Renata Wirthmann

Especial para o Jornal Opção

Rotineiramente eu e meu pai trocamos matérias de jornal. Mando pra ele algo que me interessou e ele me envia algo que, como pai, supõe que devo ler ou que devo transmitir aos meus alunos. Faz parte de uma longa e maravilhosa tradição.

Tanto meu pai quanto eu acordamos muito cedo, sendo assim, essas trocas de mensagem também começam bem cedo, mesmo porque desde que o mundo é mundo, meu pai lê seus jornais logo cedo, inúmeros. Minhas lembranças de infância incluem secar a “Folha de S. Paulo” no forno porque o jornaleiro tinha jogado o jornal no jardim molhado. O jornal de domingo era especialmente difícil de secar, todos trabalhávamos conjuntamente no exercício de secá-lo.

No dia 2 de julho deste 2023, logo cedo, meu pai me enviou uma matéria, da “Folha de S. Paulo”, sobre o novo livro da Natalia Pasternak e Orsi chamado “Que Bobagem!  Pseudociências e Outros Absurdos Que Não Merecem Ser Levados a Sério” (Contexto, 336 páginas). O livro nem tinha sido lançado, mas já haviam conclusões arrebatadoras feitas a partir dele no jornal. O texto era do jornalista Hélio Schwartsman, colunista da “Folha”, e tinha somente quatro curtos parágrafos que antecipavam a provocação que se anunciava no vazio e agressivo título do livro: “Que Bobagem!”

Eis que meu pai me questionou: “Você não vai responder?” O livro nem tinha sido lançado, eu ainda não tinha como ler, mas já me sentia convocada. Compartilhei a convocação com colegas de outras universidades. Senti neles o que senti em mim, algo como, “sério, mais um desses que querem ampliar sua fama em cima de ataques desonestos e violentos?” A primeira coisa que pensei diante daquela bobagem foi: quanta desonestidade intelectual e quanta violência vazia e gratuita!

Pensei nos meus quase 20 anos de docência em ensino público federal. Pensei no meu percurso de graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado, todos em Psicanálise. Pensei nos meus longos e importantes projetos de pesquisa e extensão, sobretudo em dois mais recentes, acerca da questão do autismo e da construção do primeiro escritório social do Estado de Goiás. Pensei nos mais de 1000 atendimentos semanais da clínica escola da universidade e nas 15 turmas que já formamos, incluindo psicólogos indígenas e quilombolas, estudiosos de psicanálise… e aí vem alguém e sintetiza todo esse longo e sólido percurso com um “Que Bobagem!” — assim, banal, violento, vazio e desonesto.

Carlos Orsi, jornalista, e Natalia Pasternak, bióloga | Foto: Reprodução

Me senti agredida por todo meu percurso. Sou professora do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCat). Fui contratada, via concurso público, em 2006 para a criação do curso de Psicologia. Realizo projetos de pesquisa e ações de extensão em instituições e com pessoas de todas as regiões do país. Do Amazonas ao Rio Grande do Sul. E tudo que vem como reconhecimento de todo esse trabalho é um “Que Bobagem!”?

A decepção de instaurou ainda mais quando, no final das minhas férias com minha família em Salvador, assistindo lindas palestras na Casa Mulher com a Palavra, meu pai me manda uma foto da tela da tv, na GloboNews, Pasternak estava lá, a convite do comentarista, sociólogo, doutor em Geografia Humana e professor Demétrio Magnoli, para fazer propaganda do livro (inclusive, uma ressalva, a campanha publicitária deste livro é notável, pena que a verdadeira literatura nacional não ganhe tamanha repercussão, talvez o mercado editorial pudesse ser beneficiado com tamanho empenho). Eu, que gosto muito do Demétrio Magnoli, fiquei decepcionada com um professor da área de ciências humanas e sociais validar tal leitura tão rasa de epistemologia. Que decepção! Lembrando que segundo a leitura epistemológica proposta, pelo ovacionado livro, nenhuma área das ciências humanas conseguiria sustentar o termo ciência.

Ainda na entrevista da GloboNews minha escuta capturou uma fala sintomática de Demétrio Magnoli quando questiona sobre o lugar privilegiado que a Psicanálise ocupa para a elite intelectual do país. Desconheço a história do comentarista de televisão e sua decepção com a suposta elite intelectual do Brasil. Mas queria contar ao meu querido sociólogo que a Psicanálise não está presente somente na elite do país, está presente em todas as faixas da sociedade. Eu mesmo tenho estagiárias dentro da unidade prisional desde 2017, escutando a partir da psicanálise, e construindo ações a partir dessa escuta. Será que a população carcerária é elite e eu não sabia? Poderia citar inúmeros trabalhos, mas o livro não busca abrir o debate, já sentencia com sua conclusão de que a psicanálise é um “absurdo que não deve ser levado a sério”. Talvez tanto Pasternak, Orsi quanto Demétrio precisassem sair de dentro de suas bolhas para conhecer o Brasil. Convido aos três para começar a conhecer as pesquisas das dezenas de universidades públicas do Brasil, começando pelo interior de Goiás, vão ficar impressionados com nosso trabalho, aquele que foi nomeado como uma bobagem.

Vários colegas, docentes de outras instituições, fizeram trabalhos incríveis detalhando todos os erros e equívocos do livro em questão, que não para em pé e foi escrito com o único propósito, alcançado, de ganhar mais fama. Permaneço reconhecendo o importante trabalho da querida Pasternak realizado durante a pandemia, diferente de sua postura, jamais a atacaria ou desqualificaria seu trabalho, mesmo que não concordasse com todos os aspectos deste. Críticas são bem-vindas e necessárias em todo campo científico. Pesquisas são feitas de questionamentos, estes sempre serão bem-vindos, desde que não sejam agressivos, desrespeitosos e vazios.  

Passado este momento de enorme publicidade, pouco ou nada restará do livro, exceto o fato de que estamos diante de uma grande desonestidade intelectual sustentada por uma enorme vaidade pessoal. Encerro com Caetano Veloso, até para lembrar que a Psicanálise busca seu alicerce mais na cultura do que nas sinapses nervosas, pois entende que o ser humano está muito mais próximo da linguagem que dos impulsos neuronais, embora um jamais existirá sem o outro:

“Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho”
Trecho de “Sampa”, de Caetano Veloso

Resposta ao livro: “Que bobagem!”, de Natália Pasternak e Carlos Orsi.

Renata Wirthmann é psicanalista e professora associada do curso de Psicologia da Universidade Federal de Catalão (UFCat). Escreve livros infanto-juvenis e foi contemplada com a bolsa Funarte de criação literária em 2009 e uma menção honrosa no I Concurso Nacional de Literatura Infantil e Juvenil promovido pela Companhia Editora de Pernambuco em 2010. Possui pós-doutorado em Teoria Psicanalítica na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB) e mestrado em Psicologia pela UnB. É colaboradora do Jornal Opção.