Sobre a complexidade de um acordo
09 abril 2016 às 09h55
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Caso houvesse um estudo que nos revelasse o vocábulo mais usado na imprensa europeia nestes últimos 15 anos, é provável que o substantivo crise estaria no topo da lista. A palavra crise serviu e continua servindo de epíteto para designar tudo que não se enquadra na rotina ou desvia da normalidade mesmo não sendo crise no sentido etimológico do latim crise ou do grego krísis.
De tanta crise, uma seguida a outra, o termo tornou-se corrente, habitual, tanto na mídia quanto em círculos políticos, em reuniões de empresas e mesmo em encontros sociais e casuais. Tornou-se inflacionário, desgastou-se, perdeu seu verdadeiro sentido para descrever uma situação real de uma fase difícil, grave, na evolução das coisas, dos fatos, das ideias.
Algumas destas crises já pertencem ao passado e outras há que, mesmo sendo recentes, já se apagaram da memória de muitos observadores. É oportuno, portanto, relembrar algumas daquelas com as quais a UE confrontou-se, direta ou indiretamente, de forma quase contínua.
Comecemos com a crise bancária oriunda dos Estados Unidos, resultado da ganância desenfreada de alguns bancos, que atingiu a Europa e levou o mundo à beira do precipício. Seguiu-se a crise do euro, a crise da Irlanda, da Islândia, de Portugal, da Espanha, da Grécia, do Chipre, da Praça Maidan em Kiev na Ucrânia e os consequentes conflitos no leste do país, do Mediterrâneo, da Somália, do Chifre da África, da Crimeia e o embargo comercial da UE contra a Rússia, a crise da Líbia, do Iraque, da Síria, do Egito, da Tunísia, a crise do juro baixo e, algumas geograficamente mais distantes que também tangem a Europa como a do Sudão, Níger, Chade, Mali, Nigéria, E como se tudo isso não bastasse, veio ainda a crise dos refugiados e a crise terrorista que, com atentados cruéis e desumanos sacrificou a vida de muitos civis inocentes em várias cidades não só europeias, mais recentemente em Paris e em Bruxelas.
A relação não é cronológica e nem completa mas confirma o quanto a UE esteve engajada para resolver crises próprias e mais ainda crises alheias que, caso não controladas, refletiriam na Europa ou, no pior dos casos, tornar-se-iam próprias. Algumas destas crises foram superadas, outras encontram-se em fase de extinção e outras mais ainda merecem controle.
Ninguém mais fala da crise da Irlanda, da Islândia, do Chipre, de Portugal que tanto alvoroço causaram mas, após estes países terem ajustado suas contas, pagaram com antecedência os empréstimos recebidos da União Europeia, do Banco Central Europeu, do Fundo Monetário Internacional e de outras fontes. A crise financeira da Grécia, acrescido de milhares de refugiados que se encontram naquele país, é um caso isolado sem sinais de estar sob controle.
Há, no entanto, duas outras questões cruciais, na Europa também denominadas de crise, embora na realidade não façam justiça a tal conceito. Ultrapassam-no em longe: uma, a questão dos refugiados, um flagelo humano, em sentido mais amplo, uma tragédia civilizatória de dimensões calamitosas sinistras não havida desde a 2ª Guerra Mundial; a outra, a barbárie do terrorismo, sob o manto do islamismo radical, entrementes, de atuação global. Ambas são questões abertas, de difícil solução que, provavelmente, preocuparão a Europa e o mundo por décadas vindouras e marcarão a história deste século XXI.
O número de refugiados é alarmante. Os que chegaram à Europa em 2015 (cerca de 1,5 milhão, a maioria à Alemanha), representam apenas uma pequena parcela dos refugiados ou deslocados de suas raízes que mais vegetam do que vivem em campos sustentados pelas Nações Unidas e por organizações caritativas e filantrópicas na Síria, Turquia, Líbano, Iraque, Jordânia, Palestina, no Paquistão, no Afeganistão e outros países. Segundo as Nações Unidas, a nível global a cifra eleva-se a 70 milhões de famintos e desesperados, à procura de simples sobrevivência ou de vida melhor.
Em 1945, após a 2ª Guerra Mundial, a Europa aniquilada encontrava-se sob escombros. Através do Plano Marshall, organizado e custeado apenas por um país, os Estados Unidos, foi possível salvar e recuperar o Continente, na época, com cerca de 350 milhões de habitantes. A comunidade internacional de hoje, pelo que se vê, demonstra pouca solidariedade para, através de um programa igual ou parecido como o Plano Marshall de então, resolver o problema de 70 milhões de desesperados!
Drama internacional
A Europa e o mundo ocidental não poderão resolver este drama de proporções preocupantes. Só uma ação conjunta da comunidade internacional poderá tomar medidas imediatas para, no mínimo, amainar a catástrofe que ameaça transformar-se em hecatombe. Isto inclui também a colaboração dos países islâmicos mais ricos como a Arábia Saudita, os Emirados e outros da Ásia Central que, até agora, têm feito pouco ou nada para amainar o sofrimento de seus irmãos em fé religiosa.
