A poética gótica de Emily Brontë em O Morro dos Ventos Uivantes
03 junho 2021 às 17h47
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A catarse provocada pelas narrativas emocionais de Emily Brontë expõe sua ousadia e delicadeza ao retratar o emocional de seus personagens
Brenda Santos
Especial para o Jornal Opção
“Não me deixes só, neste abismo onde não te encontro! Oh! Meu Deus! É indescritível a dor que sinto! Como posso viver sem minha vida? Como posso eu viver sem a minha alma?” — Trecho de “O Morro dos Ventos Uivantes”
Das três irmãs Brontë, Emily Jane Brontë destaca-se por ser “a mais estranha”, teimosa e de espírito livre, e que com certeza foi uma mulher à frente do tempo e nos deixou um clássico da literatura gótica.
“O Morro dos Ventos Uivantes”, lançado em 1847, foi o único romance da escritora inglesa Emily Brontë, este foi alvo de vários protestos no século 19 e tido como um dos livros mais ultrajantes da literatura inglesa.
Não muito se sabe sobre a vida de Emily Brontë, e sua personalidade permanece, mesmo após 200 anos, bastante difícil de ser compreendida. É certo que nasceu em 30 de julho de 1818 e faleceu, aos 30 anos, em 19 de dezembro de 1848 de tuberculose, a doença que matou o seu irmão meses antes. Durante sua juventude, tentou ser professora e também viajou até Bruxelas, lugar no qual escreveu dezenas de poemas e “O Morro dos Ventos Uivantes”.
Sua personalidade se caracterizava por ser “teimosa” — talvez obstinada —, possuía um espírito selvagem e indomável, e era extremamente antissocial. Houve quem dissesse que era louca, e até quem a acusasse de ser uma fraude literária, já que a sua obra-prima teria sido escrita supostamente pelo irmão Branwell, e não por ela. Isso tudo porque era mulher e também um enigma para muitas pessoas.
Mais tarde, a escritora britânica Virginia Woolf resgatou a narrativa de Emily da escuridão. Virginia reforçou em seus diários o poder poético de Emily em criar personagens tão complexos emocionalmente e ambíguos que forçam o leitor a simpatizar com eles em alguns momentos e os desprezar em outros.
Persiste ainda hoje uma imagem muito forte de Emily Brontë: a da mulher solitária, que os habitantes de Haworth costumavam ver a caminhar pelos campos na companhia do seu cão Kepper, a quem preferia mil vezes — ao invés de conviver com as pessoas. Apesar de poucas relações sociais, foi capaz de retratar de forma profundamente intensa as relações entre os personagens de “O Morro dos Ventos Uivantes”.
Recentemente, uma biblioteca perdida da família Brontë, contendo uma coleção valiosa de manuscritos das três irmãs (Emily, Charlotte e Anne), foi revelada ao mundo e será leiloada. Esse tesouro inclui um manuscrito a mão de poemas de Emily e com correções feitas a lápis por sua irmã Charlotte. O item mais marcante desta coleção é o manuscrito contendo 31 poemas de Emily Brontë, os quais ela escreveu em segredo — sem a intenção de publicá-los (no estilo de Emily Dickinson, a poeta americana).
Quando publicou seu romance em 1847, a escritora usou um pseudônimo, Ellis Bell, para não ferir as tradições e os costumes da sua época, quando se acreditava que as mulheres não deveriam se envolver em atividades que implicasse em ganho de dinheiro. Para ela e suas irmãs e tantas outras escritoras da época, como Jane Austen, o que importava era encontrar uma forma de se movimentarem como escritoras e pessoas; contudo, tomando cuidado para não afrontarem as tradições. Os críticos de sua época concluíram que Ellis Bell era um homem, porque para eles nenhuma mulher conseguiria ser tão ousada e obscena a ponto de apresentar uma narrativa tão selvagem e retratar uma paixão tão desregrada.
Emily Brontë foi uma das tantas mulheres à frente de seu tempo, que seus contemporâneos não conseguiam entender.
A identificação do gótico no romance de Brontë
Para identificar elementos góticos no clássico “O Morro dos Ventos Uivantes”, é necessário conhecer a trama e o contexto histórico do romance. O estilo gótico se modifica constantemente e se adapta às fases sociais que vão surgindo; desta forma, o gênero consegue se manter sempre atual.
