Na última terça-feira, 24, o Banco Central (BC) publicou um estudo técnico sobre o mercado de jogos e apostas. Segundo a análise, os brasileiros transferem entre R$ 18 bilhões e R$ 21 bilhões por mês para as “bets”. Isso significa 15% de todo o faturamento anual do comércio brasileiro deste ano. A questão foi considerada grave o suficiente para provocar reuniões entre empresários e governo, e causar a declaração do ministro da Fazenda Fernando Haddad, que cobrou impostos “como os do cigarro” para o setor e reclamou da demora de sua regulamentação definitiva.

Desde então, se desenha no debate público a tese de que as bets desviando recursos do consumo são responsáveis pela sensação de estagnação econômica, apesar da melhora dos indicadores. Afinal, apenas os beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em apostas em agosto, o que foi equivalente a 14% do total de repasses do programa naquele mês. Na prática, o governo tem transferido recursos públicos para o mercado das apostas, ainda isento de impostos. 

Em 8 de setembro, o Jornal Opção publicou reportagem explorando a contradição entre crescimento do PIB (atualmente projetado em 3,2% pelo BC) e a sensação de perda do poder de compra. Na publicação, Marcelo Baiocchi, presidente da Fecomércio, afirmou acreditar que o principal motivo para o sentimento de insatisfação dos brasileiros é a alta taxa Selic, que corrói o salário e diminui o poder de compra. Economistas entendem que o Comitê de Política Monetária (Copom) deve manter o processo de alta dos juros, encarecendo o crédito e elevando o custo de vida.

Uma das razões pela alta da taxa básica de juros é a tentativa de contenção da inflação; mas outra razão é a inadimplência — e aqui as bets podem representar um fator. Com o aumento no risco de calote ao se emprestar dinheiro, sobem as taxas para que a atividade valha a pena: em agosto, o percentual de famílias endividadas no Brasil foi de 78% — mais do que os 77,4% no mesmo mês de 2023. Na média, 29,6% da renda das famílias está comprometida com o pagamento de dívidas.

O dado de que beneficiários do Bolsa Família estão usando o repasse de impostos para apostar é um atestado contra a desregulação do mercado das bets. As famílias pobres não podem deixar de comprar arroz e feijão para jogar, mas podem se endividar, elevando a taxa de juros para todos. Quem é viciado em jogos não escolhe apostar responsavelmente — aposta o que tem.

Um paralelo importante é a loteria da Caixa Econômica Federal. Segundo dados divulgados pela própria instituição financeira, em 2023, mais de R$ 23,4 bilhões foram arrecadados com as loterias — a Caixa leva quase um ano para arrecadar todo o montante destinado às bets em um mês. Do total arrecadado pela loteria da Caixa, R$ 11 bilhões foram repassados para fomentar programas de desenvolvimento social.

Se a loteria “oficial” é uma espécie de imposto para quem não sabe matemática (a probabilidade de ganhar na Mega-Sena com uma aposta simples é de uma a cada 50 milhões de jogos), pelo menos parte desse tributo voluntário é revertido para a própria sociedade. Já as bets, por enquanto, fazem o contrário do serviço social. São ainda a atividade ideal para a lavagem de dinheiro.

Mas sua regulamentação não é simples. Desde dezembro de 2023, a aposta on-line é regida pela “Lei das Bets”. Segundo ela, empresas devem se cadastrar no Sistema de Gestão de Apostas (Sigap) para atuar legalmente no Brasil — mas os 113 pedidos de outorga ainda não foram analisados pela Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA). Na última quarta-feira, 25, a Confederação Nacional do Comércio, Serviços e Turismo (CNC) pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) a suspensão da Lei das Bets, como se a falta de regulamentação pudesse extingui-las do país.

Pelo contrário — ao deixar o Brasil sem qualquer legislação, o cenário volta a ser o do mercado descontrolado. Se todos os 113 pedidos receberem outorga, a União arrecadará até o final do ano R$ 3,4 bilhões. O governo federal fracassa na comunicação à sua própria base de que há expectativa de arrecadar impostos com apostas. Parlamentares da base do governo, que votaram em peso a favor da Lei das Bets, agora questionam os termos de sua legalização, ignorando a crença da Fazenda de que esses impostos serão a “bala de prata” para equilibrar um orçamento em eterna expansão.

Segundo reportagem de Victoria Azevedo e Nathalia Garcia na Folha de S.Paulo, Gleisi Hoffmann, presidente do PT, disse: “Subestimamos os efeitos nocivos e devastadores sobre o que isso causa à população brasileira. É como se a gente tivesse aberto as portas do inferno, não tínhamos noção do que isso poderia causar”, diz ela. “Principalmente essa ação muito ofensiva das casas de jogos e o uso de publicidade extrema.”

A reação de Gleisi Hoffmann ao problema do desvio das rendas familiares para as bets soa como desistência, uma saída preguiçosa para uma questão que não vai mais embora. Primeiro, porque o encargo de regulamentar as empresas é justamente do governo de que Gleisi Hoffmann faz parte. Segundo, porque, no desânimo frente aos problemas apresentados pelas bets, há a sugestão de que parlamentares podem renunciar à tarefa de implementar a lei com a esperança de que os brasileiros vão abdicar de apostar on-line se a atividade for ilegal. Não vão. 

O ministro do STF Luiz Fux convocou para o dia 11 de outubro audiência pública para discutir o futuro da Lei das Bets. A preocupação com os efeitos negativos da expansão do mercado de apostas é real, bem como é real a possibilidade de a Lei recrudescer. Mas a raiz do erro precisa ficar clara: Michel Temer (MDB) liberou apostas desleixadamente, via MP, em 2018. Parlamentares foram ingênuos (e novamente preguiçosos) ao fingir que as máfias que controlam o jogo no Brasil desde sempre dariam licença para empreendedores formalizados entrarem no mercado. O que temos agora é a multiplicação das casas de apostas de fachada, cujo principal propósito é a lavagem de dinheiro.