertence à esquerda socialdemocrata —, nem Bolsonaro, que é um nacionalista-corporativista de matiz populista. Trocando em miúdos, Lula da Silva e Bolsonaro são populistas, com traços autoritários — o segundo mais —, e estatistas. Portanto, a publicação britânica não deveria ter desagradado tão-somente o político de direita. O que a revista quer é mais Paulo Guedes, o ministro da Economia, e menos Bolsonaro e Rogério Marinho, o ministro do “Orçamento Secreto” (o Bolsolão-Tratoraço). Na prática, também quer menos Lula da Silva e, digamos, Guido Mantega, o economista que traçou a política econômica do governo de Dilma Rousseff.
Bolsonaro está no poder há dois anos, cinco meses e 13 dias. O PT ficou 14 anos. Uma diferença abissal. Na sua reportagem, “Economist” sublinha que governos sucessivos, contabilizando de Lula a Bolsonaro, um período de quase 18 anos, cometeram três erros básicos.
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Primeiro, ao ceder à visão de curto prazo, tais governos adiaram as “vitais” reformas econômicas liberais. A revista culpa, de maneira mais ampla, os gestores do PT — que ficaram no poder de 2003 a 2016, quase uma década e meia. Nos governos petistas, notadamente no de Lula da Silva — que, graças a Antônio Palocci (hoje, execrado, mas foi um executivo eficiente), ministro da Fazenda, e Henrique Meirelles, presidente do Banco Central, deram continuidade à política de estabilidade do governo de Fernando Henrique Cardoso-Pedro Malan —, o país cresceu em média 4% (chegou a crescer mais, em determinado período, o que “Economist” não registra). Mas o governo petista, diagnostica a revista, “não investiu para aumentar a produtividade”. Como a economia estava alicerçada no comércio de commodities, quando seus preços caíram, o país entrou em recessão, uma das piores da história.
Os governos de Michel Temer, de 2016 a 2018, e o de Bolsonaro, começaram a avançar nas reformas — trabalhista e previdenciária (na revista “Piauí”, Paulo Guedes diz que é o responsável por seu “sucesso”, mas não por suas insuficiências (como a proteção corporativa, por exemplo dos militares) —, admite “Economist”. “Mas pararam muito aquém do que é necessário.”
O que, para “Economist”, é o “necessário”? A agenda de Paulo Guedes, que não é a de Bolsonaro: privatizações aceleradas (inclusive do setor bancário — o ministro queria “dispor” do Banco do Brasil, mas foi impedido pelo presidente), reforma administrativa (para reduzir o custo do Estado), reforma tributária e ajuste fiscal rigoroso. De alguma maneira, “Economist” é a FMI das revistas.
A revista é contrária ao Estado indutor; por isso, certas estratégias de desenvolvimento, como incentivos fiscais para empresas se instalarem em determinadas regiões distantes dos grandes centros industriais (como Goiás), não têm a sua aprovação. Quanto menos Estado, e quanto mais mercado, mais a economia será “saudável”, do ponto de vista da “Economist”.
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Segundo, a agenda do combate à corrupção foi deixada de lado. “Economist” responsabiliza “os políticos”, e não apenas Bolsonaro. De fato, há um pacto das elites — políticas e empresariais — para se protegerem e, no momento, atacarem aqueles que investigarem seus desmandos. Procuradores da República, como Deltan Dallagnol, e magistrados, como Sergio Moro e Marcelo Bretas, estão sendo execrados, inclusive com apoio de setores da imprensa (que estão sob o comando do setor bancário), como se fossem “corruptos”. Mas os “crimes” deles é terem investigado e, no caso dos juízes, condenado os setores mais empoderados da República. Para investigar gente muito poderosa, defendida pelas melhores bancas de advocacia do país, não há como seguir o legalismo estrito. Porque, se isto for feito — com juízes em torres de marfim, distantes de procuradores —, não levarão a julgamento nem a ponta quanto mais todo o iceberg. Na verdade, o que se quer é “inocentar” os culpados e “culpar” os inocentes.
