Escritor aborda em livro os desafios de constitucionalizar o Algoritmo
23 março 2023 às 18h59
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Por Cyntia Melo Rosa
Escritor espanhol e professor doutor Francisco Balaguer Callejón lançou no ano passado na Espanha o livro ‘A Constituição do Algoritmo”. Segundo ele, a obra já está disponível em português e logo será lançada no Brasil.
No profundo estudo para a publicação, Callejón concluiu que há mudanças provocadas pelo mundo digital em um contexto complicado da legislação no mundo. “Constitucionalizar o algoritmo quer dizer incorporar os direitos fundamentais que nós temos nas nossas Constituições na regulação dos algoritmos”, frisa.
A pesquisa de Francisco Balaguer Callejón foi detalhada durante a realização do Curso de Especialização sobre Constitucionalismo Digital. O evento aconteceu na Universidade de Granada e o Instituto de Direito Público Brasiliense. Ao Jornal Opção, o professor contou um pouco de sua obra: “A Constituição do Algoritmo”.
O livro está em preparação para ser publicado na Itália e em traduções no inglês e no francês.
Em seus estudos, percebe-se que há uma preocupação muito grande da Europa com relação à interferência da tecnologia na vida da sociedade. Como o Sr. se posiciona com relação a isso?
O livro “A Constituição do Algoritmo” foi publicado na Espanha em finais do ano passado e já há uma tradução em português, pois será publicado no Brasil. Estamos também em preparação para a publicar na Itália e também em inglês e francês. A minha ideia é que temos que procurar fazer duas coisas ao mesmo tempo.
Primeiro, constitucionalizar o Algoritmo quer dizer incorporar os direitos fundamentais que nós temos nas nossas Constituições na regulação dos algoritmos. Isso é muito importante porque os algoritmos pertencem ao campo do Direito Privado, fora do espaço estatal e no campo global, pois as grandes companhias tecnológicas são companhias globais.
Em segundo, deve-se digitalizar a Constituição. Se o mundo está a se mover, pois estamos em uma transformação importante da realidade, essas mudanças não podem estar fora das transformações da Constituição. Ao contrário, temos que procurar mudar a realidade e ao mesmo tempo mudar a Constituição. Se manutenção da Constituição com a pretensão de mudar a realidade digital revela metodologia inadequada, pois evidente o conflito.
Agora vivemos um conflito relativamente aos direitos fundamentais entre a Constituição e a sociedade digital. Temos que compreender que ambas as partes têm que se transformar, pois não podemos pensar somente na transformação do mundo digital. Essa é a metodologia: não podemos mudar apenas algumas normas e regras da Constituição, mas compreender a Constituição pela perspectiva do mundo digital e procurar fazer as mudanças que sejam necessárias ao mesmo tempo que temos que procurar fazer as mudanças na sociedade digital.
O problema é que na sociedade digital, no campo da globalização, temos uma proteção dos direitos que está muito orientada aos problemas onde temos os conflitos
Escritor Francisco Balaguer Callejón
Que mudanças acredita que devem ser feitas?
Primeiramente, precisamos compreender que as mudanças provocadas pelo mundo digital têm um contexto, um marco de referência, que é muito complicado, pois as causas dos problemas advindos estão fora do âmbito estatal e também fora da Constituição. Atualmente, o Estado trabalha na correção dos efeitos dos problemas provocados pelo mundo digital e não na origem de tais problemas, porque estes são causados pelas grandes companhias tecnológicas.
É necessário compreender que o mundo do direito mudou. Não temos grandes problemas no direito constitucional atual, mas problemas decorrentes da globalização e do mundo digital. Temos transformações que não serão resolvidas pela incorporação de direitos na Constituição. Assim, temos que reinterpretar o direito.
O problema é que na sociedade digital, no campo da globalização, temos uma proteção dos direitos que está muito orientada aos problemas onde temos os conflitos, sendo estes sobretudo do mercado, da economia digital, da economia de dados.
Temos muito desenvolvidos os direitos do consumidor e de proteção de dados, mas esses direitos não têm uma relação direita com os princípios constitucionais e o princípio da dignidade da pessoa humana. O exemplo na Europa é quando ocorreu a crise financeira em 2009, quando algumas pessoas tiveram problemas de habitação, que resolveu-se com as regras do direito do consumidor, que é vinculado ao processo de mercado, e não com aos princípios e valores constitucionais.
O mesmo ocorre com a economia de dados, pois os dados pessoais são direitos individuais e estão sendo convertidos em produros de mercancia, criando um grande problema. Precisamos de uma reflexão muito importante não somente do ponto de vista das transformações da sociedade digital, da globalização, mas também do que é necessário para a Constituição para a realização do controle das relações advindas das mudanças, para que os direitos instrumentais ao mercado voltem a ter conexão com os princípios e valores constitucionais, sobretudo com o princípio da dignidade da pessoa humana.