Em “O Morro dos Ventos Uivantes”, a escritora conta a história de Catherine, filha de um rico proprietário de terras, o senhor Earnshaw, que um dia tem sua vida cruzada com a de Heathcliff, um “órfão cigano” adotado por Earnshaw, que, ao encontrar o garoto em uma viagem, o leva para sua casa e passa a criá-lo como seu filho. O garoto é desprezado pela maioria dos moradores do Morro e especialmente pelo filho mais velho de Earnshaw, Hindley. Contudo, Catherine enxerga nele a oportunidade de ser a criança livre, selvagem e arteira que sempre foi. Os dois se tornam amigos e nasce um amor profundo entre eles, o qual desanda quando o pai de Cathy morre e seu irmão Hindley assume a propriedade e passa a maltratar Heathcliff.
O sentimento de vingança toma conta de Heathcliff, e Catherine muda seu comportamento — colocando a si mesma acima de tudo. Os sentimentos egoístas dos personagens e seus comportamentos cruéis são os responsáveis pela destruição de ambos.
A descrição da propriedade em que ocorre a trama como um local sombrio, infeliz e velho, e ainda o ar melancólico dos personagens, são elementos góticos importantíssimos para provocar a catarse. As imagens poéticas, a casa no Morro dos ventos uivantes, a charneca, o clima frio, têm papéis fundamentais para se criar cenas que despertem os sentimentos de horror e temor, o que faz com que os leitores se deparem com seus sentimentos profundos.
Várias adaptações para o cinema
“O Morro dos Ventos Uivantes” foi adaptado para o cinema diversas vezes, desde o cinema preto e branco até o mais recente em 2011. Grandes atores já interpretaram Catherine e Heathcliff nas telas, como Merle Oberon e Laurence Olivier, Juliette Binoche e Ralph Fiennes, Orla Brady e Robert Cavanah, Charlotte Riley e Tom Hardy, dentre outros.
Umas das adaptações recentes mais elogiadas é a de 2009, essa parece ter sido a preferida de muitos que leram o livro e mesmo dos que ainda não leram. Os atores Charlotte Riley e Tom Hardy conseguiram sem dúvida transmitir ao público toda a profundidade de sentimentos dos personagens. O figurino destaca-se pela vivacidade e a atuação de Tom Hardy é excelente, o ator faz transparecer perfeitamente os momentos de intensa raiva que podemos sentir no personagem do livro e em outras vezes o sentimento de piedade, principalmente nos momentos de delírios de Heathcliff.
O diretor de cinema espanhol Luis Buñuel também adaptou o romance. O título de seu filme é “Escravos do Rancor”.
Brenda Santos é formada em História pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e mestranda em sociologia na Universidade Federal de Goiás (UFG). É colaboradora do Jornal Opção.
Minha alma não é cobarde
Emily Brontë
Minha alma não é cobarde
Não treme neste mundo por tormentas assolado
Vejo o Céu em glória com alarde
E contra o Medo brilhar a fé, meu braço armado.
Meu Deus, que no meu peito entraste,
Divindade poderosa, omnipresente,
Vida, que em mim repousaste
Enquanto sou Vida Imortal, sobre Ti omnipotente
Vãos são os mil credos professados
Que movem corações, indizivelmente vãos enfim,
Inúteis como joio definhado
Ou mera espuma nas ondas do mar sem fim
Para a dúvida nos suscitar
Tenazmente presa à tua infinidade
Sua âncora foi lançar
No perene rochedo da Imortalidade
Com um amor que tudo abraça
Teu espírito anima a vida eterna
Impera e medita nas alturas, traça,
Muda, sustenta, dissolve, cria e governa
Embora terra e lua tivessem desaparecido
E sóis e universos deixado de existir
E sozinho Tu Tivesses subsistido
Cada Existência só existiria em ti
Não há espaço para a Morte
Nem átomo que seu poder pudesse ser esvaído
Pois tu és o Ser tu é a Sorte
E o que tu és jamais poderá ser destruído.
(Do livro “Poema Escolhidos das Irmãs Brontë”, de Charlotte Brontë, Emily Brontë e Anne Brontë, Editora Relógio D’Água, 178 páginas, tradução de Ana Maria Chaves. O leitor deve verificar que se trata de uma edição portuguesa)