Biografia de João Máximo e Carlos Didier explicam genialidade do compositor Noel Rosa

04 maio 2023 às 19h14

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No túmulo de Tom Jobim tem o seguinte epitáfio: “Longa é a arte, tão breve a vida”. Tal epitáfio valeria também para Noel Rosa, que viveu tão pouco, mas produziu arte. O livro “Noel Rosa — Uma Biografia”, escrito por João Máximo e Carlos Didier, trata justamente da vida, da obra e do universo vivido pelo “poeta da Vila Isabel”. Uma história rica em detalhes que não se inicia no dia que Noel Rosa veio ao mundo mediante um fórceps, que acabou por deformar seu queixo, e nem termina no dia em que deu seu último suspiro no colo de Lindalva. Uma biografia tão detalhada tem que começar antes do fórceps e terminar bem depois do colo da mulher que sempre esperou o artista e estudante de Medicina todas as noites, mas nem sempre ele aparecia.

Como toda biografia, os autores não deixaram de escrever sobre a árvore genealógica do compositor de “Com que roupa eu vou?”. Detalhes em tudo e todos. Até o surgimento da Vila Isabel no mapa carioca está no livro. Parece um vício dos biógrafos, que procuram a todo custo provar ao leitor que a fruta madura que gerou tantos sabores à arte caiu de uma árvore genealógica muito especial, diferente de todas as outras. Precisava detalhar tanto assim a “pré-história de Noel Rosa”?
Máximo e Didier respondem: “Os autores preferiram correr o risco e deixar o primeiro (capítulo) tal qual está. Convenceu-os uma esperança: a de que o eventual leitor deste livro não seja de virar as costas ao que quer que diga respeito a Noel Rosa. Nem mesmo às suíças do vovô Eduardo”.

Não se pode negar a honestidade dos biógrafos. Alertados eles foram sobre o excesso de detalhes na árvore genealógica e na fundação da Vila Isabel, mas resolveram correr o risco. E que risco.
Como a história contada no livro é bastante detalhada pode fazer com que o leitor se canse de saber das “suíças do vovô Eduardo” ou se perca entre os ancestrais de Noel Rosa. Mas depois que se passa da pré-história de Noel, a narrativa fica deliciosa.
Máximo e Didier narram a história de Noel Rosa conjugando os verbos no presente. “Noel compôs uma canção”. “Noel vai ao Morro da Mangueira conversar com seu amigo Cartola”.
O poeta vive pela música

