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O pai de Zé foi ver São Pedro antes, rachado por um corisco quando amuou num pé de coco baru, mode fugir da chuva […]. Era boquinha de uma noite de tempestade e o peão a apartar gado. Diz que ficou todo roxo e com os dedos das mãos e dos pés estrunchados pela força do corisco. Nem caixão abriram no velório. Morte de raio é sinal de desgracença e maldição do céu: deve que Deus castigou o pagão?

Punky, garotinha de seis anos, é uma personagem com síndrome de Down, estrela de desenho animado – quebrando preconceitos, como os demonstrados contra Inzé, neste conto. Foto: Reprodução do YouTube.

“Inzé doidim”, nem doidio era. Só visto de chapéu camurça preto, amarrotado nas abas, botas e cinturão com fivela a cowboy. As calças, sempre compridas, ao contrário dos moleques que as trajavam curtas, naqueles dias em Mataúna. Andava devagar, arremedando artista de faroeste bang-bang. Bracinhos curtos, revólver de espoleta, olhava de soslaio e mordia a língua, exposta no canto esquerdo da boca, que nem xerife de diligência esperando emboscada.

Sempre a sorrir, Inzé. A escuma secava na bocarra marota de ursinho panda e deixava um rastro branco de sal sob os beiços trincados. Às vezes babava, virava os olhos, e dava istrimilique. Preconceituoso, doutor Noquinha dizia que era acesso:

Cuidado com a baba. Acesso pega!

Os bracinhos repletos de nascidas, cabeças de prego e furúnculos, expunham sua imunidade frágil e a saúde delicada. Era furunco de todo jeito: verdolengos, purulentos ou secos, com casca grossa de ferida ou expondo o carnegão esmarelecento. No Almanaque Fontoura deu que é só usar depurativo ou levedo de cerveja. Sá’Rita mandou banhar com chá de sabugueiro. Mas quem vai fazer chá pra Inzé?

O rapazinho está só, no mundo de meu Deus. Ficara órfão indesde que a mãe capotou de infarte lá pras bandas do Mutum. Nunca não recebeu abraço de mãe depois que trocou dente de leite, nem experimentou pente no cabelo após o banho. Não porvou o pentear que denota cuidado de genitora, quando pegava piolho ou lêndea. Pente fino e banha de capado era desculpa para xamego de mãe, alisando a cabeleira, coçando, até ficar tudo linsinho. Não sobrava um brutelo, nem ovos, nem caspa, nem nada. Mas Inzé nunca que não expermentou nada disso.

Nunca que sentiu o ventinho e o frufru da coberta estendida pela matriarca na hora de dormir, ou o chá de hortelã com pão no pular da cama, às seis da manhã. Mora de favor com a irmã casada, cujo marido vive de empreita. Faz empreitada de cerca de fazenda, arame ferpado ou liso, lasca de aroeira e esticador de dois metros. Cerqueiro afamado, que usa balancim e carretilha, mas usurário, agiota dos bons. Tem pra mais de seis milhões de cruzeiros a juro na praça, angiotado por Alaor de Sivirina. Diz que cobra até dez por cem e se não recebe por bem, recebe por mal, empreitando os serviços do Renatão quebrador de mio.

O pai de Zé foi ver São Pedro antes, rachado por um corisco quando amuou num pé de coco baru, mode fugir da chuva. Morreu também umas vinte reis, durinhas no pasto, algumas pregadas na cerca de arame ferpado. Era boquinha de uma noite de tempestade e ele a apartar gado. Diz que ficou todo roxo e com os dedos das mãos e dos pés estrunchados pela força do corisco. Nem caixão abriram no velório. Morte de raio é sinal de desgracença e maldição do céu: deve que Deus castigou o pagão? A missa de corpo presente foi ligeira e de má vontade pelo ministro da eucaristia. O padre não mostrou as fuças e o sacristão deu pro mundo. Dizem que assim não é de val, Deus não é servido. No mínimo o desinfeliz pega uns anos no purgatório. Se a família não se apegar com Nossa Senhora, queimar muita vela e rezar salve Rainha todo dia, o chifrudo leva a alma.

O tio de Zé, que lhe cuidava após a morte dos pais, foi ofendido por cobra cascavel e bateu com as botas. Uma bicha enorme, erada, com uns onze ou doze chuquai. Mariquinha contou treze, mas parece exagero da anciã. Ultimamente deu pra caducar. Foi ela quem cuidou Alfeu, pensou sua ferida, usou banha de sacuri e de cobra coral, erva de Santa Maria, guano de morcego e resina de árvore derretida na frigideira com gema de ovo. Qual nada! O matuto foi arroxeando e morreu em 24 horas.

É caduquice mermo. Risina é pra quebradura de perna, não pra mordedura de cobra. Inda mais canscavé!.

Não teve jeito. O tio de Inzé foi dessa pra melhor. Homem caridoso, confrade vicentino, solteirão, diz até que nunca ispiou muié. Com certeza está ao lado de São Pedro e de Nosso Senhor no paraíso celestial. Bendito seja louvado!

