As uniões homoafetivas são previstas há 12 anos pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que de forma unânime, equiparou as relações entre pessoas do mesmo sexo às uniões estáveis entre homens e mulheres. O Jornal Opção conversou com alguns casais goianos para saber como eles avaliam o retorno dessa discussão. Está em votação no Congresso um projeto de lei (5167/09) que visa proibir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Na tarde de ontem, 19, essa votação foi adiada mais uma vez e parlamentares devem analisar isso na quarta-feira da próxima semana.

Valéria Silva, de 31 anos, mora em Anápolis (GO) e namora com Pricila Raquel há mais de um ano. As duas estão morando juntas e planejando oficializar a união ainda este ano, mas temem serem impedidas por decisão da Câmara. “Queremos oficializar no cartório, até mesmo por essa questão. A sociedade está o tempo todo querendo anular nossos direitos e nossa existência”, explicou Valéria.

Já Diego, de 28 anos, mora em Goiânia e namora Marcus Alves há mais de 7 anos. Os dois também pretendem oficializar a união em cartório e consideram o projeto de lei um desrespeito. “A gente não faz mal pra ninguém, a gente vive nossa vida tranquilo, pagamos nossos impostos, somos empreendedores… Como a gente faz tudo isso, temos que ter os mesmos direitos das outras pessoas”, disse Diego.

A Comissão de Previdência e Família da Câmara dos Deputados tenta impedir que pessoas do mesmo gênero possam constituir um núcleo familiar. Para o relator do projeto,  deputado federal Pastor Eurico (PL-PE),  o casamento gay é contrário a “verdade do ser humano”.

“O casamento é entendido como um pacto que surge da relação conjugal, e que, por isso, não cabe a interferência do poder público, já que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é contrário à verdade do ser humano”, disse o parlamentar. Para os casais, no entanto, a união homoafetiva é somente um direito já garantido pelo Supremo.

Diego conta que a mãe é pastora e foi muito difícil para ele a forma como a família lidou com o relacionamento. “Já a família do Marcus é um amor comigo, sempre me aceitaram e trataram da melhor forma. Como ele já sofreu muito, inclusive apanhou, acredito que foi aí que a família começou a apoiar mais ainda, por ter visto ele sofrer tanto”, explicou.

Diego Almeida e Marcus Alves na casa deles, em Goiânia. | Foto: Arquivo

Para o empreendedor, apesar de tentativas constantes de regresso, o progresso em relação ao passado é evidente. A população LGBTQIAPN+tem avançado e conquistado direitos, elegendo parlamentares e ocupando espaços nas mais diversas esferas da sociedade. “Se passar esse projeto, vamos ver tudo que a gente conquistou até agora indo por ‘água abaixo’”.

Valéria, que é enfermeira, vê a decisão como inconstitucional. “É homofobia. A Constituição diz que não pode haver discriminação de nenhum tipo. Eu acho que não vai passar [5167/09], mas fico preocupada porque a bancada evangélica é muito grande e com certeza vão votar a favor”.

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Audiência pública

Uma audiência pública para debater o que a sociedade acha do casamento homoafetivo havia sido requerida pelo deputado federal Pastor Henrique Vieira (PSOL RJ), que integra a Comissão. “Aprovamos com consenso, mas infelizmente o presidente não marcou a audiência e marcou a votação para hoje. Ainda temos a expectativa que seja marcada uma audiência antes da votação do projeto”, disse o deputado.

A audiência, no entanto, não foi marcada e a votação foi iniciada na Câmara dos Deputados, na tarde desta terça-feira, 19. “O Requerimento convida para a audiência representantes do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania, do Conselho Nacional de Justiça, da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas, da Aliança Nacional LGBTI+ e muito mais, para debater o assunto”, disse a deputada federal Erika Hilton.

Erika Hilton para a revista “Time” | Foto: Pétala Lopes/Time

Erika Hilton, que também integra a Comissão, é a primeira mulher trans eleita como deputada federal no país. Além disso, foi nomeada uma das “100 mulheres mais inspiradoras e influentes do mundo em 2022” pela BBC, foi destaque do “Next Generation Leaders”, da Revista Time, e foi reconhecida pela ONU como uma das pessoas negras mais influentes do planeta.