O leitor é guiado pelos autores a caminhar junto com Noel por um Rio de Janeiro boêmio, ainda capital do Brasil e que começava a passar pelas profundas transformações que marcariam o século passado. Cada personagem que cruza o caminho de Noel merece uma pequena biografia. Indiretamente acabamos conhecendo um pouco sobre Francisco Alves, Almirante, Aracy de Almeida e tantos outros. Tantos parceiros de música de Noel que conhecemos até hoje e tantos outros que foram esquecidos pelo tempo. A narrativa conjugada no presente faz com que o leitor acompanhe cada passo de Noel e leia o livro de forma vagarosa, saboreando cada página fazendo de conta que o “Poeta da Vila” vive e não quer alongar a leitura porque sabe que o fim está próximo.
A história de Noel Rosa não está presa apenas a Vila Isabel. Ele atravessou os trilhos da Central do Brasil para subir o Morro da Mangueira e conversar com seu grande amigo Cartola. Sim, o branco Noel se dava muito bem com o negro Cartola. Infelizmente temos que ressaltar isso um século depois porque existem certos grupos que se acham condutores da humanidade rumo ao paraíso da igualdade e querem separar brancos e negros. Se alguém falar que brancos e negros conviviam e ainda convivem harmonicamente é chamar tais “facções” para a briga. Noel Rosa é muito maior do que os salvadores da pátria.
Noel também transitou pela Lapa, tradicional reduto da boemia carioca. Num daqueles botequins, muitos nem existem mais hoje, Noel encontrava com seus colegas de cerveja e de samba. E era ali mesmo, em cima de uma mesa de bar, que o poeta iniciava suas composições. Às vezes começava e deixava para outro parceiro terminar ou algum compositor começava um estribilho e, ao ver Noel Rosa tomando um gole de cerveja, pedia que concluísse a canção.
Francisco Alves tinha a antena artística apurada e reconhecia se um samba era bom ou não para gravar. Tantos sambas Noel compôs para Francisco. Muitas destas composições serviram de pagamento para um carro que Francisco Alves vendeu para Noel, apelidado de Pavão. Imaginem o tanto de samba creditado a Noel Rosa que nasceram por causa da dívida do Pavão?
As paixões do poeta-compositor
Falar de Noel Rosa sem falar de suas amadas vai faltar alguma coisa. Máximo e Didier, narram detalhadamente as paixões que balançaram o coração do poeta. Foram tantas.
Ceci foi uma das que mais abalaram o coração de Noel. Mas foi com Lindalva que Noel se casou.
Sim, o boêmio e mulherengo Noel Rosa se casou, mas por conta da tuberculose, a doença mais temida e que acabou tornando a vida de Noel tão breve para uma arte tão longa. Um clima mais fresco era um dos remédios receitados na época para curar a tuberculose. Lá foram Noel e a mulher Lindalva para a capital mineira. Engana-se quem pensa que os autores só se restringiram aos detalhes apenas no Rio. A Belo Horizonte dos anos 1930 aparece no livro detalhada. Não adiantava Noel ficar de repouso. O seu lugar era um botequim que tivesse alguém bebendo e tocando samba. A pacata capital mineira ficou agitada com a presença do “Poeta da Vila”.
Mas o Rio de Janeiro era o seu lugar. A Vila Isabel o chamava como uma mãe chama um filho pequeno para almoçar.
As 533 páginas que compõem a biografia de Noel Rosa são ricas em detalhes, fotos do cantor sempre acentuando seu queixo defeituoso por causo do fórceps. Traz também box com palavras de personagens desta história narrando seus causos com o “Poeta da Vila”.
No final do livro, temos a musicografia e a discografia de Noel. Será que estão disponíveis? Será que podemos ouvi-las para concordarmos ou não com os autores que tal letra casou perfeitamente com a melodia?
Como foi dito no início, esta biografia tão detalhada de Noel Rosa não começou no dia do seu nascimento e nem terminou no dia que seu caixão baixou na sepultura e Ary Barroso, discursando fervorosamente, quase tropeçou e foi junto com Noel.
Os autores foram além do dia 4 de maio de 1937. Mostram para o leitor a falta de memória do nosso país. Desde a sua morte até o princípio da década de 1950, Noel Rosa era apenas uma pouca lembrança na Vila Isabel.
Resgate de Noel por Aracy de Almeida
Foi preciso Aracy de Almeida, sua intérprete preferida — o que não impedia que os dois entrassem numa discussão acalorada por causa de uma palavra da música —, resgatar o “Poeta da Vila Isabel”. Foi na boate Vogue, em Copacabana, que a Dama do Encantado mostrou aos grã-finos que Noel Rosa teve uma vida breve, mas sua arte não poderia cair no esquecimento. Quase vinte anos depois da sua morte, Noel voltava a despertar interesse no Rio de Janeiro que já não era mais o Rio de Janeiro boêmio que assistiu Noel Rosa compor seus sambas, correr atrás de um rabo de saia e beber cerveja quente porque a febre não o largava.
Uma biografia tão rica, tão detalhada, tão bem escrita deveria ser relançada para que as próximas gerações conheçam Noel Rosa e não fiquem achando que o rompimento do Exaltasamba foi um baque no samba brasileiro. Antes do Thiaguinho sair em carreira solo muitos outros pavimentaram o caminho. Noel Rosa foi um deles que cantou samba num período que ser sambista era sinônimo de vagabundagem. Relançar este livro, ainda aproveitando os 75 anos de morte do “Poeta da Vila” poderia evitar que a curta memória do brasileiro esquecesse o compositor de “Com que roupa eu vou?”, “Feitiço da Vila” e tantos outros. Se antes do Exaltasamba acabar muita coisa aconteceu, antes do Chiclete com Banana ser referência do carnaval atual, Noel Rosa estava nas ruas de Vila Isabel compondo o próximo sucesso da festa de fevereiro.
A curta vida de Noel não o impediu de fazer do samba uma arte. Dr. José Rodrigues da Graça Melo, o médico que ajudou a trazer Noel ao mundo, no dia que foi entregá-lo para a eternidade disse: “Noel apenas viveu a vida que quis viver”. Pena que a vida que Noel viveu foi tão curta. Tão curta para uma longa arte.
[Resenha publicada em novembro de 2012]