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A música europeia tem na pianista Maria João Pires uma de suas interpretes mais puras e transformadoras. Há uma semana o Centro Nacional de Cultura (CNC) anunciou que a artista portuguesa é a vencedora da edição 2025 do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva para a Divulgação do Património Cultural, distinção que celebra não apenas a excelência de sua carreira, mas também seu papel singular na promoção de valores humanistas e culturais que transcendem fronteiras.

Maria João Pires, nascida em Lisboa em 1944, subiu ao palco pela primeira vez aos quatro anos de idade. Desde então, construiu uma trajetória que a consagrou como uma das intérpretes mais reverenciadas do repertório pianístico internacional. O júri, presidido por Maria Calado, destacou seu estatuto de “pianista poética e influente”, ressaltando que, para além de uma carreira consagrada, Pires é:

“educadora visionária, pensadora cultural e revolucionária silenciosa do património musical”.

Essa combinação de rigor técnico, lirismo interpretativo e compromisso pedagógico é rara: Pires não apenas interpreta Mozart, Schubert ou Chopin, ela trabalha à luz de um pensamento musical que vê a arte como ponte entre pessoas, tempos e lugares.

Maria João Pires ainda criança | Foto: Reprodução

Em 1989, a pianista fundou o Centro Belgais para o Estudo das Artes, em Escalos de Baixo (Castelo Branco, em Portugal, um espaço dedicado a experiências educativas e musicais inovadoras. Mais tarde, na Bélgica, criou os Partitura Workshops e os Partitura Choirs, projetos voltados para crianças em situação de vulnerabilidade, buscando uma alternativa à lógica competitiva do meio musical.

Essas iniciativas são uma extensão natural de sua visão: para Pires, a música é diálogo e escuta compartilhada, uma experiência que exige sensibilidade e abertura. Seu trabalho pedagógico é menos sobre formar virtuoses e mais sobre formar pessoas,  uma tragetória que se alinha perfeitamente à missão do Prémio Helena Vaz da Silva, que busca sensibilizar o público para o valor humanista do patrimônio cultural europeu.

O atuação de Maria João Pires não se restringe ao palco ou à sala de aula. Sua discografia, gravada para selos como Denon, Erato e Deutsche Grammophon, é referência para gerações de pianistas e ouvintes. As Sonatas de Mozart, os Noturnos de Chopin, os Improvisos de Schubert e as gravações dos concertos de Mozart e Beethoven tornaram-se marcos interpretativos. Por essas contribuições, foi laureada com prêmios da UNESCO, da Academia Charles Cros, e o Prémio Pessoa. Mais recentemente, o Praemium Imperiale da Associação de Arte do Japão.

Em junho desse ano, Maria João Pires anunciou um afastamento temporário dos palcos devido a um problema de saúde cerebrovascular, o que a levou a cancelar concertos e recitais previstos para Portugal, Europa e Japão. Ainda assim, demonstrou entusiasmo ao retomar as aulas on-line, refletindo que ensinar é:

“um dar e receber, uma procura de equilíbrio”.

Essa afirmação revela a essência de sua filosofia: a música como instrumento de autoconhecimento e transformação, mesmo quando o palco se silencia por um tempo, sua presença artística permanece ativa e inspiradora.

A cerimônia de entrega do Prémio Europeu Helena Vaz da Silva a Maria João Pires está marcada para o dia 1º de novembro de 2025, às 17h, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Será mais do que uma celebração de carreira: será um  reconhecimento, de um percurso que uniu arte, educação e ética de forma indissociável.

Maria João ao lado do presidente Marcelo Rebelo de Sousa | Foto: Reprodução

Ao agradecer a honraria, Pires afirmou:

“Ter um prémio corresponde a ter uma honra. Ter uma honra e tomar consciência dela é lembrar ao pormenor todas as pessoas que colaboraram para que essa honra fosse atribuída.”

Um agradecimento que reafirma sua postura generosa e profundamente consciente do papel coletivo na construção da cultura.

Para mergulhar na poética de Maria João Pires, sugerimos ouvir sua interpretação do Noturno em D-Bemol Maior, Op. 27, No. 2.  Fique atento a suavidade com que ela conduz cada frase, o senso de suspenção  nas pausas, a fluidez entre seções contrastantes. Nada é estático, há um pulsar interior, uma respiração entre as notas que revelam toda sua maturidade artística.