Preconceito

Para Valéria Silva, a rejeição e a falta de acolhimento da família é o que mais dói. “Tenho acolhimento dos meus irmãos e amigos, mas minha mãe e a família dela [Pricila] não aceitam”. A enfermeira conta que a mãe dela se recusa a falar sobre o assunto, por isso ela evita falar com ela para não ouvir coisas que a machucariam.  

Valéria nasceu em Curionópolis, no Estado do Pará, porque na cidade onde morava não havia hospital. Em Eldorado dos Carajás, onde foi criada, a família é bastante vulnerável e apegada a questões religiosas. Ela tem se preparado para informar para a mãe que vai ter um filho, seja gerado ou adotado. “Eu estou bem ciente que ela vai falar que não é neto dela, mesmo que venha a ter o sangue dela”.

Segundo ela, recentemente o sobrinho tirou foto com a namorada e com o sogro, que vestia uma camisa escrita “eu amo meu genro”. Ela diz que não espera esse tipo de aceitação, mas que queria ao menos ser tolerada. Além do preconceito familiar, Valéria já enfrentou discriminação no trabalho e em situações rotineiras do dia a dia.   

Valéria e a namorada Pricila em festa de aniversário. | Foto: Arquivo

“Houve dois casos que me deixaram bastante triste. Um foi relacionado ao trabalho, mas a situação que mais me abalou foi quando tentei alugar um local para morar. A pessoa me perguntou se eu era casada ou solteira, e respondi que era casada. Ela então perguntou: ‘É você e seu marido?’ Quando eu disse que era eu e minha namorada, ela imediatamente respondeu: ‘Nossa Senhora, não posso fazer isso, não, minha filha’. Foi muito difícil porque senti que estava sendo privada do meu direito à moradia, algo garantido pela Constituição”, relembra a enfermeira.

Projeto facista

Para o deputado pastor Henrique, para além de homofóbico o projeto de lei é fascista e pessoas como Eurico não podem sequer ser consideradas como conservadoras. “Eu consigo dialogar com conservadores e trocar ideias sobre o mundo. Eu caracterizo isso como fundamentalismo religioso, ou até mesmo extremismo religioso, porque é a negação do direito da existência do outro. É tentar utilizar o Estado, a regulação jurídica, para impor uma versão religiosa sobre o conjunto da sociedade. Isso é violento”, explicou.

Sem base jurídica, história, filosófica, o pastor Eurico cria uma verdade e quem não está de acordo com isso é uma espécie de subhumano ou não verdadeiramente um ser humano. É a mesma lógica moral que, ao longo da história, impediu mulheres de votar, legitimou segregação racial e justificou perseguição aos judeus, onde cria-se uma espécie de categoria inferior, subhumana, e não reconhece nela direitos plenos.

O PL 580/2007 previa, originalmente, que “duas pessoas do mesmo sexo poderão constituir união homoafetiva por meio de contrato em que disponham sobre suas relações patrimoniais”. Oito projetos, no entanto, foram vinculados (apensados) ao original, e é por meio de um deles que parlamentares conservadores tentam barrar o casamento homoafetivo. O parecer do relator é contrário aos sete apensados favoráveis, e recomenda a aprovação apenas do PL 5167/2009, assinado pelo ex-deputado Capitão Assumção (PSB-ES).

A Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família é presidida pelo deputado Fernando Rodolfo (PL-PE). O primeiro presidente também é do partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, Filipe Martins (PL-TO). A segunda presidente é Rogéria Santos (Republicanos-BA).

Entre os titulares da comissão, três são do PL: Chris Tonietto (PL-RJ), Miguel Lombardi (PL-SP) e Pastor Eurico (PL-PE). Dois são do União Brasil: David Soares (União-SP) e Silvye Alves (União-GO), e dois do PP, partido do presidente da Câmara Arthur Lira: Amanda Gentil (PP-MA) e Clarissa Tércio (PP-PE).

São titulares, ainda, os deputados Pastor Sargento Isidório (Avante-BA), Benedita da Silva (PT-RJ), Laura Carneiro (PSD-RJ) e Simone Marquetto (MDB-SP).

Cura gay?

Em outubro de 2023, a mesma comissão da Câmara que tentou proibir o casamento homoafetivo (Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família) trouxe das cinzas e tentou aprovar o projeto de lei de “cura gay”.