“Economist” frisa que os políticos resistem “às reformas que impediriam a corrupção”. Não deixa de ser sintomático — mais do que curioso — que o pacto contra a Lava Jato inclui tanto políticos de esquerda quanto de direita. Bolsonaro, que era favorável à apuração rigorosa de corrupção, agora não é mais: ele luta, em vários campos, para proteger um de seus filhos, o senador Flávio Bolsonaro, o do esquema da “rachadinha” na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e da aquisição de uma mansão de 6 milhões de reais em Brasília
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Terceiro, “Economist” postula que o sistema político brasileiro “é um fardo”. A revista aponta que o fato de ter mais de 30 partidos “tornam as eleições caras”.
Há um problema não discutido diretamente pela publicação do país de Adam Smith e Stuart Mill: o chamado presidencialismo de coalizão. O leitor menos atento certamente pensará que o Centrão se acoplou tão-somente ao governo de Bolsonaro, quando a verdade é outra. Ao menos desde o governo de Fernando Henrique Cardoso, passando pelos de Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer, e agora no de Bolsonaro, que o Centrão é onipresente.
Os aliados de Bolsonaro eram aliados de Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff. Os presidentes aliam-se aos integrantes do Centrão — como Ciro Nogueira, Valdemar Costa Neto, Ricardo Barros, Arthur Lira, Fernando Bezerra etc. — para conseguir governar. Sem o apoio deles, as pautas não avançam nem na Câmara nem no Senado.
Fala-se que Bolsonaro tem uma pauta, “subterrânea”, pró-golpe de Estado, com o apoio de setores militares — daí ter um general de estimação à mão, o “intendente” Eduardo Pazuello. Pode até ser, porque vários de seus apoiadores são defensores abertos de um regime de exceção. Entretanto, ao governar com o apoio do Centrão — surpreendentemente, uma costura feita por um general, o moderado Luiz Eduardo Ramos, hábil articulador político (e, volta e meia, o Centrão quer derrubá-lo, dada sua integridade pessoal) —, Bolsonaro demonstra que, por enquanto, fez opção pela política, pela legalidade democrática.
Guedes, o liberal, e Bolsonaro, o populista
“Economist” assinala que, temendo perder votos, Bolsonaro abandonou a agenda liberal de Paulo Guedes. Na verdade, não se trata de ter “abandonado”. O historiador Jorge Caldeira afirma que a ditadura civil-militar, entre 1964 e 1985, criou mais estatais do que os governos de 1930 a 1964 (no livro “História da Riqueza do Brasil — Cinco Séculos de Pessoas, Costumes e Governos”, nas páginas 559 e 568, o pesquisador informa que “antes de 1964 havia 12 estatais; em três anos tornaram-se 44” e acrescenta que, ao término da ditadura, haviam sido criadas 440 estatais). O presidente se apresenta como herdeiro do regime discricionário e, como tal, nunca pensou em adotar nenhuma agenda liberal ampla. Se pensasse, não teria levado tantos militares, entre generais e coronéis, para o governo, em posições de mando.
Paulo Guedes, o “posto” que começou como “Ipiranga” e está se tornando “Tabajara”, tenta empurrar as reformas, a fórceps, apesar da má vontade de Bolsonaro. Luta para vender aeroportos, o Correios, o Banco do Brasil (o presidente barrou o enxugamento, cujo objetivo era torná-lo palatável à iniciativa privada), a Eletrobrás e outros ativos.
Integrantes do mercado sugerem que, se está ruim com Paulo Guedes, seria pior sem o ministro da Economia. “Economist” parece não perdoá-lo por ser menos liberal do que deveria ser, desconsiderando que o ministro esbarra na realidade — Bolsonaro, e não ele, foi eleito pelo voto popular. Portanto, é quem decide e só pode ser “demitido” pelo eleitor, daqui a um ano e quatro meses. O ministro pode ser trocado, a qualquer momento, e exatamente por Bolsonaro.
