Por incrível que pareça, ordenar morte de jornalista crítico do governo é pouco para os padrões deste regime sanguinário

Mohammed bin Salman e Jamal Khashoggi | Fotos: Reprodução

O jornalista saudita Jamal Khashoggi desapareceu no início do mês passado após ter entrado no Consulado Geral da Arábia Saudita em Istambul, na Turquia. Ele foi ao local para ter acesso a documentos que o permitissem casar com sua noiva turca, mas nunca mais foi visto.

Colunista do jornal estadunidense “The Washington Post”, Jamal Khashoggi era um dos principais críticos do regime saudita, que, na prática, é comandado pelo príncipe herdeiro do país, Mohammed bin Salman, popularmente conhecido pela sigla MBS.

Jamal Khashoggi, aliás, passou a viver em exílio autoimposto nos Estados Unidos após a ascensão de MBS a primeiro na linha de sucessão do trono saudita. Ele temia ser perseguido pelo príncipe herdeiro.

Enquanto a Arábia Saudita dizia que o jornalista tinha saído do Consulado, a Turquia afirmava que ele teria sido morto e esquartejado lá dentro. As suspeitas logo recaíram sobre Mohammed bin Salman.

Ironicamente, a Turquia, um dos países que mais persegue jornalistas, lidera as investigações. Na Arábia Saudita, também foi instaurado um processo para investigar o caso, que, de forma incompreensível, é comandado por MBS, justamente quem deveria estar sendo investigado.

No último dia 16, o “The Washington Post” publicou que a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA, na sigla em inglês) concluiu que o príncipe herdeiro foi quem ordenou a morte de Jamal Khashoggi.

A Arábia Saudita, naturalmente, jamais admitirá. Contudo, o caso tem gerado turbulência dentro da monarquia travestida de ditadura. Primeiro, porque cinco suspeitos de terem participado do assassinato devem ser condenados à morte. Como, então, os que são mais próximos a MBS confiarão nele depois disso?

Segundo, a agência Reuters informa que membros da família real estariam articulado para tirar Mohamed bin Salman da linha de sucessão e colocar em seu lugar Ahmed bin Abdulaziz Al Saud, irmão do rei Salman, que já está com 82 anos e não deve permanecer no trono por muito tempo.

Vale lembrar que, na Arábia Saudita, a linha de sucessão não é tão clara como em monarquias europeias. Lá, quem escolhe o sucessor é o próprio rei juntamente com membros do alto escalão da família real e a decisão não necessariamente obedece critérios como a idade.

MBS gozava de prestígio por aparentemente representar uma renovação para o país do Oriente Médio. E este discurso foi comprado por líderes ocidentais, como Donald Trump e Emmanuel Macron, presidentes dos Estados Unidos e da França, respectivamente. O primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, talvez tenha sido o único a desafiá-lo.

Mohammed bin Salman permitiu, por exemplo, que mulheres pudessem dirigir. Mas isso, na verdade, ocorreu apenas para inseri-las no mercado de trabalho — a Arábia Saudita depende do petróleo e precisa diversificar sua economia — e não porque o príncipe herdeiro é um revolucionário dos costumes.

Agora, a imagem de MBS no Ocidente já não está das melhores devido ao caso Jamal Khashoggi. O que espanta é que a morte do jornalista, por mais absurda que seja, é pouco para os padrões do sanguinário regime saudita.

Wahhabismo

Em 1744, o erudito islâmico Muhamad ibn al-Wahhab’Abd se aliou ao militar Muhammad ibn Saud para formar o primeiro reino saudita — de “Saud” —, que seguia o wahhabismo — “de “Wahhab”.

O wahhabismo nada mais é do que um ideologia ultraconservadora do islamismo sunita que visa voltar aos tempos do “islã puro”. Esta vertente perdeu força com a dissolução do primeiro reino saudita, também chamado de Emirado de Diriyah, mas voltou a ter prestígio após a criação, no entreguerras, da Arábia Saudita, que adota o wahhabismo como religião de Estado.

O país do Oriente Médio não é o único ator da região a seguir tal vertente. Atores não estatais, como o Estado Islâmico e al-Qaeda, também o fazem. E o pior: a Arábia Saudita patrocina o wahhabismo em mesquitas e madraças ao redor do mundo, o que dá ainda mais combustível para grupos terroristas cometerem atentados.

Portanto, apoiar a Arábia Saudita significa apoiar, mesmo que indiretamente, os ataques recentes em Paris, Bruxelas, Londres e Barcelona. A propósito, não custa lembrar que, dos 19 terroristas que sequestraram os aviões usados nos atentados de 11 de setembro, 15 eram sauditas.

Iêmen

A Arábia Saudita trava uma guerra sanguinária contra o seu vizinho Iêmen, que é o país mais pobre do oriente Oriente Médio e talvez por isso o conflito que ali se dá não receba tanta atenção.

O regime saudita bombardeia, quase que diariamente, funerais e casamentos e promove bloqueios de mantimentos por água, terra e ar. Os alvos da Arábia Saudita são as áreas controladas pelos houthis, um movimento político armado que segue a vertente zaidita do islamismo xiita.

As bombas utilizadas pelo regime de Mohammed bin Salman são oriundas de países como Estados Unidos e Reino Unido. Além de matarem crianças, os bombardeios contribuem para o fortalecimento das células do Estado Islâmico e da al-Qaeda no Iêmen.

No mesmo dia em que a CIA declarava MBS culpado pela morte de Jamal Khashoggi, Arábia Saudita e Iêmen se enfrentavam em um amistoso de futebol, vencido pelos sauditas por 1 a 0. Mas, em relação à guerra, ainda é cedo para dizer quem ganhará, uma vez que o príncipe herdeiro insiste em não apitar o final da partida.

Sequestro

Em novembro do ano passado, o primeiro-ministro do Líbano, Saad Hariri — a maior liderança sunita do país —, foi literalmente sequestrado pela Arábia Saudita, que o forçou a renunciar ao cargo.

Segundo o jornal estadunidense “The New York Times”, a intenção de MBS era travar as ambições do Irã, principal inimigo saudita na região e que apoia o grupo xiita libanês Hezbollah.

O pedido de renúncia foi revogado no mês seguinte com a volta de Saad Hariri ao Líbano após intervenção de Emmanuel Macron para solucionar o imbróglio. Apesar de tudo, o presidente francês, assim como demais líderes ocidentais, parecem ignorar as atrocidades da Arábia Saudita. Afinal, eles estão mais preocupados com compra de petróleo e venda de armas.