Há mais de 80 anos, embora não fosse tipificada como crime no Brasil, a homossexualidade era considerada uma doença, status que perdurou até 1990, quando a Organização Mundial de Saúde a retirou da lista internacional de patologias. No manual da Associação Americana de Psiquiatria, porém, ela já tinha deixado de ser classificada como transtorno mental em 1973. 

Em entrevista exclusiva ao Jornal Opção, a transexual e psicóloga Roberta Fernandes, conhecida como Beth da Astral, relembra que foi na década de 1980 que surgiram os termos “peste gay” e “cura gay”. Ela explica que as práticas de cura gay têm relação com o momento da pandemia do HIV, período em que os termos discriminatórios se disseminaram. Na época, havia o equívoco, principalmente por parte da comunidade conservadora religiosa de que o vírus da Aids era um castigo de Deus devido à liberdade sexual.

Beth Fernandes | Foto: André Costa

“Eu sou psicóloga há 25 anos e atuo com a questão da Aids”, diz Roberta Fernandes, a Beth. “Desde a década de 1980, muitas pessoas na minha época morreu sofrendo com a doença. Foi neste período em que o termo ‘peste gay’ foi disseminado e surgiu também a chamada ‘cura gay’. Como se a doença tivesse vindo para colocar fim à uma população que era subjugada e tratada como doente, visto que a homossexualidade era tratada como enfermidade”, explica Beth.

A cura gay, também denominada de terapia de reversão ou de conversão à heterossexualidade, foram consideradas práticas de tortura por produzirem muitos agravos à saúde, entre eles, a própria construção de ideias suicidas. Essa é a definição do Conselho Federal de Psicologia (CFP) do Brasil.

Beth explicou ao Jornal Opção como as políticas homofóbicas se consolidaram e como os direitos da população LGBTQIA+ têm retrocedido nos últimos anos. O termo “cura gay”, por exemplo, remete à época em que a homossexualidade era vista como doença, começando com o termo “peste gay”, associado à Aids. “O termo começou a desaparecer porque houve um esclarecimento sobre o assunto”, afirmou Beth. Ela lembrou que a homossexualidade foi retirada da lista de doenças pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na década de 1990, estabelecendo que “a sexualidade alheia não deveria ser tratada como patologia”. No entanto, segundo Beth, esse discurso voltou à tona, reforçando preconceitos e a ideia errônea de que a sexualidade é algo a ser “tratado”.

Sobre a saúde mental dos jovens trans, Beth destacou que há um retrocesso político que afeta diretamente a comunidade LGBTQIA+, principalmente no que diz respeito ao acesso a direitos e atendimento adequado. A discriminação nas escolas, como a proibição do uso de banheiros de acordo com a identidade de gênero, afeta a saúde física e mental de jovens trans. “Uma adolescente trans não bebe água para não ter o constrangimento de usar o banheiro errado, e isso provoca problemas como infecções urinárias”, exemplificou Beth, referindo-se a casos em Goiânia.

Apesar de alguns avanços, como a eleição de duas deputadas trans em 2022, Beth apontou que o Congresso continua conservador, o que dificulta o progresso das pautas LGBTQIA+. “Pastores discutem política dentro da igreja e negam à população LGBT+ o acolhimento que deveria ser uma premissa de Deus”, disse Beth. Ela também criticou o desmonte das políticas sociais e de saúde nos últimos quatro anos, enfatizando a importância das decisões do Supremo Tribunal Federal, como a legalização do casamento homoafetivo, para garantir os direitos da comunidade LGBTQIA+. “O que aconteceu nos últimos anos foi um grande desmonte, especialmente na saúde da população LGBT+”, concluiu.

Para o psicólogo Leandro Borges, a era da modernidade é marcada pela queda da tradição e dos ideais religiosos. Segundo ele, com o engajamento do discurso científico, o deus contemporâneo passou a ser muito mais a ciência, o que incomoda os religiosos.

“É o que a gente chama de declínio do patriarcado, declínio da tradição. As coisas que cimentavam a sociedade até então não cimentam mais. Então a igreja fica voltando nesse pensamento meio retrógrado. E eu acho que as pessoas não estão prontas para isso, para a queda da tradição. E a homossexualidade, que sempre esteve presente no mundo, agora ganhou voz social. Os homossexuais conseguiram o direito social, porque eles produzem, fazem e existem grandes nomes nesse lugar”, explicou ao Jornal Opção.

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