É preciso encontrar uma conexão com o sentido constitucional desses direitos instrumentais, para que ganhem densidade constitucional, que tenham mais conexão com os princípios e valores constitucionais.
Relativamente à crise constitucional que o mundo vivencia, em sua opinião, qual a motivação da ineficiência dos poderes constituídos, provocando a judicialização de matérias estranhas ao campo de atuação do Judiciário?
Para resolver uma crise nós temos que compreender os problemas que estão em seu centro, sob pena de trabalhar apenas com a epiderme, com questões superficiais. É o que está ocorrendo agora no campo constitucional e enquanto não compreendemos os problemas não podemos resolvê-los. Estamos trabalhando superficialmente e precisamos de mais reflexão para compreender o mundo digital, o seu funcionamento, quais são os interesses e fatores de poder que lhe dão suporte.
Precisamos entender como funcionam as tecnologias e saber quais são os interesses que estão por trás de sua configuração. Atualmente, a tecnologia é recepcionada de forma natural, sobretudo para os nativos digitais, que não têm capacidade de comparar com o mundo analógico. Contudo, temos que demonstrar que as pessoas têm alternativas e que a configuração das aplicações não é natural, pois ligada aos interesses comerciais das grandes companhias tecnológicas, que desenham aplicações para seu modelo de negócio, procurando atrair a atenção das pessoas para o incremento de sua publicidade.
Enquanto juristas, temos que refletir sobre os problemas causados por esta oferta, bem como pensar nas alternativas para que as complanhias tecnológicas continuem a oferecer seus produtos tecnológicos, porém em respeito ao direito fundamental das pessoas, que é um patrimônio constitucional comum à Espanha e Brasil, que têm os mesmos princípios e valores constitucionais, como os de toda Europa.
As grandes companhias tecnológicas têm que acomodar o seu modelo de negócio ao respeito aos direitos humanos fundamentais. Não podemos deixar que sua atuação se dê em campo sem regulação, como se fosse um espaço vazio do ponto de vista do direito.
Observando a violação já ocorrente, quais foram os direitos que sofreram mais impacto pela atuação da Inteligência Artificial?
Nos últimos anos, verifico que os direitos relativos à intimidade pessoal foram os mais prejudicados pelas grandes companhias, sobretudo pelo Facebook, Instagram e Whatsapp, sendo que o Google indica mais um problema concorrencial. Hoje, os direitos relativos à intimidade não têm nenhum valor. No passado, o conteúdo de uma correspondência enviada pelos correios era inviolável. Atualmente, as companhias tecnológicas acessam todas as informações que enviamos, provocando uma violação ao direito da intimidade, da inviolabilidade das comunicações telefônicas e transmissões em geral.
Relativamente aos direitos políticos, é evidente que o Facebook está promovendo uma intervenção não permitida ou legitimada pelo direito. Os processos eleitorais dos países são afetados pela propaganda subliminar. O mesmo ocorre com a liberdade de expressão e o direito à informação relativamente às fake News. A liberdade de expressão aparenta ser mais um produto de mercado nesse ecossistema das grandes companhias tecnológicas, pois não é uma liberdade orientada à configuração de um espaço público democrático, como ocorre com os órgãos de comunicação tradicionais, demonstrando uma afetação sistêmica dos direitos fundamentais.
A configuração constitucional do espaço público é uma configuração baseada em valores e princípios. Porém, a configuração que as companhias tecnológicas estão fazendo é baseada unicamente em interesses econômicos do seu modelo de negócio, sem obstáculos.
Qual a sua opinião sobre o uso da Inteligência Artificial pelo Poder Judiciário?
Eu abordei isso em meu livro, não apenas quanto ao Poder Judiciário, mas quanto à todas as dimensões constitucionais que têm uma configuração processual. Trabalhei muito a questão da argumentação judicial no meu livro que trata sobre “As fontes do Direito” e falo da configuração da argumentação e a formação do discurso jurídico no Estado Democrático de Direito.
Na configuração do discurso jurídico, a argumentação é muito importante, diante da impossibilidade de se estabelecer a verdade, sendo possível estabelecer possibilidades, o que se revela a essência do processo judicial. Os algoritmos neste caso substituiriam a argumentação jurídica, o que não se pode admitir, como também outras garantias constitucionais, como a diversidade de instâncias.
A incorporação dos algoritmos pode até ser admissível, mas deve ser compatível com a Constituição, seus princípios e valores.
Francisco Balaguer é catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Granada, na Espanha, desde 1991