A publicação da terra de Ian McEwan e Lord Keynes admite que o auxílio emergencial contribuiu para “evitar a pobreza no início da pandemia”. Mas acrescenta: “Mas foi reduzido no final de 2020 em razão do aumento da dívida”. “Economist” parece endossar a decisão de Paulo Guedes e Bolsonaro.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, é liberal, portanto não é de esquerda, mas está se comportando como um estadista do porte de Franklin D. Roosevelt, o presidente que, entre 1933 e 1945, arrancou os Estados Unidos da depressão e recuperou a economia do país investindo maciçamente recursos públicos na economia. Era tão liberal quanto Biden, mas, sabia — ganhou quatro eleições consecutivas para presidente (sem sair de sua cadeira de rodas, pois teve poliomielite aos 39 anos) — que, em período de crises profundas, o mercado se recolhe e não investe ou investe menos, para evitar perdas que podem levar os negócios à falência. Cabe aos Estado, então, salvar os capitalistas das crises que eles, em regra, mesmo criam. Biden está aumentando a dívida pública porque avalia que, se investir cerca de 3 trilhões de dólares, poderá contribuir para a expansão da economia americana. É provável que tenha razão, e não aqueles que professam o liberalismo na sua forma mais radical — o chamado neoliberalismo. As crises se retroalimentam, potencializando suas consequências negativas, quando o Estado, tutelado pelo mercado, não atende ao imperativo de se investir no social. O auxílio-emergencial, bolado por Paulo Guedes, é um dos acertos do governo de Bolsonaro.
Meio ambiente e a morte da democracia
A revista nota que Bolsonaro não tem uma política para proteger o meio ambiente, e sim uma política para destruí-lo. Embora de direita, lembra, o que a “Economist” não diz, o secretário-geral da União Soviética, entre as décadas de 1960 e 1980, Leonid Bréjnev — responsável por uma produção predatória de petróleo e gás para sustentar um sistema que estava morrendo, como a gerontocracia comunista. Bolsonaro, como se adepto de um capitalismo ultra selvagem, parece avaliar que o meio ambiente atrapalha o crescimento econômico do país. Parece uma ideia fixa. No momento, o que se assiste é que sua política, que incentiva um sistema predatório da natureza, prejudica a economia da terra de Chico Mendes.
O livro “Como as Democracias Morrem” (Zahar, 272, tradução de Renato Aguiar), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores de Harvard, contém uma importante reflexão, com um título, digamos, frankfurtiano. Noutras palavras, é pessimista. Mas o fato é que a democracia, o melhor dos regimes políticos — seu caos é belle époque coletiva —, sempre esteve a perigo, no século 20 e não apenas no século 21. As forças do atraso estão sempre presentes na sociedade. Mas, se morrem, as democracias também renascem. Governada por uma ditadura, a nazista, por um período de 12 anos, de 1933 a 1945, a Alemanha radicalizou sua democracia, fortificada há 76 anos, desde 1945. Portugal viveu uma ditadura longeva, por 41 anos, até 1974. A democracia, reinstalada, já perdura por 47 anos. Na Espanha, a ditadura franquista “reinou” por 36 anos, mas a democracia vigora já há 46 anos. No Brasil, aos trancos e barrancos, num duro aprendizado de se retirar a ditadura do, por assim dizer, inconsciente coletivo, a democracia sobrevive há 36 anos. No século 20, somando o governo de Getúlio Vargas e o regime civil-militar (1964-1985), contabilizam-se 36 anos de governo discricionário, contra 64 (ops!) anos de democracia. (Viceja a ideia de que a ditadura de Vargas deve ser considerada a partir de 1937, com término em 1945 — o Estado Novo —, mas, como não houve eleições para presidente e a perseguição à oposição foi implacável, talvez seja preciso reconsiderar e apresentar a ditadura como a partir de 1930 até 1945, ou seja, um período de 15 anos consecutivos.)
Bolsonaro é um presidente paradoxal, um soldado invernal da Guerra Fria. Porque, embora seu discurso seja antidemocrático, com ameaças típicas de ditadores — como se fosse um João Figueiredo (aquele que preferia o cheiro de cavalo ao cheiro do povo) dos tempos atuais —, não governa sob um regime de exceção. A rigor, enfrenta com palavras o Legislativo e o Judiciário — o Supremo Tribunal Federal —, desafia-os abertamente, mas não descumpre aquilo que é decidido por parlamentares e magistrados. Segue a lei.
