por Abílio Wolney*

Uma chave para abri-lo… Pois ‘assim será a porta que lhe espera, desatinadamente escancarada. As chaves em lugar incerto. A musa… Graças ao dia que me trouxe você, ungida de poesias, banhada de estrelas, irresistivelmente bela. Serenamente fique… Um século, um ano, um dia ou apenas o lapso de um olhar’ – Eis o Canto para sua chegada, poema central, que nos faz lembrar Tagore:

Ficarei quieto, esperando, como a noite em sua vigília estrelada, com a cabeça pacientemente inclinada. A manhã certamente virá, a escuridão se dissipará, e a tua voz se derramará em torrentes douradas por todo o céu. Então as tuas palavras voarão em canções de cada ninho dos meus pássaros, e as tuas melodias brotarão em flores por todos os recantos da minha floresta. Minha canção te envolverá com sua música, como os abraços sublimes do amor. Tocará o teu rosto como um beijo de graças. Quando estiveres só, se sentará a teu lado e te falará ao ouvido. Minha canção será como asas para os teus sonhos e elevará teu coração até o infinito. Quando a noite escurecer o teu caminho, minha canção brilhará sobre ti como a estrela fiel. Se fixará nos teus lindos olhos e guiará teu olhar até a alma das coisas. Quando minha voz se calar para sempre, minha canção te seguirá em teus pensamentos.

 Respira-se com o autor na sinestesia blandiciosa a que nos remete as composições que fazem parte de toda a trajetória de mais de 30 anos de poesias e textos, onde se misturam gosto, sonoridade e vibração, emergindo apenas com o critério do produtor da obra, cujos caracteres específicos de cadência e musicalidade dos textos se consolidam em afinidades emotivas. 

Uma produção ambientada na intimidade, que exige a qualidade própria desse tipo de literatura, onde o autor fez organizar sem cronologia proposital, dando-lhe fluxo livre e agradável na suavidade eloquente da expressão dos versos, repletos de mensagens, assim como uma arte que nos aponta ao se desvelar com simplicidade.

Mário de Gesimário, poeta da primeira juventude, encantava o nosso meio de adolescentes inaugurais, todos admirados com o pendor do amigo raro, que tem publicação via Fundação Cultural do nosso Estado do Tocantins, com a pena cursiva para o lirismo, característica que lhe é intrínseca, mesmo nas narrativas, crônicas e causos, que também compõem o livro, sempre com porção e afinidade poética.

Em entrevista que me concedeu em Dianópolis, gravei as melhores impressões do beletrista, no verdadeiro sentido da palavra, pois é Mestre em Letras e Literatura Brasileira, Bacharel em Letras pela UNITINS, Professor Universitário por muitos anos, conhecido por um magistério sempre focado em literatura e textos. Mas também bacharelou-se em Direito, integrado há mais de 20 anos nos quadros do INSS, onde é servidor concursado.

 Me disse do seu ingresso no meio acadêmico já em franco apogeu intelectual, nato como um egresso do campo das idéias – diria Sócrates – isento de inclinações ideológicas com relação à arte e falou do gosto em ler qualquer tipo de escritor, independente do seu viés, suas tendências pessoais, assinalando o ideal de se preparar melhor como estudioso, aproveitando melhor tudo o que se lê. Para ele, o leitor deve estar aberto, desnudo de preconceitos para melhor sorver qualquer texto, pois foi assim que aperfeiçoou sua visão de leitor e o fez escrever melhor. Atributos, aliás, que foram refundidos com a própria maturidade.

 Mário não tem um herói literário, pela própria lida no meio acadêmico, sempre aberto para o convívio com a arte e ensinou seus discentes a não discriminarem os autores por reputação ou gênero literário, visto como um estudante não pode ter predileção aos medalhões, deve ler qualquer literatura, em qualquer patamar, o que de fato o havia feito fazer o curso de Letras, pois para ele não existe escola que crie um poeta, já que o escritor se faz, mas o poeta nasce.

Traz Mãos que são missivas. Maceram-se sendo servas de servir à sorte do silêncio – elas são plantas. Suas mãos crucificam ou alojam cravos que nem se imaginam fixando a eternidade. E com elas afaga o coração que dobra a procissão pelas esquinas, Pela cidade, argamassa de aço e de concreto.

Todos os redemoinhos do rio Tocantins são plágio da sua dança – diz o seu Memorial dos princípios. A serra do Carmo, persiana do seu leste, eternamente chuvosa, neblinosa, distante…

E diz à Mulher: Quem urdiu cada segredo que alimenta a luz dos teus olhos, coreografou a dança dos teus passos, tingiu teus lábios dessa cor. Quem te imaginou, te concebeu, não cuidou que eu coubesse em mim de amar-te. Depois a fuga… Deixei sua lembrança girando a maçaneta da porta. Saí às pressas e deixei a saudade pela metade.

