Francis L. Sampson: o capelão que ajudou o soldado “Ryan” a encontrar um irmão morto na Segunda Guerra Mundial | Foto: Reprodução

Autor de “Europa na Guerra — 1939-1945” (Record, 599 páginas, tradução de Vitor Paolozzi), o historiador britânico Norman Davies admite que “O Resgate do Soldado Ryan”, de Steven Spielberg, é, plasticamente, um belo filme, que conta uma boa história. Mas sugere também que a película não consegue — aliás, nem se propõe — esboçar um contexto histórico de qualidade. A construção de um cinema heroico, com americanos como protagonistas dos principais acontecimentos — outros fatos, como a Batalha de Kursk (americanos não estavam envolvidos), são propositadamente esquecidos —, agrada, porém, ao público. Sobretudo porque as fitas americanas são, no geral, tecnicamente irrepreensíveis.

O que Manuel P. Villatoro, do jornal espanhol “Abc”, mostra, no texto “El desconocido error histórico de ‘Salvar al Soldado Ryan’ con el Día D y el capitán Miller”, é que não se trata tão-somente de apresentar um contexto histórico — uma justificativa para não exibi-lo é evitar o didatismo e não tornar o filme muito longo — mais amplo e que permita que os espectadores entendam realmente o que está acontecendo na tela. Há outro problema no “largometraje” (longa-metragem).

Os irmãos Niland: dois, Preston e Robert morreram durante  a Segunda Guerra Mundial, em 1944 | Foto: Reprodução

No filme, o capitão John H. Miller — o ator Tom Hanks — procura um paraquedista da 101ª Divisão Aerotransportada que teria perdido seus três irmãos em combate. A história do combatente Frederick Niland (o nome real do militar; no filme, Ryan), frisa Villatoro, “é bastante fidedigna”. O problema é a história do militar que o busca.

“O protagonista em questão se chamava Francis L. Sampson e não dirigia tropas no front. Nada mais longe da realidade. Era um capelão da 101ª Divisão Aerotransportada”, anota Villatoro. Já “o Miller real não era nem um mestre nem um combatente excepcional dos Rangers”.

O livro “Lo Que Nunca te Han Contado del Día D” [Principal, 408 páginas, de Pere Cardona e Manuel P. Villatoro] relata que Francis L. Sampson nasceu em Iowa, em 1912, e era filho de um empresário do ramo de hotelaria. A família era de classe média. Depois de graduado na Universidade de Notre Dame, entrou para o seminário de St. Paul, em Minnesota, pois planejava dedicar sua vida a Deus. Tornou-se sacerdote em 1941, atuando no Estado onde nasceu.

Soldados da 101ª Divisão Aerotransportada | Foto: Reprodução

O ataque japonês em Pearl Harbor, em 7 de dezembro de 1941, levou-o a se alistar no exército. (O Japão certamente “afundou” a Alemanha ao atacar os Estados Unidos. A Segunda Guerra Mundial ficou menos difícil para os Aliados com a conquista do apoio direto dos americanos.)

No exército, para o qual entrou em 1942, Francis L. Sampson não era soldado, e sim capelão militar. Quando o exército solicitou um capelão para uma unidade de paraquedistas, o religioso se apresentou. Ele conta, nas suas memórias, que, ao aceitar a incumbência, não sabia que também teria de se submeter a treinamento duro e  de saltar de paraquedas. Se soubesse, confessou nas memórias, talvez tivesse desistido da empreitada.

Mesmo tendo treinado como qualquer outro militar, as armas de Francis L. Sampson eram uma estola, uma bíblia e um crucifixo. O sacerdote era tratado com carinho pelos paraquedistas que foram treinados para atacar os alemães na Normandia, na França. Eram os homens do Dia D. Ele escreveu que “palavras amáveis”, de conforto afetivo e espiritual, às vezes eram mais úteis do que um paraquedas de reserva.

Villatoro relata que, “no verão de 1944, Sampson, membro do 501º Regimento de Infantaria Paraquedista da 101ª Divisão Aetrotransportada, recebeu ordens de se lançar com seus companheiros atrás das linhas inimigas nas primeiras horas do desembarque na Normandia. Ele pulou do avião, um C-47, e, ao cair, perdeu o missal e o crucifixo. Mesmo sob bombardeio intenso dos alemães, decidiu procurar seus objetos e os encontrou. Pôde, assim, continuar sua missão como capelão, confortando os soldados. Ele não portava armas.

Depois do Dia D, Francis L. Sampson conversou com um soldado da 101ª Divisão Aerotransportada e sua história o deixou comovido. Villatoro pontua que há “várias versões” para o fato.

“O sacerdote deixou escrito em suas memórias que, enquanto estava acampado com seu regimento na praia de Utah à espera de que os buques os levassem de volta à Grã-Bretanha, um soldado chamado Frederick Niland o procurou e disse que um de seus três irmãos (Robert, da 82ª Divisão Aerotransportada, também presente no desembarque) havia sido morto em combate e que seu corpo estava no cemitério de Sainte-Mére-Eglise. ‘Nós entramos no meu Jeep e andamos 20 quilômetros até a cidade’, deixou escrito nosso protagonista”, registra Villatoro.

Quando chegaram à cidade, informaram a Frederick Niland que não havia nenhuma tumba com o nome de Robert, e sim de “um tal Preston Niland”. “Padre, este é meu irmão também. Era tenente”, disse Frederick Niland.

Depois de investigar, o capelão Francis L. Sampson descobriu que a tragédia era ainda maior, pois Frederick Niland havia perdido também outro irmão, Edward Niland, da Força Aérea, em maio de 1944, quando participava de uma operação de bombardeio a bordo de um B-25.

Ao perceber o infortúnio da família Niland, o padre Francis L. Sampson escreveu para seus superiores e pediu que dispensassem o soldado Frederick Niland. “Sua mãe pelo menos teria um filho para consolá-la”, escreveu o religioso.

A versão de Francis L. Sampson não bate com a do celebrado Stephen Ambrose e a do filme de Spielberg. Vale sustentar que cinema não é história, e sim arte e entretenimento? É provável. A história verdadeira do soldado Ryan é menos heroica do que a do filme de Spielberg. Mas os irmãos Niland devem ser considerados, por certo, como heróis da guerra que libertou a Europa do nazismo da Alemanha e de Adolf Hitler. Eles contribuíram para que a democracia persistisse como “regime” dominante no mundo.

“O Resgate do Soldado Ryan” pode conter falhas, porque o roteirista ampliou a ficção para tornar a história mais impactante, mas continua um belo filme. Coloca-se “emoção”, uma história de família, no meio da crueza de uma guerra — que, diria Louis-Ferdinand Céline, autor de “Viagem ao Fim da Noite” (traduzido com excelência por Rosa Freire D’Aguiar), é fruto da “razão enlouquecida”. No caso, a “razão esclarecida” era representada pela Inglaterra de Churchill, pela União Soviética de Stálin, pelos Estados Unidos de Roosevelt e pelo Brasil de Getúlio Vargas (que enviou 25 mil brasileiros para a batalha na Itália). A “razão enlouquecida” estava enfeixada nas mãos da Alemanha de Hitler, na Itália de Mussolini e no Japão de Hiroito. Quando não há mais possibilidade de pregar a paz, como o apaziguamento do inglês Neville Chamberlain, é preciso ir à guerra.

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