Enquanto banzava pelas ruas do povoado, Inzé brandia pinhola de couro trançado para a matilha de cães que o acompanhava. De tempos em tempos, voltava a estalar o flagelo e a cachorrada se escafedia ganindo: cãim, cãim, cãim!

Incontinenti, os vira-latas se achegavam de novo ao pequeno algoz, como mosca na carne. Seguiam-no pelas ruas de chão batido e pedra tapiocanga de Mataúna, a cidade dos mata-sete. A caniçada não se dava das estaladas de chicote. Chibatada pros moleques, pros entojo que gritava insistentemente, afrontando o rapazinho de rosto pubescente:

Inzé doidim! Inzé Doidim! Inzé doidim!

Zé nem ligava. Fiava-se no seu protetor: Janjão – o herói de Mataúna – amigo e padim. Não carecia ter cisma de menino covarde, dos de menor sem criação, nem dos de maior que buscava ingrisia.

O adolescente seguia, impassível, sua jornada pelas ruas de gente modorrenta e moleques atentados. Sempre com sua cachorrada, brandindo o chicote com chocalho no cabo, prenúncio de que envinha chegando. Ao ouvir o lateúme da cachorrada, a mães recomendavam aflitas:

Fecha a porta da rua. Lá vem Inzé doidim!

Todo dia descia ao comércio de Janjão, no largo da rodoviária antiga. Este era figura lendária,  envinda lá dos Pireneus. Dois metros de altura, bigodão à Barão do Rio Branco, sempre vigiado por dois cachorros Buldogue. E com um trintoitão na cintura, à mostra, sob a camisa aberta no peito. Janjão sempre de chapelão panamá, grossos cordões de ouro no pescoço, caídos sobre o peito de urso. Dizem que era oiro de dente de gente. Tinha também um berloque e uma figa do metal doirado, tudo benzido pela cigana Indéia, mode fechar o corpo contra bala encomendada. Deve de ser mentira, invencionice do povo do PSD, pois Janjão sempre fora do contra, causando maquerença política.

E Indéia não era de urdir maletude ao próximo. Era benzedeira do bem:

–Home bão, muié má. A palavra de Deus é de disingasgá! – e o mal de engasgo sumia na hora.

No dizer dos amigos, Janjão tinha o coração maior que ele. Homem caridoso, não frequentava a igreja, mas dava pronto ajitório aos mendigos. Esmolava e fazia novena de São Sebastião, padroeiro da cidade. Não passava pedinte que não recebesse um adjutório, que saísse com o embornal vazio, ou não comesse das comilança que guardava na geladeira a querosene.

Era Janjão quem prendia Hosana no mês de agosto, quando a mulher perdia o juízo e ficava “louca de pedra”. Era amarrada com corda, no Jipe, mode interná no Adalto, na capital. Foi ele quem salvou o povo do comércio quando mataram juiz, promotor e dois sordado na venda de Absalão.

Foi ao temido e afamado Janjão que se achegou Zé.

– Abença, padim.

– Deus’abençõe, José. Já comeu pão?

O sorriso de Inzé se abria completamente, de orelha a orelha:

– Gosto do padim porque ele me dá panfo.

E comia, sozinho, dois pães amanhecidos de 80 cruzeiros, quase meio quilo do produto feito com farinha ordinária, por Mário Padeiro. “Pão com manteiga de Grigoro Cremero, batida na vespa”, informava Janjão. “Só creme de leite de vaca criada no Jaraguá, ou na grama Tifo”, completava exibido. Vacada produzida no Indaiá, Piçarra, Capivari, Camarão ou na Ponte Nova. Nada de silagem ou veneno pra matar carrapato. Creme fresquinho, que virava manteiga todo dia, ainda aguada, vendida no comércio de Janjão.

Ali, à porta da venda, sentindo-se protegido, Zé ficava horas banzando os ganidos, matando tempo, assuntando a cainçada lazarenta, cheia de berne e carrapicho de carneiro, ou beiço-de-boi. À sombra de Janjão estava livre da molecada capetenta que o aperreara e que lhe arrancara mais de trinta furuncos na maior covardia. No muque!

O apelido “doidinho” não era maldade da meninada, desconhecedora que um cromossomo extra no par 21 – a trissomia 21 – tornara o garoto especial. Quando Zé se aproximava e pedia um pedaço da fruta, bala, ou qualquer coisa comestível, os garotos compartilhavam a guloseima e se afastavam espavoridos. Nessas horas, os olhos amendoados e miúdos, com pregas nas pálpebras, brilhavam. Suas mãozinhas, com uma única prega e seus braços curtos, se estendiam para recolher a guloseima ridicada. Ele comia gostosamente. A cainçalha se alvoroçava, disputando as migalhas, compartilhadas por Zé. A uma distância segura, os gaiatos voltavam a zombar, acintosos:

– Zé doidinho! Zé doidinho! Zé doidinho!

O menino nem ligava. Seguia incólume e sereno, sorridente, seu caminho feliz. Os cachorros amavam Zé.