Para os mortos matados, presos, executados, o poeta se faz condoreiro. Vai ao platô do alcantil e desce às profundezas como a águia do oceano do poeta baiano. Pois quem soube a brisa e não sabe o sopro sulfuroso do inferno, não saberá jamais a dor cortante da terra que o sepulta. Encarecemos, Deus, um mínimo atender: ofereça a seus filhos soltos entre as feras a mão, não vingadora, mas piedosa, que desarme as mãos que portam o terror dos esquecidos da favela de Vigário Geral.

Faz rima com Antônio Frederico de Castro Alves:

Mas que vejo eu aí… Que quadro de amarguras! É canto funeral… Que tétricas figuras!… Tinir de ferros… estalar do açoite…. Legiões de homens negros como a noite, horrendos a dançar.

Morrer é trocar astros por círios, leito macio por esquife imundo, trocar beijos da mulher, no visco da larva errante no sepulcro fundo… só na lousa um nome que o viandante a perpassar consome. (Tragédia no Mar/Mocidade e Morte)

 Mas depois da vida, só há vida, diz o Poeta da Liberdade:

Oh, eu quero viver, beber perfumes na flor silvestre, que embalsama os ares; ver minhalma adejar pelo infinito, qual branca vela n’amplidão dos mares.

E vai o autor num creio em Deus Pai, todo poderoso. E crê em seus filhos, pois ninguém é órfão da existência. Ninguém passa em vão o labutar do dia. Ninguém empresta o peito a uma inútil alegria. Mas a cidade é míope em Noturno, a esquina surda como porta… Que a morte fuja, quem se importa?! Até que por fim, ruidosa, ruinosa, arruinada, a cidade desperte aparvalhada.

 Daí, uma Proposta: morder toda fome possível dos dentes e deixar marcas indecorosas, extravagantes; como os animais no seu amar sem tino, como o vendaval na cama dos amantes. Como na quimera real do maior trovador:

É noite ainda! Brilha na cambraia – Desmanchando o roupão, a espádua nua. O globo de teu peito entre os arminhos, como entre as névoas se balouça a lua…(Castro Alves)

 E a vida nos mostra que tudo passa. À relatividade fugaz do agora, sucede-se o eterno, num vai e vem do existir até a plenitude a que estamos fadados. Honrado, assim, com a distinção do convite, fiquei, contudo, por entender, porquanto os seus colegas de cátedra, mestres como ele, professores das Letras, desincumbiriam melhor a responsabilidade deste Prefácio. Ponderou-me, contudo, que não espera uma resenha, um texto técnico de alguém versado em teoria literária e me concedeu a licença de lançar as impressões de um companheiro sobre o seu trabalho, seu amigo de infância, pois sempre o instiguei a publicar, cobrei isso dele, conhecedor que era dos seus primeiros madrigais, passando pelos poemas da juventude, que mantêm a mesma têmpera dos que amadureceram na seara dos últimos anos.

E assim vou fazendo, sem a exigência de uma resenha crítica, que poderia ser mesmo feita por um dos seus colegas de magistério superior, em cujo ambiente se situa com beletristas renomados do nosso Estado.

Itaney Campos já observava que“a poesia é efetivamente, a interpretação do mundo sob o prima da sensibilidade, ainda que não se desgarre, de forma radical, do pensamento racional, condição para que não caia no delírio. A lógica da poesia é o surreal, porque seu objetivo é transfigurar a realidade e superar o olhar trivial com que se considera o cotidiano. Sua matéria prima é a palavra e seu catalizador a imaginação criadora aplicada sobre o universo subjetivo e a realidade objetiva, dando-lhes novas feições, iluminando-lhes recantos obscuros, desvendando-lhes facetas inesperadas, inalcançáveis aos olhares fatigados”.

O discurso romântico de que a Poesia só se manifesta em momentos de inspiração, como se a capacidade criativa emanasse dos céus, como um relâmpago luminoso, foi superado pelos novos conceitos literários, para os quais a criação poética é sobretudo fruto de muito trabalho, de lavor literário, de constante e fecunda leitura dos bons autores. Esse acervo de conhecimento se alia aqui com justeza à sensibilidade, com o sentimento de pertencimento ao mundo e à vontade de transportar para as palavras a percepção das coisas da vida.

Dizia o filósofo Henri Bergson que “há séculos surgem homens cuja função é a de ver e nos fazer ver o que não percebemos naturalmente. São os artistas”. E então “a gente põe-se a pensar em quantas maravilhosas teorias os filósofos arquitetaram na severidade das bibliotecas, em quantos belos poemas os poetas rimaram na pobreza das mansardas, ou quantos fechados dogmas os teólogos não entenderam na solidão das celas, embora a vida seja uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem”, assegurava Miguel Torga ( Diário, 1941).