O fato de obedecer às leis, no principal, não significa que Bolsonaro não tenha certo interesse por um regime discricionário. O que falta, quem sabe, é apoio militar para uma quartelada. Por mais que tenha colocado militares no seu governo, quiçá com más intenções, o presidente parece que não os convenceu de que a ditadura é um bom negócio. Recentemente, porém, aconteceu um fato que revelou outro quadro, uma novidade. O Exército deixou de punir o general Eduardo Pazuello — que participou de um comício-motorreata, no Rio de Janeiro — sob pressão de Bolsonaro. O comando militar queria puni-lo, inclusive sugerindo que fosse para a reserva (o que fará em breve, pois deve ser candidato no Rio). Revelou-se a ascendência do presidente — acima das regras da instituição — sobre o comando do Exército. Talvez devido à presença dos generais Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto, militares íntegros e respeitáveis, no governo. O Exército cedeu ao presidente, que o submeteu, mas não reagiu, em nenhum momento, às críticas duras da imprensa e dos políticos. O que é um bom sinal. Noutros tempos, não ficaria “por isso mesmo”.
“Economist” postula que “a democracia brasileira está mais frágil do que em qualquer outro momento desde o fim da ditadura. (…) Se [Bolsonaro] perder a reeleição em 2022, alguns acham que ele pode não aceitar o resultado”. Talvez a revista esteja interpretando de maneira correta, mas não se pode sugerir que uma democracia que reage, que permanece em alerta e sempre crítica, é “frágil”. Ainda não é. Mas é provável que os militares, capitaneados por Bolsonaro, possam não aceitar uma vitória de Lula da Silva? Não dá, claro, para saber. Mas é possível. Por isso há quem recomende a Lula da Silva que coloque na sua vice um general — como Santos Cruz (que não aceitou o convite) — e não um empresário. Não se deve buscar tão-somente o centro político, mas quem, tendo influência na caserna, contribua por abortar uma possível tentativa de golpe de Estado. Frise-se que o presidente Juscelino Kubitschek só tomou posse, em 31 de janeiro de 1956, depois de um “golpe preventivo” do marechal Henrique Teixeira Lott. O presidente Café Filho foi deposto e JK pôde tomar posse em relativa paz — o que muitos militares e civis, como Carlos Lacerda, não queriam. Entre 1984 e 1985, ao perceber que havia reação militar — alguns generais queriam a continuidade da ditadura —, Tancredo Neves e José Sarney se aproximaram do general Leonidas Pires Gonçalves — que era respeitado no Exército, inclusive pela linha dura —, o que evitou qualquer tentativa de golpe.
Enfim, o quer fazer? Depois de “metralhar” Bolsonaro, mas considerando que “a podridão vai muito além de um homem só”, a “Economist” sugere que o povo o troque — pelo voto — em 2022. É isto: o povo, os eleitores, deve decidir se quer ou não a permanência do presidente no poder.
Mas, ao contrário do receituário da “Economist”, num país de desigualdades sociais históricas (aboliu-se a escravidão há apenas 133 anos, em maio de 1888), não se precisa de mais liberalismo ortodoxo (e não se está, claro, descartando o liberalismo como um todo). De radicalizá-lo. O que se precisa é de homens de Estado, que, sem gastar com o que é desnecessário (como a recente farra do “Tratoraço” ou “Bolsolão”), entendam que é preciso investir para reduzir as desigualdades, com apoio maciço, por exemplo, à educação dos pobres. E nada é mais vergonhoso do que em falar em civilização com pessoas passando fome num país que é um dos maiores exportadores de alimentos para várias nações, notadamente para a China. É um dever do Estado convocar a sociedade — gente como a empresária Luiza Trajano, do Magazine Luiza (e o banco Itaú Unibanco doou 1 bilhão de reais para o combate à pandemia da Covid-Quase 500 mil) — para contribuir na melhoria da qualidade de vida das pessoas, notadamente das mais pobres. Em 2022 talvez ganhe a eleição não aquele que fale em emprego, e sim aquele que seja crível ao falar em cuidar de gente.
Quanto ao jogo eleitoral, o que se pode sugerir é que está aberto. O ex-presidente Lula da Silva vai bem, está na frente de Bolsonaro. Mas a eleição será disputada daqui a um ano e quatro meses. A vacinação em massa, com a consequente redução do número de mortes, e a recuperação econômica, que é prevista, podem mudar o quadro político? Talvez sim.