Na recente conferência das Nações Unidas sobre refugiados realizada em Genebra em fins de março passado, o secretário-geral Ban Ki-moon em discurso enfático e muito pessoal disse:
“Eu só sabia que meu estômago sentia fome”, lembrou-se ele de sua infância durante a Guerra da Coreia quando seus pais e avós, desesperados, saíam de manhã para encontrar comida para alimentar a família.
Ban Ki-moon veio a Genebra com a firme ideia de retirar 480 mil refugiados retidos nos países vizinhos da Síria como Iraque, Jordânia e Líbano aliviando aqueles países do peso que suportam há vários anos. Representantes de 170 países presentes à conferência concordaram em aceitar 178 mil refugiados, uma cifra muito abaixo da prevista por Ki-moon.
O último encontro dos chefes de Estado da UE em Bruxelas, em meados de março passado, terminou com um acordo com a Turquia que, em seu território, já abriga 2.7 milhões de refugiados, na maioria sírios.
O acordo estabelece, entre outras medidas, que todos os refugiados que chegam à Grécia ou numa de suas ilhas, serão reencaminhados à Turquia. Em contrapartida a UE assumirá, para cada refugiado devolvido à Turquia, um refugiado sírio retido num campo daquele país, inicialmente, no máximo 170 mil pessoas a serem distribuídas entre os 28 países. O governo da Turquia receberá, como ajuda de custo, um auxílio adicional de 3 bilhões de euros, somados a uma quantia igual já prometida em fins de 2016. O acordo entrou em vigor em 4 de abril passado.
Com esta medida a UE junto com a Turquia e a Grécia visam impedir o tráfego criminoso dos intermediários que, em embarcações primitivas, transportam refugiados às ilhas gregas e italianas com preços de passagens altíssimos e todo risco de vida. Em suma o acordo deverá transmitir a mensagem: “Não venham à Grécia. Nós levaremos vocês de volta à Turquia”. Há dúvidas quanto à efetividade desta medida.
Eliminação de visto
Um item adicional do acordo, uma exigência do governo turco, inclui a eliminação do visto de entrada em passaportes de cidadãos turcos à UE. As gestões acerca desta complexa temática deverão começar em junho próximo. Entre a população já agora há receios de que, com a liberação do visto para cidadãos turcos à União Europeia, o Continente teria nova onda de imigrantes.
O acordo foi mais criticado do que elogiado. Organizações de direitos humanos como a Amnesty International e mesmo várias organizações das Nações Unidas declararam-no desumano por envolver características de tráfico humano. A devolução dos refugiados da Grécia à Turquia lembra a “deportação”, um termo com o qual os europeus não simpatizam por ter sido usado durante o período nazista em relação ao extermínio de judeus.
Vários órgãos da mídia europeia criticaram o acordo por ter sido feito com um país que, no que diz respeito aos direitos humanos, deixa muito a desejar. A própria União Europeia há tempos tem criticado a falta de liberdade de imprensa na Turquia onde, de momento, há 30 jornalistas presos. O presidente Recep Tayyip Erdogan é criticado por seu comportamento autocrático não raro denominado de Sultão do Bósporo, Putin da Turquia e mesmo de Gadhafi Turco. Erdogan, por sua vez, também não é lisonjeiro em relação à União Europeia que publicamente denomina de Clube de Cristãos.
Na questão dos refugiados, a Turquia se colocou numa posição de país chave. Há indícios que a assistência dada pelo governo turco, com apoio da Europa e das Nações Unidas, não se baseia apenas em motivos humanitários. Interesses políticos, geoestratégicos e econômicos de curto, médio e longo prazo, envoltos sob um manto de filantropismo, escondem-se atrás do comportamento de aparência humanitária da Turquia, para o qual cobra um bom preço. E não são poucas as vozes que dizem que Europa deixou-se extorquir pelo governo turco.
Um dos objetivos do presidente Recep Tayyp Erdogan é concretizar a filiação da Turquia à União Europeia. As gestões, há tempos engavetadas, deverão ser reativadas no contexto do acordo agora estabelecido. O problema interno não resolvido da Turquia com a população curda será um dos maiores entraves ao projeto da filiação. Nenhum político europeu quer ver o problema turco-curdo trasladado para o centro da Europa.
Com a acordo realizado, a Europa contribuíu para que a Turquia, um país islâmico com 80 milhões de habitantes e cerca de 15 milhões de curdos, se tornasse o verdadeiro baluarte das fronteiras externas da União Europeia com o objetivo de controlar a onda de refugiados provenientes do Oriente Médio, da África e da Ásia Central com destino à Europa.
A recente história da União Europeia (UE) é marcada por solavancos e tropeços. Feitos políticos, estratégicos e econômicos modelares não têm sido frequentes nestes últimos anos. O acordo agora estabelecido com a Turquia tem ingredientes complexos com resultados não promissores com os quais a próxima geração de políticos europeus terá que se confrontar. l