O nosso autor aqui, nos Visita indefeso entre os polos desse transcurso, absolutamente verdade, onde é inevitável ser feliz ou não, no Corpo a Corpo, fecundando sua proporção de assombro pelas suas perspectivas inconclusas, Sentenciado à fausta ceia, a lua cheia, como a penumbra que limita o gesto de carinho que traz nas mãos, na Disritmia ao ranger do trinco, o reluzir do brinco na fresta da porta, ou no Crepúsculo do coração de pressas urbanas, presságios noturnos que fecham cortinas sobre o seu pulsar e dobra a procissão pelas esquinas, impoluto, nos Bastidores da cidade que arde e crepita e incendeia criptas onde repousam mortes ilustres, sedentas de silêncio e paz.

Em Cintilações o pano cai, entre a lua e ele, no céu de uma quinta-feira, com a noite plena dando-lhe a tez serena respingada de estrelas, Despertando antes da manhã, quando a vida nos entende melhor longe da angústia do seu silêncio, trazendo Fragmentos da noite passada, onde Virgínia desvirgina estrelas ou os astros estão nus na sua ternura? E prossegue na Litania noturna com lua, calma e quietude, suplicando a Deus que o poeta sobreviva à madrugada de neblina e assista a mulher que transita na calçada quando as estrelas adormecem…

E assim vai o menestrel, com a alma imortal do bardo, semeando trovas sob a escumilha da noite… Segue, tatuado no dorso de lembranças, onde Inscreve a musa na paisagem densa e emergente do seu súbito encanto; mesmo que seja como uma flâmula fincada num cais pretérito donde desatraca e a desvanece como um hieróglifo pleorânico.

E chega-se a Freevola, poema onde tudo se recompõe, se reestrutura, se reabilita, como uma ave que transporta em suas asas longas a ousadia em fantasias de liberdade, para no Soneto da fuga para descobrir o sol depois de posto num crepúsculo atemporal de agosto. E confessa a Lucélia, o amor da sua vida, que quando a noite silenciar seus sussurros, se cumpliciando, plena, se quedarão, imóveis, rendidos ao êxtase comum, na Quase certeza de um amor que não germine nada além de um amanhecer real e traz a Sentença ao esperar que a sempre cúmplice solidão dos quartos amordace a indiscrição das nossas impetuosas almas.

Insônia… Noites abrem sobre o poeta as asas do mundo. Riscam, como os ricos abruptos dos abismos ao Soneto do esperar, já que o sol se põe tão certo quanto as pálpebras sobre a íris luzidia; a mirar, tão vaga um corpo descoberto, a chorar a noite quando era dia, na Esperança de abraçar o fim do dia sem interrogar a dúvida de nascer o sol, na Purificação das vinhas que amanhã renascerão amadurecidas.

Rima com Castro Alves:

No drama do crepúsculo eu escutava atento

A surdina da tarde ao sol, que morre lento.

A poeira da estrada meu passo levantava,

Porém minh’alma ardente no céu azul marchava

E os astros sacudia no vôo violento

– Poeira, que dormia no chão do firmamento (A Boa Vista)

Prefaciando Mário: Contemplo-lhe, ó céus, esse imenso olhar perdido. Rumos e destinos tão vastos, tão infindos, imaginando quanto de mim tem consumido seus ermos eternos. Tanto que talvez eu seja outros invocando a mim mesmo entre seus astros, como a me dar licença para também poetar com ele:

É noite…

Apaga-se o dia e acende o firmamento…

Nas alturas, em silêncio, viaja o pensamento

Painel de estrelas desafiando o tempo

Rastilho de mundos que cobrem o relento

Umbela, fulgor, madrugada ridente

De saudade o céu chora dois meteoros candentes 

(Poema Junho, publicado na coletânea Iluminuras do Signo)

No Recado para Rhuan, auspicia ao filho todas as mãos possíveis e a alma que dela necessitem. Mas quando for a hora do vento soprar do ocidente e trazer mensagem dolorosa do frio, restarão lenhas zelosamente ressecadas. E tece Breves considerações sobre mãe. Porque mãe enxerga longe – e nos adverte. Sabe do nosso passado, pressente o nosso futuro, e trata com tanto zelo nosso presente que nenhuma ausência nos dói tanto quanto a ausência de mãe. E o que eu sinto, convencionei chamar de amor, na ausência de palavra melhor. Faz lembrar essa quadra de Catulo da Paixão Cearense:

Eu vi minha mãe rezando

Aos pé da Virgem Maria…

Era uma santa escutando

O que a outra santa dizia!

Os textos Criança em Mim, Sobre Roupas Velhas e Outros Sentimentos, A Flor de Mariquirim da Lapa, Vila Alpinhuns e Chuva nas Gavetas nos conduz aos dezembros da vida. Chuvas… É sempre assim. Hoje ela me encontra em casa, cotovelos na janela, mão escorando no queixo o peso da cabeça. Olho longe, distante, assistindo o incrível balé das nuvens que se junta, condensam, escurecem e cobre de uma friagem penumbrosa o teto da casa e nos remetem a Antigamente, quando o autor espana os cacarecos do Baú de Lembranças, garimpando ensejo para outras crônicas e aporta nos Encantos e Desencantos de Pat

Aqui põe âncora e fecha a obra, com sabor de quero mais…